O
comentador de “direita” é o proverbial idiota útil. Útil para a esquerda no
poder, que assim finge velar pela liberdade de expressão. Útil para os “media”
avençados, que assim fingem “pluralismo”.
Graças
ao milagre económico português, não só cai o desemprego como se levantam novos
e fascinantes empregos. Caso o desejem, os portugueses realmente apetrechados
para o ofício podem enveredar por uma carreira de comentador político, na
imprensa ou, se lhes sair a sorte grande, na televisão, que dá “visibilidade” e
tira a maçada de escrever. Aqui, as possibilidades são diversas, ainda que
apenas uma valha a pena. Os comentadores de esquerda, com filiação partidária
confessa ou pessimamente camuflada, já ocupam dois terços das vagas
disponíveis. Os comentadores que não são de esquerda querem-se escassos,
obsequiosos e, de preferência, calados. Pelo que se vê nos inúmeros programas
de “debate” e similares, as oportunidades passam sobretudo pelo cargo, hoje
imprescindível, de comentador de “direita”. As aspas resumem a coisa. Nos
parágrafos abaixo, eu desenvolvo-a, de modo a fornecer aos presumíveis
candidatos um guia profissional adequado.
1.
O comentador de “direita” não é de direita, embora o apresentem à direita e ele
pactue com a encenação. A julgar pelas opiniões de que se alivia, por exemplo o
ardor com que defende o actual governo e execra o anterior, um ingénuo seria
levado a pensar que o comentador de “direita” é de esquerda. Aliás, toda a
gente, incluindo o próprio, pensa exactamente isso. O comentador de “direita”
não necessita de uma filiação no PSD, mas esta pode ser um incentivo para
tentar a expulsão e o subsequente martírio.
2.
O comentador de “direita” mal disfarça o júbilo que lhe suscita um governo a
reboque da extrema-esquerda. Dado que ninguém o confronta com tamanha bizarria,
beneficia de rédea solta para elogiar o dr. Costa, que o comentador de
“direita” considera uma personagem de gabarito. Também louva com empenho a
“irreverência” das meninas do BE e a “coerência” do sr. Jerónimo. A cada dois
meses, não é desajustada a referência simpática à dra. Cristas, a fim de provar
que, ao invés de que sucede com Pedro Passos Coelho, é possível uma oposição
construtiva. Na “óptica” do comentador de “direita” (por motivos que ignoro, é
usual o comentador de “direita” vender óculos), oposição construtiva é aquela
que evita a “crispação” e aplaude o governo.
3.
O comentador de “direita” só pode apreciar líderes da direita se estes se
chamarem Sá Carneiro, mesmo que na época de Sá Carneiro o comentador de direita
frequentasse a creche ou os convívios do PCTP. Tolera-se a ocasional menção à
dra. Ferreira Leite, a Marques Mendes, no fundo outros comentadores de
“direita”, para legitimar encómios ao governo actual. Cavaco Silva e Pedro
Passos Coelho são interditos absolutos. Também podem evocar com grande
nostalgia Mário Soares, a quem aparentemente devem tudo: a liberdade, a
democracia, a alegria de viver e um almoço na Tia Matilde.
4.
O comentador de “direita” deve justa, específica e activamente odiar Cavaco
Silva e Pedro Passos Coelho. O primeiro porque, cito, abusou dos poderes
presidenciais, conspirou contra os governos do “eng.” Sócrates e ainda por cima
escreveu um livro a contar tudo. O segundo porque correu com o “eng.” Sócrates,
venceu o dr. Costa e nunca convidou o comentador de “direita” para o cargo que
este, indubitavelmente, merecia. E ambos porque estão vivos.
5.
O comentador de “direita” não pode admitir com franqueza que gosta do “eng.”
Sócrates. Mas como de facto não desgosta do “eng.” Sócrates, condói-se imenso
com o tratamento que o Ministério Público tem dispensado ao antigo governante.
Acerca do tema, começa as intervenções com a imprescindível frase: “Sou
insuspeito de ser um admirador do eng. Sócrates, mas…”. Ao “mas” segue-se
lengalenga épica contra as cabalas, as escutas, as insinuações, as infâmias, a
justiça “mediática”, o “Correio da Manhã”, o juiz Carlos Alexandre e o mundo em
geral.
6.
O comentador de “direita” tende a achar positivo o desempenho do prof. Marcelo,
à superfície por via da “proximidade” e dos “afectos” (juro), no fundo por via
do matrimónio entre o PR e o PM. Se, por absurdo, houver divórcio, o comentador
de “direita” achará o desempenho do prof. Marcelo menos positivo.
7.
O comentador de “direita” orgulha-se de ter amigos de esquerda. Se repararmos
bem, o comentador de “direita” tem exclusivamente amigos de esquerda.
8.
O comentador de “direita” não se limita a abominar a direita a que diz
pertencer: quase tão má é a extrema-direita, cujas sombras, repete ele, ameaçam
a Europa e os EUA. Misteriosamente, o apreço do comentador de “direita” pela
moderação política termina no momento em que a coerência recomendaria a
condenação de todos os imoderados. Vinte deputados “fascistas” na Holanda (ou o
“populismo”) tiram-lhe alegadamente o sono. Quarenta deputados leninistas em
Portugal (ou a “representatividade”) embalam-no como os anjos.
9.
O comentador de “direita” alinha sempre com as “causas” do momento. Dos
movimentos “gay” ao apoio a refugiados que linchariam “gays” mal pudessem, da
liberalização das drogas “leves” à proibição dos refrigerantes, do aborto à
eutanásia, o comentador de “direita” não perde tempo a ponderar a complexidade
dos assuntos e assume imediata e histericamente a posição que lhe parece mais
“progressista” e lhe assegura a bancada dos “progressistas” em futuros “Prós e
Contras”, a consagração televisiva da ortodoxia. Passar por retrógrado
assusta-o mais do que acordar em cuecas no Rossio.
10.
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil. Útil para a esquerda no
poder, que assim finge velar pela liberdade de expressão. Útil para os “media”
avençados, que assim fingem “pluralismo”. Útil para ele, que assim ganha a vida
mas não vergonha na cara. E útil para nós: o comentador de “direita” é consequência
de um país triste, mas, se o contemplarmos na perspectiva que merece, é causa
de muitas gargalhadas.
Nota:
por férias do autor, esta coluna não se publicará nas próximas duas semanas.
Alberto Gonçalves regressa a 8 de Abril.
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