Os
professores estão treinados para aguentar as espertezas e os ziguezagues da
geringonça educativa. Mas olhe que estão “congelados”, em salários e carreiras,
há uma década.
Quando
vi a apresentação do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória,
lembrei-me do primeiro-ministro mais divertido da época democrática, de sua
graça Pinheiro de Azevedo, e da resposta vernácula que deu a propósito do
sequestro de que foi vítima. Não a escrevo, por decoro. Contenho-me para não a
soletrar como contributo único que o perfil merece, em sede da discussão
pública que ora decorre. Pinheiro de Azevedo imaginava-se rodeado de
gonçalvistas. Eu sinto-me sequestrado por pedabobos que querem redesenhar a
realidade. Falo para si, secretário de Estado João Costa, que o seu ministro
limitou-se a saltar para o estribo do comboio em movimento.
A
questão não é o perfil de saída dos alunos. É o seu perfil de entrada. São
todos os problemas trazidos para o interior da escola, cuja solução não lhe
cabe, muito menos sem meios nem autonomia. Fixe o que lhe digo. Se por parte
dos professores se verificar uma adesão acrítica à sua modernidade bacoca e ao
seu piroso homem novo, não exulte. Preocupe-se. Significará isso que a classe
atingiu o auge da desistência. Ou da resignação. Escolha a palavra.
Disse
o senhor que o novo perfil do aluno é um documento que faltava para dar
conteúdo ao alargamento da escolaridade obrigatória. Errou. Bem ou mal, goste
ou não goste, o que dá conteúdo ao prolongamento é o plano de estudos vigente e
os programas disciplinares das diferentes áreas que o compõem. O referencial de
competências que agora sintetizou não vai além da reposição de conceitos
banais, de aceitação pacífica, há muito presentes na cartilha geral dos
professores. É uma apropriação, mal disfarçada, de máximas expressas em
publicações não citadas (vide, por todas, The National Curriculum in England.
Key Stages 1 and 2. Framework Document. Department for Education. September,
2013) e em duas publicações, uma da UE (Key Competences for Lifelong Learning –
A European Reference Framework), e outra da OCDE (Future of Education and
Skills: Education 2030), mal aludidas num texto presunçoso, sem um parágrafo
sequer de referências bibliográficas. Definindo um perfil de chegada,
permitirá, se permitir, aferir se o plano de estudos contribui ou não para ele.
Mas não confere, coisa nenhuma, qualquer conteúdo ao prolongamento da
escolaridade. Não confunda velocidade com toucinho, senhor secretário de
Estado.
Disse
o senhor, depreciando-o, que o último prolongamento da escolaridade obrigatória
foi um acto administrativo. Voltou a errar. Um secretário de Estado não pode
abrir a boca e dizer o que os pés pensam. Esse prolongamento não foi uma
iniciativa do chefe da repartição de finanças do seu bairro. Foi uma lei da
Assembleia da República (Lei nº85/2009), aprovada com os votos do PS, PCP, BE e
PEV e a abstenção do PSD e do CDS/PP. A isso chama-se um acto político. Aquilo
a que chamou acto administrativo não está assinado por um trio de amanuenses.
Está assinado pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da
República e pelo primeiro-ministro.
Perguntou
o senhor, publicamente: “Será mesmo compatível com o desenvolvimento
científico-tecnológico dos últimos anos termos uma Europa com refugiados a
morrer às suas portas ou uma população estudantil no seio da qual observamos um
aumento da violência no namoro?” Respondo-lhe com duas perguntas: que tem isso
a ver com o seu pomposo Perfil do Aluno para o Século XXI? Crê que a partir
dele cada adolescente português vai partilhar haveres com dois sírios e um
iraquiano e enviar rosas diárias à namorada?
O
secretário de Estado João Costa louva as suas “aprendizagens essenciais” ao mesmo
tempo que critica as “disciplinas estruturantes” de Nuno Crato. Afirmações
suas, justapostas a afirmações do seu patusco ministro, tornam a coisa cómica.
Disse o primeiro que o perfil faz parte de um puzzle, de que as aprendizagens
essenciais são peça fundamental. Disse o segundo que acabaram os saberes
essenciais. Em que ficamos, meus senhores?
O
documento está agora em consulta pública. Para quê, senhor secretário de
Estado? O óbvio não tem discussão. Se escrever um papel a dizer que os
políticos não devem roubar e que as mulheres não podem ser violadas, acha que
alguém decente vai discordar? Se se tratasse de saber como conseguir tais
desideratos, talvez pudéssemos dar achegas. Mas nesse quadro, como é hábito nas
consultas públicas, as decisões estão tomadas. O senhor já as anunciou.
Resumindo,
senhor secretário de Estado, do baú dos sempre-em-pé saiu um eloquente de
múltiplos saberes, Guilherme de Oliveira Martins, para coordenar 11 sábios e
três consultores extra. Esse comité de notáveis demorou seis meses para parir
um papel que, expeditamente, um par de horas de copy/paste bem dirigido faria.
Não deixa de ser curioso que a prosa, holofote futurista com implícita
menorização do passado, tenha ido colher âncora a um pensador que tem hoje 96
anos e tomado por referência sete postulados de uma obra que o mesmo escreveu
há 17. Com humildade marota, o senhor transformou a coisa em referencial
moderníssimo, que salvará o futuro. Com essa humildade, reflicta no que lhe vou
dizer.
Ainda
o senhor era imberbe e já os professores mais velhos tinham passado por
múltiplos programas e conteúdos, objectivos gerais e específicos, unidades
didácticas, pedagógicas ou lectivas, conforme a moda, pedagogia por objectivos
e objectivos sem pedagogia, ensino centrado no aluno nas semanas pares e nos
professores nas ímpares. Quando aquilo a que chama “currículo flexível” se
chamou “gestão flexível do currículo”, já lá vão 18 anos, assistiram a
estratégias cirúrgicas de remoção de obstáculos para que a rapaziada passasse
toda. Mais recentemente resistiram às “competências básicas” doutros
operacionais da sua turma e à paranoia dos milhares de metas de Nuno Crato.
Depois disso tudo, estão treinados para aguentar as espertezas e os ziguezagues
da geringonça educativa e, agora, os seus “perfis de competências”.
Genericamente até me parece que se têm deixado embalar pelo seu discurso
redondinho. Mas olhe que estão “congelados”, em salários e carreiras, há uma
década e as suas pós-modernices não derrogam o aforismo popular: honrarias sem
comedorias são gaita que não assobia.
Sem comentários:
Enviar um comentário