segunda-feira, 21 de maio de 2018

AS ENDOENÇAS NA TORRE

JORGE LAGE
O Grémio Literário Vila-Realense tem sido uma instituição sólida na defesa da nossa cultura e dos nossos escritores locais e regionais que vão partindo, homenageando-os e tendo em Pires Cabral o seu grande pilar. Refiro, em especial, Miguel Torga e António Cabral que esta agremiação cultural mostra estar atenta e ter grata memória com os que partem. No ano findo, despediu-se Nuno Nozelos (NN) e os amigos sentimos um vazio que nos deixou saudade e memória. No dia da partida lavrei uma nota fúnebre:
«Torre Dona Chama, Mirandela e Trás-os-Montes e Alto Douro mais pobres com a partida do nosso querido escritor, Nuno Nozelos, ao início da tarde de hoje, 18 de Julho de 2017. Nuno Nozelos nasceu na Fradizela, mas a sua meninice e ao longo da vida foi na Torre Dona Chama a que sempre se prendeu e onde o pai tinha uma pequena indústria. (…) Calou-se para sempre uma das melhores vozes da escrita trasmontana e alto duriense. Mirandela e a nossa região ficam mais pobres».
Em conversa com o Jorge, recebi informação que me levaram a conhecer melhor o seu tio Nuno. Está bem explícito nos textos do NN a sua paixão pelos pais, pela Torre que o acolheu na meninice e pela Fradizela terra que o viu nascer. Termina a escola primária nas Arcas (concelho de Macedo de Cavaleiros), junto dos avós maternos, duma família abastada desta terra e de apelido Gonçalo. A ida para o seminário salesiano de Poiares (Peso da Régua), após a conclusão da instrução primária, é descrita com emoção e realismo no livro «Histórias ou Algo Mais». Tendo, mais tarde, passado por Mogofores e Estoril, dentro desta ordem religiosa missionária e de cultura e onde concluiu o curso de Filosofia. Nuno (Álvares Pereira da Conceição) Nozelos visitava a Fradizela, seu torrão natal, com entusiasmo, quando vinha à Torre, e onde era acolhido com muita simpatia e deferência, como me referiu o Jorge. Sempre que visitava, de longe a longe, a «Fradizela, parecia a Nossa Senhora de Fátima, toda a gente vinha a correr para o cumprimentar». Todos o queriam saudar e muitos lhe deviam atenções de ajudar as «gentes da sua terra» a sair para empregos fora da lavoura madrasta. Manteve esta devoção, até à última visita, enquanto as forças lho permitiram. Tal como o pai, serralheiro, que «sempre ajudou toda a gente». Tinha uma postura generosa e sempre pronto a ajudar, uma família unida de seis irmãos e era visto por todos com notoriedade. A meio do jantar gostava de uma piada erótica, com elegância. Na Torre Dona Chama, só após ter comprado uma casa, nos últimos dez anos de vida, é que passa aí mais tempo. Aqui, às gentes, assenta-lhe bem o apodo de «Fidalgos», como referi no livro, «Mirandela Outros Falares», e embora abrisse caminho para empregos a muitos, a memória de alguns é curta, ou ingrata como já vem referido no texto bíblico da cura dos dez leprosos. É na Torre que NN tem um grande banho de multidão quando, nos anos cinquenta, com apenas vinte anos, dirige e encena a representação teatral religiosa d’«As Endoenças» com o ilustre flamulense Padre Francisco Videira Pires. À Torre acorreu uma grande multidão vinda das populosas aldeias em redor e até de longe. Passou a ser visto pelos mais atentos e reconhecidos com respeito. Ainda hoje se fala no feito ímpar do ramo d’«As Endoenças» da Torre. Sobre este grande acto cultural, dramático e teatral atrevo-me a citar o que escrevi na página 126 do livro «Mirandela Outros Falares»:
Segundo Celeste Pires, (…) No início dos anos 50, na Torre fez-se, na Quinta-feira Santa, a «Representação das Endoenças», que era a «recriação da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo». O «palco» era montado no  «Largo do Prado» ou «Toural da Feira» e hoje é um jardim onde se fazem as festas. (…) envolvendo muitos «actores e actrizes», tudo gente da freguesia da Torre. Quem ensaiou e dirigiu a representação, foi o escritor Nuno Nozelos. Tendo este «Ramo» das Endoenças sido desempenhado com muita arte e engenho, ao ponto do público assistente se deixar contagiar pelo «drama» e chorar, como se estivessem a assistir à própria Paixão de Nosso Senhor. Mas, a marca de alguns actores, com o seu grande nível de desempenho, perdurou pela vida fora e ficaram com a alcunha da personagem que representaram, como o Ti Fortunato que fez de Jesus Cristo e passou a ser conhecido por «Fortunato Cristo». A tia Maria Augusta Mesquita fez de Nossa Senhora (…). O Ti Norberto Carvalho que fez de Diabo e passaram a chamar-lhe «Diabo». O Mário Pires, que fez de Judas, e era conhecido por Mário «Bicheiro», passou a ser conhecido por «Mário Judas» até morrer (…). Hoje, os filhos ainda são conhecidos por «Filhos do Mário Judas». Ainda hoje, passados mais de 60 anos, há quem se arrepie ao recordar o momento da representação em que Jesus Cristo foi morto.
NN fez carreira no Ministério da Saúde, tal como a prestimosa esposa, Celeste, fisioterapeuta e que na doença incapacitante do marido lhe proporcionou um tratamento técnico e humano de imensa qualidade. A sua belíssima caligrafia e muita cultura alicerçou-as na meninice, imitando o Padre Machado, pároco da Torre, que para além de ter uma letra que encantava, tinha uma boa biblioteca pessoal que o NN gostava de frequentar. Conservava uma boa memória de criança e da juventude, bem patentes na sua obra. Foi às histórias que retinha dos jornaleiros, dos avós e pais e outros episódios locais, que alicerçou as «gentes da minha terra» e outros livros que se lêem com prazer, como um bom filme de acção. A sua escrita foi, para mim, uma aprendizagem que me deu créditos para me manter com mais segurança no imaterial vocabulário regionalista. Por isso, a leitura das suas obras é sempre acompanhada de pena e papel para anotar os termos e as expressões populares, algumas desconhecidas dos léxicos académicos, mas que são tão ou mais nossas do que as demais e onde sentimos melhor o pulsar das gentes guardiães da nossa cultura imaterial ameaçada pela globalização e pelo ermamento do mundo rural do Portugal Interior. Foi um privilégio, para mim, conhecer o escritor NN, que eu seguia como um «santo da escrita» que nos enriquece culturalmente e nos motiva a prosseguirmos a nossa estreita canada da vida. Os longínquos textos de Rogério Reis e de NN, no final dos anos cinquenta e principalmente dos anos sessenta, do século XX, que me influenciaram e atraíram para a lavra da escrita jornalística que persigo há mais de 30 anos.

Nota 1: Embora tenha sido convidado pela viúva, Dona Celeste, e pelo Grémio Literário Vila-Realense para participar na Homenagem ao escritor, NN, e tenha enviado o meu texto singelo dentro do tempo previsto, o mesmo não veio a ser incluído no livro «in Memoriam», pelo que o reproduzi acima.

Nota 2: A 1.ª foto tem Henrique Pedro, Jorge Lage e NN, no Espaço Miguel Torga, na homenagem ao Poeta da Montanha, em 25ABR2015. Na outra foto, NN, com 20 anos, no palco/cenário, junto ao micro, na representação das Endoenças na Torre.
Jorge Lage – jorgelage@portugalmail.com – 29MAR018
Provérbios ou ditos de Abril:

- De castanheiro caído todos fazem lenha.
- Águas de Abril são moios de milho.
- A sogra e o grão só dão lucro debaixo do terrão.
Jorge Lage – jorgelage@portugalmail.com – 23MAR2018

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Uma ideia peregrina