ACÍLIO ESTANQUEIRO ROCHA - Diário do Minho
1.
Concluímos o artigo anterior, “Dia da lembrança do Holocausto”,
com
referência à “banalidade do mal”, conceito que Hannah Arendt (1906-1975) usa no
livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963), onde
se interroga como foi possível que uma multidão de humanos fosse incapaz de
juízos morais, cumprindo, sem questionar, ordens cruéis. Hannah conectou o
conformismo com os crimes atrozes dos sistemas totalitários do século XX: as
detenções, os extermínios, os genocídios, não foram cometidos por delinquentes ou
anormais, mas por indivíduos normais integrados no sistema.
Julgado em
Jerusalém (1961), Eichmann, um dos "executores do Holocausto”, no
tribunal, só proferia frases vulgares: “foram ordens que recebi e que tinham de
ser executadas”. Aquele que Hannah vê e ouve não aparece como o monstro sanguinário,
mas como um funcionário cumpridor, um mero elo na cadeia de comando de uma
vasta teia burocrática. Arendt percebe que não existe reparação para crimes tão
hediondos (genocídio, limpeza étnica, holocausto), que nem sequer estão
previstos nos códigos.
2. Por isso,
pensar sobre o tema é momentoso, quando muitos pretendem abafar o clamor dessa
memória; o último episódio é a polémica lei sobre o Holocausto, na Polónia. Ora,
foram o racismo e a intolerância que estiveram na base desses “tempos de
morte”, e abundam hoje, até na civilizada Europa, movimentos populistas que
espalham a animosidade para com imigrantes e refugiados, e proliferam até
(pasme-se!) partidos neonazis.
Hannah
Arendt soube extrair as lições da barbárie que se apossou da Europa, pois foi
ela que definiu o totalitarismo como o “mal absoluto”, que inquire na sua obra
clássica sobre o tema, As Origens do Totalitarismo (1951) – um livro de cerca
de 700 páginas, onde se lê: “(...) as massas humanas que eles (nazis e
bolchevistas) detêm são tratadas como se já não existissem, como se o que
sucede com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas”.
O totalitarismo surge aí com pessoas que são meros funcionários,simples peças
duma imensa maquinaria administrativa, aplicando à burocracia o tópico da “roda
dentada”: o funcionário não é mais que um elemento da engrenagem que alguém
move de fora. Ao contrário dos ditadores, que executam crimes para eliminar
adversários, os agentes de governos totalitários “não eram criminosos comuns,
mas gente comum que cometeu crimes com mais ou menos entusiasmo, simplesmente
porque alguém ordenou que osperpetrasse”. O totalitarismo, como variante do
despotismo, não se funda, como este, no temor, mas no horror: “Se a legalidade
é a essência do governo não tirânico e a ilegalidade a essência da tirania, o
horror é a essência da dominação totalitária” – escreve Hannah.
Um dos
últimos capítulos intitula-se “dominação total”, onde a autora afirma: “o verdadeiro
horror dos campos de concentração reside no facto de os internados, mesmo que
consigam manter- se vivos, estarem mais isolados do mundo dos vivos do que se
tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento”. Aí, a morte em si
mesma é anónima; se, no mundo ocidental, mesmo nos períodos mais negros, sempre
se concedeu ao inimigo morto o direito a ser recordado, nos campos de
concentração arrebata-se-lhes a própria identidade da morte. Entende-se que n’A
Condição Humana (1958), Arendt proponha a palavra e a acção como os modos próprios
dos seres humanos: “A pluralidade humana, condição básica da acção e do
discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença.
Se não
fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus
antepassados, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das
gerações vindouras.
Se não
fossem diferentes, (...) não precisariam do discurso e da acção para se fazerem
entender”.
3. Hannah Arendt viveu em Lisboa, na Rua Sociedade Farmacêutica,
n.º 6, entre Janeiro e Maio de 1941, a caminho de Nova Iorque (onde chegou, com
Heinrich Blücher, a 22 de Maio de 1941). Ela tinha 27 anos quando deixou a
Alemanha (1933), depois de ter sido presa, atravessando a pé, sem documentos, a
fronteira da Checoslováquia, passando por Praga, a Genebra, até Paris (esteve
com Benjamin, Brecht, Blumenfeld e Blücher), detida depois no campo de
internamento de Gurs (Pirenéus). Foi em Lisboa que leu o manuscrito Teses sobre
a Filosofia da História, que Benjamin lhe confiara, pois, com menos sorte, por
problemas de vistos, suicidou-se na fronteira entre França e Espanha. Tem sentido
a recente recomendação para que a casa onde Hannah viveu seja identificada com
uma placa ou um pequeno monumento.
Durante 20
anos apátrida (a cidadania alemã foi-lhe retirada), cidadã americana. Em 1951,
escreveu o Manifesto Nós, Refugiados (1943), onde adverte: “(...) a história contemporânea
criou um novo tipo de humanos – o tipo dos que são postos em campos de
concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus
amigos”.
O autor não
escreve segundo o denominado acordo ortográfico.
Nota:
Acílio Estanqueiro
Rocha traz-nos um tema do nosso agrado. Que ao longo destes anos temos
abordado neste espaço. Quando em 2014/15 se tornou a falar de Hannah Arendt, já
nós, há muito, o havíamos feito neste espaço. E aos livros dela dedicamos alguns
escritos, “publicitando-os” na borda do blogue. Acílio traz-nos memórias de Walter
Benjamin que Hannah recordou num belo livro: “Homens em tempos sombrios”.
Obrigado
Acílio por ter abordado o tema.
Armando Palavras
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