É
o paradoxo dos dias que correm: cá dentro há foguetório com a execução
orçamental, lá fora alerta-se para a falta de crescimento e de reformas. Nós
fazemos orelhas moucas, pois nunca aprendemos nada
Gozem
a vida enquanto podem. Amanhã logo se vê.
Este
não é conselho que gente assisada dê, muito menos um conselho que passe como
mensagem de um governo responsável, mas é assim que estamos. E o país deixou-se
contagiar, embalado na ilusão. Sim, porque é na ilusão que vivemos.
Esta
semana a OCDE esteve em Lisboa a apresentar o seu relatório sobre Portugal, um
documento cheio de avisos e recados. Dele ressaltavam duas preocupações: a
falta de crescimento e, na origem desta, a falta de investimento. Nada que nos
surpreenda, pois sabemos que em 2016 o crescimento ficará abaixo dos 1,6%
registados em 2015, e agora a organização prevê que o mesmo suceda em 2017 e
2018. Tudo isto com o investimento 30% abaixo do registado em… 2005.
Mas
o que preocupou Mário Centeno ao conhecer o relatório? Dizer que “todas as
instituições internacionais falharam nas suas previsões” relativas a Portugal.
Como? Será que ouvimos bem? É que há um ano, quando elaborou o seu primeiro
Orçamento do Estado, O mesmo Centeno previu um crescimento de 1,8%, e este
deverá ficar-se pelos 1,2% ou 1,3%. Já a OCDE previa na altura um crescimento
de 1,6% (depois corrigiu em baixa para 1,2%), o FMI de 1,4% e a Comissão
Europeia de 1,6%. O que significa que todas essas instituições se enganaram –
mas todas se enganaram menos do que o Governo e o próprio Mário Centeno.
Como
é possível então que o ministro das Finanças tenha dito o que disse sem se
engasgar? Porque ele não quer falar de crescimento (e ainda menos de
investimento): ele, tal como António Costa, só quer falar de défice. De repente
os políticos que andaram com o “há vida para além do défice” na boca
transformaram o défice no alfa e ómega que determina o seu sucesso ou
insucesso. Só que infelizmente o défice de que falam é uma espécie de mentira
piedosa para a Europa consumir e o pacóvio engolir.
Eu
sei: o número de que todos falam é 2,3%. “O menor défice da democracia
portuguesa”, repetem os ministros a todo o momento e, depois de conhecidos os
números mais recentes, é bem provável que o número seja mesmo esse. O problema
é como ele foi conseguido.
A
análise mais recente da UTAO, um organismo conhecido pela sua independência e
competência técnica, fornece algumas explicações interessantes para como se
chegou aqui.
Primeiro
ponto: o Governo cortou de forma brutal no investimento público. Menos 955 milhões de euros
do que o previsto no seu próprio Orçamento, ou seja, 955 milhões de “plano B”
que levaram a que o investimento público ficasse 433 milhões de euros abaixo do
realizado em 2015 na vigência da híper-super-radical-liberal anterior maioria
que estava a “destruir” os serviços públicos.
E
onde foi que houve menos investimento? Vale a pena tomar nota: menos 29,8% na
Saúde, menos 65,8% no ensino básico e secundário, menos 50,8% no Metro de
Lisboa e menos 66,6% no do Porto. Estes cortes foram tão acentuados que não
podemos falar apenas de ter deixado de se investir no futuro – deixou-se de
gastar o mínimo para manter algumas sistemas vitais a funcionar. Já em tempos
expliquei como a situação no Metro de Lisboa me levava a ter saudades do tempo das greves , mas o que acaba
de se passar na Escola Alexandre Herculano no Porto é do
domínio do surreal. Como se sabe, a escola teve de fechar por uns dias porque
chovia nas salas de aula, sendo que havia seis milhões de euros de fundos
comunitários para realizar as obras de requalificação. Porque não foram estes
usados? Porque o governo pretendia que fosse a Câmara do Porto a colocar a
verba remanescente, e esta naturalmente recusou-se, pois o edifício não lhe
pertence. E Governo ficou-se nas covas, por causa dos cortes no investimento.
Ao
mesmo tempo que colocava o investimento público no nível mais baixo (em
percentagem do PIB) dos últimos 60 anos – um feito deveras extraordinário para
um governo de esquerda –, o Governo conseguia o seu “milagre orçamental” com recurso
a mais alguns estratagemas. O mais conhecido foi o “perdão fiscal”,
o PERES, que terá permitido encaixar 551 milhões de euros. Menos conhecida foi
a operação de reavaliação de activos que terá rendido, em sede de IRC, mais uns
100 milhões. Mesmo com estas duas ajuda a receita fiscal ficou bem abaixo do
que estava previsto, pois quase todos os restantes impostos sofreram com o
facto de o crescimento económico ter ficado bem aquém (700 milhões aquém) das
previsões de Mário Centeno.
Mas
não ficámos por aqui, sendo que a outra medida de que mais se falou foram as
“cativações”, que terão valido 445 milhões e que ninguém sabe exactamente que
sectores e departamentos afectaram. Foram um “plano b” sem o ser, um “orçamento
rectificativo” não assumido e, por isso, uma prática orçamental menos séria e
menos transparente. Aqui e além vamos sabendo de fornecedores do Estado a adiar
facturas para 2017, de serviços públicos sem meios para funcionarem, de
organismos a fecharem as portas ao público, de hospitais sem poderem comprar os
medicamentos de que necessitariam ou de concursos para bolseiros de
investigação que derraparam de 2016 para 2017, mas a opacidade do exercício
orçamental só é superada pelo silêncio ensurdecedor dos parceiros da troika,
que agora engolem tudo, ou quase, sem uma lamúria ou um protesto. Basta
recordar que quase não tugiram nem mugiram mesmo quando se soube,
pelo Observador, que o secretário de Estado da Saúde assinara um despacho a dar
instruções aos hospitais para limitarem as reparações de equipamentos médicos e
não renovarem os stocks de medicamentos.
Medidas
como estas permitiram chegar ao fim do ano com um número “para a Europa ver”,
mas agravando pelo caminho a factura a pagar pelas gerações futuras. Isso
sucedeu quer por a dívida ter continuado a aumentar (mais 9,5 mil milhões de euros
em 2016), quer por as despesas fixas da administração pública terem aumentado
mais do que o previsto por via das famosas “reposições” e “reversões”. Foi o
caso das despesas com pessoal, que excederam o orçamentado em 1,2%, ou seja
mais uns 225 milhões de euros. Repuseram-se salários, regressou-se às 35 horas,
não se reformaram tantos funcionários quantos se esperava, houve necessidade de
contratar mais trabalhadores e, como estamos a falar da principal clientela da
“geringonça”, agora só se fala de integrar os chamados “precários” (de resto
quem ouve falar os partidos da “geringonça” arrisca-se a ficar com a ideia de
que em Portugal só há funcionários públicos ou empresas públicas, tal a fixação
na defesa dos seus interesses corporativos).
Depois
de todos estes números, e para não estar a incluir quadros, restará dizer que
se somamos todas as parcelas que entraram para o nunca assumido “plano b”
(corte no investimento, PERES, cativações e reavaliação de activos) chegamos a
cerca de dois mil milhões de euros. Ou seja, sem essas medidas ora
extraordinárias, ora difíceis de prolongar no tempo indefinidamente sem
perturbações ainda mais graves dos serviços públicos, o défice de 2016 teria
ficado em 3,4% e não nos 2,3% anunciados. Teria piorado em vez de melhorar.
Desgraçadamente
já sabemos que, para consumo político interno, o que vai contar é o número
mágico de 2,3%. Em Bruxelas também não quererão ouvir falar de nenhum outro,
mesmo sabendo por que caminhos se chegou a este resultado. A Comissão, já fomos
disso avisados, é “assumidamente política”,, e a política que neste momento
conta é a de não fazer ondas.
O
problema, o nosso grande problema, é que o mundo e a economia não se faz apenas
de políticos e de eurocratas, pelo que há quem continue a olhar para Portugal
com a desconfiança própria dos que sabem que não estamos a ir pelo melhor
caminho. Ainda agora a Fitch,
no relatório em que manteve no “lixo” a dívida portuguesa, escrevia que “até ao
momento, o Sr. Costa tem um bom historial a gerir as diferenças entre os
partidos, o que assegura estabilidade política. Contudo, o problema é que há
pouca capacidade para aplicar reformas estruturais ambiciosas em outras áreas
da política económica”. Também a OCDE nos veio dizer que as reformas
estruturais feitas desde 2011 “sustentaram a recuperação gradual da economia
portuguesa” mas que agora o ímpeto reformista esfumou-se. E por fim outra
agência de notação, a Moody’s,
já nota uma “pequena deterioração” na vontade de ter as contas públicas em
ordem.
Isto
significa que, para os que nos olham sem filtros políticos, as contas não estão
bem – apenas parecem bem. É por isso que, nos mercados da dívida, os juros
continuam a subir. Se Portugal tivesse mantido as taxas de juro da
Primavera/Verão de 2015, os empréstimos realizados em 2016 custariam menos 200
milhões de euros em juros todos os anos (ver aqui as contas). Mais: se Portugal
tivesse mantido esse nível de juros baixos teria podido trocar dívida mais cara
por dívida mais barata (por exemplo: teria amortizado num valor superior o
empréstimo do FMI, como estava previsto pelo anterior Governo), o que significa
que teria “reestruturado” de forma benévola uma parte da dívida, com benefícios
óbvios no médio e longo prazo.
Mas
isso que interessa? Aparentemente nada. Enquanto o Banco Central Europeu for
mantendo os juros num nível comportável continuamos naquele intervalo enquanto
o pau vai e vem e folgam as costas.
E
é nisto que estamos. Enganamos e enganamo-nos com números que apenas servem
para fingir que os problemas estão resolvidos quando, afinal, apenas se varreu
o lixo para debaixo do tapete. E se a “descompressão” lá acabou por levar a
alguma retoma do consumo, isso foi feito à custa de níveis de poupança
historicamente baixos.
O
país, ou uma parte dele, parece estar como Costa: o que conta é viver mais um
dia. 2016 já passou, em 2017 não deve ainda haver problemas de financiamento do
Estado, em 2018 logo se vê. Até lá, repito, não nos fustiguem com essa chatice
dos números e com essa coisa da realidade, que nem queremos ouvir. Só queremos
é dar descanso às costas.
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