Os portugueses querem levar a vidinha sem sobressaltos, maçadas e vergonha
na cara, promessas em que, por exemplo à imagem de Salazar, a esquerda é
exímia. Falar-lhes de liberalismo é um luxo inútil.
À revelia dos meus princípios (é verdade, tenho dois ou três), há oito dias
participei num encontro público. Em primeiro lugar, porque se realizou a
escassos minutos de minha casa e a minha preguiça tem limites. Em segundo
lugar, porque os organizadores são pessoas que estimo e detestaria
desapontá-las. Em terceiro lugar, porque o tema era a conversão dos portugueses
ao liberalismo e sou um devoto de causas perdidas e esotéricas.
Apareceram dezenas de curiosos, dos 17 aos – faço uma estimativa – 77 anos,
talvez metade dos liberais disponíveis no país. Discutiu-se imenso. Não se
chegou a conclusão nenhuma. Sobretudo, não saiu dali a sombra de um partido, um
movimento, uma comissão, uma “iniciativa” sequer. É escusado acrescentar que a
coisa correu maravilhosamente.
Apesar da retórica oficial e oficiosa em sentido contrário, gostar da
liberdade não é para todos. Por cá, de resto, é para muito poucos. Há séculos
que filósofos, pensadores e génios diversos tentam capturar, com rede ou
zagalote, a “identidade” pátria. Eu descobri-a numa reportagem de “telejornal”
sobre a eventual proibição de fumar em carros particulares na presença de
menores. Inquirido a propósito, enquanto fumava ao volante com o filho no banco
de trás, um indivíduo declarou-se irredutivelmente a favor da putativa lei. Ou
seja, aquele portento de cidadão apenas esperava que o Estado o impedisse de
cometer um comportamento que ele próprio achava condenável. E ele próprio não
via nada de condenável nisso.
É natural. Inúmeros compatriotas esperam pelo Estado para quase tudo: a
regulação de condutas, um “apoio”, um “jeitinho”, um abrigo, um ralhete, uma
norma, um conforto, um emprego, o que calhar. Sem aval superior, nós – e por
“nós” entenda-se a população quase em peso – não existimos. Pior ainda,
desconfiamos que não somos dignos de existir. Não me canso de repetir, ou, para
ser sincero, canso-me bastante: os portugueses são crianças, genuinamente desprovidas
de um pingo de autonomia e para cúmulo satisfeitas com a situação. Às vezes
resmungam? Claro que sim, já que é dever das crianças resmungar até que as
devolvam à ordem ou lhes ofereçam o Cornetto de morango.
Esta semana, os dois principais animadores do encontro acima referido, o
Telmo Azevedo Fernandes e o Vítor Cunha, assinaram no Observador artigos acerca
da possibilidade de um liberalismo português. Começo pelo artigo do Telmo, que admiro pela
inteligência e de que discordo pelo optimismo. Resumindo demasiado, o Telmo
defende “a superioridade moral da defesa das liberdades individuais por
contraponto a qualquer das alternativas ideológicas existentes”. Aqui, está
evidentemente certo. Em simultâneo, defende ser possível convencer as gentes
dessa superioridade. E aqui está infelizmente errado.
Os portugueses não são avessos à liberdade por desconhecerem os respectivos
benefícios. Os portugueses são avessos à liberdade por conhecerem as
respectivas desvantagens – e as vantagens da atitude oposta. Na medida em que
deposita o destino nas mãos de cada um, a liberdade implica responsabilidade,
risco e uma trabalheira desgraçada, em suma exactamente aquilo que o português
evita, ou procura evitar, ao roçar-se diligentemente no Estado.
Menos esperançado que o Telmo, e para o final de um texto tipicamente
admirável, o Vítor nota o ponto: “não basta o
‘argumento da superioridade moral do individualismo’”. Mais esperançado que eu,
supõe que “a demografia envelhecida e a falência do Estado obeso farão mais
pela necessidade de mudança que qualquer acção que os liberais possam
directamente promover.”
É raríssimo divergir do Vítor. Logo, aproveito a oportunidade. Mesmo velhos
e falidos, duvido que os portugueses culpem o socialismo mitigado ou demolidor
em que intermitentemente vivemos. A culpa da derrocada final, se não for do
Espírito Santo, será como sempre atribuída a outra força externa qualquer,
empenhada por razões obscuras no enxovalho deste valoroso povo. Em parte,
aceita-se: quem não se sente capaz de cuidar de si, não se sente forçado a
assumir desvarios. O que não se devia aceitar é que os principais culpados, os
manhosos senhores que instigam a dependência para reinar sobre multidões
submissas, permaneçam invariavelmente impunes.
Ignoro se os portugueses são subordinados cá dentro porque Portugal o é lá
fora ou se Portugal é subordinado lá fora porque os portugueses o são cá
dentro. Também ignoro se a ancestral pobreza de espírito advém da ancestral
pobreza material ou se acontece o inverso. Porém, acredito que, privados de um
vestígio de emancipação, somos presa fácil de pantomineiros vários. Acredito
que os pantomineiros de hoje desceram a um descaramento inédito. E acredito que
o descaramento dos que mandam é proporcional à vassalagem dos que obedecem.
Quando, no dia seguinte a fingir comemorar a liberdade, a criatura que passa
por primeiro-ministro informa o parlamento de que não lhe deve satisfações e a
proeza não implica consequências, o nosso futuro é previsível.
Salvo os irremediavelmente patetas, os portugueses sabem que a liberdade de
“Abril” é, no mínimo, um bocadinho fraudulenta. E sabem que a “justiça social”
é um eufemismo para o controlo da economia por uns tantos. E sabem que a
retórica das “causas” é um projecto de lavagem cerebral. E sabem que o regime é
propriedade de grupos, grupúsculos e “personalidades”. Simplesmente não querem
saber. Os portugueses querem levar a vidinha sem sobressaltos, maçadas e
vergonha na cara, promessas em que, por exemplo à semelhança de Salazar, a
esquerda é exímia. Falar-lhes de liberalismo é um luxo inútil, uma
excentricidade similar a descrever os méritos do casamento aberto a um membro
do Estado Islâmico. O tipo olha-nos com desprezo, vira costas e regressa à
rotina de cortar cabeças. Os portugueses não cortam cabeças, mas não têm a sua
em grande conta.
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