Fátima Bonifácio - jornal Público
A remoção de Joana
Marques Vidal não evitará o julgamento de Sócrates. Mas poderá facilitar o seu
adiamento para depois das eleições.Uma das principais especialidades do primeiro-ministro António Costa consiste em fazer dos cidadãos parvos. Anteontem abri o PÚBLICO online e deparei com a notícia — “Ministra da Justiça abre porta de saída à actual PGR”. Bingo! Há meses que se especulava se António Costa teria a coragem — ou o desplante — de não reconduzir a actual procuradora-geral, Joana Marques Vidal, empossada no cargo em Outubro de 2012. Van Dunem, ministra da Justiça, essa limitou-se a fazer de porta-voz da decisão de António Costa de expelir Joana Marques Vidal da PGR (o argumento invocado é risível, e lá irei mais adiante). Ou mais exactamente: coube à ministra ir preparando o terreno para a decisão talvez mais controversa e suspeita de todas quantas decisões controversas e suspeitas Costa já tomou até hoje.
António Costa tem
sido gabado por ter conseguido, graças à sua egrégia habilidade política,
estabelecer em torno do Partido Socialista e da “geringonça” um cordão
sanitário que deixe ambos — e que o deixe também a ele pessoalmente — ao abrigo
de uma jorrada de lama possivelmente lançada pelo desenvolvimento do ominoso
caso de José Sócrates. Esta estratégia apenas tem resultado em virtude da
amnésia e da distracção do país. Com efeito, quase ninguém ainda se lembra de
que António Costa era o número dois do “engenheiro”, e quase ninguém repara que
o pessoal político que rodeia o primeiro-ministro e integra a “geringonça” é
basicamente o mesmo que rodeava Sócrates, a começar pelo próprio Costa,
passando pelos ministros mais importantes, Santos Silva e Vieira da Silva, e a
acabar no secretário de Estado da Segurança Social, Pedro Marques; o rasto de
Sócrates chega também à Câmara Municipal de Lisboa na pessoa do presidente da
câmara, Fernando Medina, que cedo se transformou num apaniguado do círculo mais
promissor do “costismo”.
António Costa
conseguiu duas coisas: silenciar a sementeira socrática acantonada no PS e na
“geringonça”; passar a impressão, aliás verdadeira, de que Sócrates não podia
contar com o Partido Socialista para o proteger. Sócrates retribuiu-lhe a
gentileza com uma confidência que o Sol tornou pública, na qual catalogava o
ex-amigo e ex-companheiro político como um “merdas” sem “tomates para ser
primeiro-ministro”. Excelente para Costa: entre os dois, qualquer tipo de
relações estavam cortadas sem apelo. Estavam, estão e estarão. Por que raio de
motivo quer agora Costa livrar-se de Joana Marques Vidal, a procuradora a quem
se deve, entre outras, a abertura da Operação Marquês, que resultou na acusação
do ex-primeiro-ministro de gravíssimos crimes e cujo julgamento deverá (ou
deveria) iniciar-se ainda em 2018?
O julgamento, a
iniciar-se, como deve (ou deveria), lá para o Outono do ano corrente, vai
certamente prolongar-se por muitos meses (ou até anos). Com toda a
probabilidade, o julgamento de José Sócrates estará em curso ao longo de 2019,
ano de eleições em Maio/Junho (para o Parlamento Europeu) e em Setembro/Outubro
(para a Assembleia da República). Ora a “ferocidade” do “animal” (“eu sou um
animal feroz”, disse Sócrates) não deve entretanto ter-se amansado, bem pelo
contrário, deve ter-se assanhado. E, portanto, é certo e sabido que o acusado
usará do direito legal de indicar as suas testemunhas, que não podem recusar-se
a depor, presencialmente ou por escrito. E que testemunhas chamará ele de
preferência? Os seus anteriores cúmplices ou simplesmente coniventes, alguns
deles hoje no Governo, a começar pelo primeiro-ministro. Estão a imaginar
ministros e quadros do PS a peregrinar para o Campus de Justiça na Expo? Estão
a imaginar a que maquinações Sócrates recorrerá para produzir o máximo de
escândalo público?
A remoção de Joana
Marques Vidal, per se, não evitará o julgamento. Mas poderá facilitar ou
promover o adiamento para depois das eleições, quando já nada afectará os
resultados eleitorais.
O chico-espertismo
escuda-se num pobre argumento jurídico-político. Disse Van Dunem à TSF, citada
pelo PÚBLICO de 10.01.18: “A Constituição prevê um mandato longo e único.
Historicamente, é a ideia subjacente ao mandato.” Acrescentou ainda a ministra
que após o caso Cunha Rodrigues, que permaneceu no cargo de 1984 a 2000, “o que
se estabeleceu foi um mandato longo e um mandato único”. Infelizmente, é falso.
Primeiro: a
Constituição, revista em 1997, não proíbe expressa e imperativamente a
renovação ou extensão do mandato de procurador-geral, nem tão pouco a sua
exoneração antes de completado o prazo previsto do seu exercício (art.º 220;
art.º 133/alínea M). E só porque o não proíbe é que Cunha Rodrigues pôde por lá
estanciar durante 16 anos, até 2000.
Segundo: não
existe nenhuma tradição doutrinária consolidada que obrigue à substituição de
Marques Vidal em Outubro deste ano: antes de Marques Vidal, tivemos desde o 25
de Abril cinco procuradores-gerais: Pinheiro Farinha, 1974 a 1976 (dois anos);
Arala Chaves, 1977 a 1984 (oito anos); Cunha Rodrigues, 1984 a 2000 (16-17
anos); Souto de Moura, 2000 a 2006 (seis anos); Pinto Monteiro, 2006 a 2012
(seis anos). Ou seja, em cinco procuradores-gerais que estiveram em exercício
entre 1974 e 2012, só dois cumpriram o mandato pseudo-tradicional de seis anos.
Três deles foram atípicos — acaso se tivesse estabelecido um mandato
tipificado, que os números mostram não ter sido o caso. Dois casos em cinco não
fazem uma tradição histórica.
Conclusão: a
evacuação de Joana Marques Vidal, a coberto de desculpas esfarrapadas, é uma
decisão puramente política, que convém a António Costa e, por extensão, aos
seus camaradas de partido e de Governo.
Tudo aconselhava o
prolongamento do mandato de Marques Vidal, desde a sua competência, lisura e
coragem, até à notória inconveniência de a remover numa circunstância em que a
Justiça portuguesa passa pela sua maior prova. Paradoxalmente, é precisamente
por causa desta circunstância e por causa das raras qualidades da
procuradora-geral que esta se torna um estorvo para António Costa.
Historiadora
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