Paulo Guinote - Jornal de Letras (JL)
Há mais de 20 anos, António Guterres declararia a sua “paixão pela Educação”, expressão que entrou no discurso político contemporâneo como uma espécie de lugar-comum a que recorrem em especial aqueles que nela não encontram uma prioridade na governação. Se em meados dos anos 90 isso se enquadrou numa tendência de crescimento do investimento em Educação como proporção do PIB (de acordo com os valores recolhidos pela Pordata esse valor era de 3,1% em 1985, de 4,7% em 1996, chegando a 5,1% em 2002, com o valor per capita do investimento a quase decuplicar dos 70,6 euros por habitante para quase 700), com as políticas educativas a desenvolverem-se como uma área prioritária da governação, colocando-se ao seu serviço os recursos financeiros tidos como indispensáveis, a partir de então se o discurso não ousou uma completa inversão, a acção política em torno da Educação passou a estar subordinada a agendas de outra natureza, estando subalternizada (como a Saúde e outras áreas relacionadas com as funções sociais do Estado) a exigências de tipo financeiro e economicista.
A par do
desinvestimento nesta área, em especial na sua dimensão humana, assistiu-se ao
progresso da lógica da “racionalização financeira” e à insistência no argumento
de que “investir mais na Educação não significa necessariamente melhores
resultados”. Um antigo ministro da Educação e presidente do Conselho Nacional
da Educação chegou a afirmar, em declarações à Lusa reproduzidas pelo Público
em 24 de Setembro de 2016, que “a ideia de que toda a despesa em educação é
investimento ‘é uma treta’.[1]”
E assim, a
Educação foi perdendo espaço nos orçamentos de Estado, verificando-se uma
descida das despesas com este sector ao ponto de ficar abaixo dos 4% em 2015 e
2016 (o acréscimo para 4,8% em 2009 e 2010 corresponde ao pico da actividade da
Parque Escolar, sendo que parte desses contratos estão agora sob
investigação[2]), ainda de acordo com os dados disponíveis na Pordata[3], mesmo
se ao nível do discurso político se afirmou uma recuperação da paixão de Guterres
(“É hora de voltarmos a dizer, como dissemos há 20 anos, que a educação tem que
ser de novo uma paixão deste país e é necessário investir na nossa educação”,
declarou António Costa, defendendo que uma das grandes causas da próxima
legislatura deve ser o combate ao insucesso e abandono escolar)[4].
Em 2010, num
estudo, de que era co-autor Mário Centeno, actual ministro das Finanças,
afirmava-se que “a evidência apresentada neste artigo aponta para a importância
crucial de estabelecer um ambiente institucional que beneficie o investimento
dos indivíduos na educação. Numa perspectiva dinâmica, torna-se necessário
promover um conjunto coerente de políticas que preserve os retornos
educacionais, alinhando os incentivos dos indivíduos com os da sociedade como
um todo.”[5] A abrir o artigo citava-se a frase “Se acham que a Educação é
cara, tentem a ignorância”, atribuída a Derek Bok, antigo presidente da
Universidade de Harvard.
Seria de pensar
que este tipo de confluência de perspectivas (a política de António Costa e a
técnica de Mário Centeno) permitissem abrir um novo período na governação em
que a Educação deixasse de estar condicionada pelo que se consideram ser os
superiores interesses da gestão financeira de um Orçamento que cada vez é mais
ditado por condicionalismos que se afastam do interesse da larga maioria dos
cidadãos para obedecer a preceitos ideológicos ou tecnocráticos (o que
determina o valor de 3% para avaliar da bondade ou maldade de um défice
público? Não será essa uma abstracção arbitrária ditada por teorias económicas
especializadas em falhar repetidamente as suas previsões?) e se ocupar quase em
exclusivo com a satisfação dos interesses de grupos de pressão aos quais não se
atribui a classificação de “corporativos” como aos professores quando reclamam
que os seus contratos – e não apenas os das parcerias público-privadas ou os
estabelecidos com empresas que exploram em regime de oligopólio sectores como a
energia – sejam respeitados?
Sim, é verdade que
nem todo o investimento em Educação se traduz na melhoria das aprendizagens e
desempenho dos alunos e que não há uma relação directa entre mais dinheiro na
Educação e melhores resultados em testes PISA, PIRLS ou TIMMS. Sim, também é
verdade que o investimento em Educação não significa necessariamente (ou
apenas) a melhoria das condições laborais do pessoal docente e não docente. Mas
o contrário não é igualmente uma verdade indesmentível ou claramente provada
pelos factos. O investimento feito na última década do século XX foi-se fazendo
sentir com a melhoria dos resultados dos alunos ao longo da primeira década do
século XXI.
Mas o que é mais
importante em tudo isto é que a concepção sobre o papel da Política e Economia
na definição das prioridades da governação da polis se alterou de uma forma que
seria inconcebível para os primeiros teorizadores da coisa pública (Res
Publica) como uma forma de governo o mais justa possível e em que as decisões
da governação devem subordinar-se aos interesses dos governados, dos mais
fracos e vulneráveis, mobilizando os recursos para a sua satisfação e não para
a obtenção de privilégios em causa própria ou colocando a gestão financeira
como uma valor maior do que a Educação, Saúde ou mesmo Justiça.
Recuperemos
Aristóteles que há quase 2500 anos, com todos os condicionalismos sociais da
época, afirmava que “quando se trata do governo da cidade, sempre que esse
governo esteja fundado na base da igualdade e completa semelhança dos seus
cidadãos, estes consideram justo governar por turnos; em tempos idos, como é natural,
cada indivíduo considerava justo que os cargos fossem desempenhados em
alternância, e pensava que, como retribuição, alguém zelaria pelo seu bem
próprio, tal como ele mesmo zelara pelo interesse alheio durante a permanência
no cargo. (…) A conclusão que se segue é clara: os regimes que se propõem
atingir o interesse comum são rectos, na perspectiva da justiça absoluta; os
que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos e todos eles
desviados dos regimes rectos. São despóticos, mas a cidade é uma comunidade de
homens livres.”[6]
Ou sobre a
Economia que “o domínio sobre a mulher e os filhos e sobre a casa em geral,
designado por economia, ou é exercido no interesse dos dominados ou num
interesse comum a ambas as partes. Essencialmente é exercido no interesse dos
dominados, como vemos nos demais saberes, como a medicina e a ginástica, em que
apenas por acidente pode ser considerado o interesse dos que a praticam (…). O
mestre de ginástica e o piloto visam o bem dos que se encontram sob a sua
autoridade.”[7]
Esta noção de
governação da coisa pública como um exercício em que o que está em causa é o
serviço público e não a cedência a interesses privados perdeu-se. Já Platão
avisava, pela voz de Sócrates (o grego), que “os homens de bem não querem
governar nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem
ser apodados de mercenários, exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem
de ladrões, tirando vantagem da sua posição. Tão-pouco querem governar por
causa das honrarias, uma vez que não as estimam. (…) Ora o maior dos castigos é
ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos.
É com receio disso, me parece, que os bons ocupam as magistraturas quando
governam (…). Efectivamente, arriscar-nos-íamos, se houvesse um Estado de
homens de bem, a que houvesse competições para não governar, como agora as há
para alcançar o poder, e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não
nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos”.[8]
Paulo Guinote
[1]
https://www.publico.pt/2016/09/24/sociedade/noticia/david-justino-diz-que-a-ideia-de-que-toda-a-despesa-em-educacao-e-investimento-e-uma-treta-1745109.
[2]
http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/jose-socrates/operacao-marques-as-ligacoes-do-grupo-lena-ao-parque-escolar-de-socrates.
[3] – Consulta
feita em 23 de Dezembro de 2017.
[4]
https://www.jn.pt/nacional/eleicoes/interior/costa-recupera-paixao-pela-educacao-de-guterres-4784707.html
[5] Nuno Alves,
Mário Centeno e Álvaro Novo, “O Investimento em Educação em Portugal: Retorno e
heterogeneidade”, in .Boletim Económico do Banco de Portugal (Primavera de
2010), p. 36.
[6] Aristóteles,
Política, livro II, § 6, Vega, 2008, pp. 115-116
[7] Idem, ibidem,
p. 115.
[8] Platão,
República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s. d., p. 38.
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