João
Miguel Tavares - Público
Nós
estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais governantes. Garantem
que é possível safarmo-nos assim, com um regoverno cheio de reversões e falho
de reformas.
O
Presidente da República ficou desgostoso por os portugueses terem elegido
“geringonça” como palavra do ano. Ele teria optado por “descrispação”. É uma
escolha surpreendente de Marcelo, desde logo porque a palavra não existe. Porto
Editora, Houaiss, Aurélio, Academia – nenhum dicionário cá de casa a reconhece.
Mas o que em Cavaco seria ignorância, em Marcelo é imaginação, e “descrispação”
está em linha com a bonita mensagem que nos deixou na passagem do ano, quando
elogiou o “clima menos tenso, menos dividido, menos negativo cá dentro e uma imagem
mais confiável lá fora”.
Estamos
mais descrispados, de facto, e descrispámo-nos graças a um trabalho conjunto de
Marcelo e António Costa, um a dar beijos e abraços, o outro a distribuir
sorrisos, numa autêntica suruba de afectos. O resultado de tanta energia
positiva está à vista. Clima menos tenso? Confere. Menos dividido? Confere.
Menos negativo? Confere. Uma imagem mais confiável lá fora? Não confere. Ups,
há qualquer coisa que falha nesta narrativa. Ninguém pode sinceramente dizer
que o país está em 2017 com uma imagem “mais confiável lá fora”, e a prova
disso é que os juros a 10 anos da nossa dívida não param de crescer. Acabámos
de passar a barreira psicológica dos 4%, e nada indica que fiquem por aí. E é
neste ponto preciso que a história da descrispação e do clima menos tenso,
menos dividido e menos negativo se revela aquilo que realmente é: uma autêntica
e descabelada fraude.
Desta
fraude, nem António Costa, nem Marcelo Rebelo de Sousa, devem ser considerados
inocentes no dia em que o diabo chegar – porque ele, acreditem, não vai falhar
à chamada. Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais
governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com um regoverno cheio
de reversões e falho de reformas. Muitos acreditam nisso. Mas não é possível.
Quando falo em “fraude” não estou a dizer que a descrispação não exista. Pelo
contrário: ela existe. Estou a dizer que não deveria existir, tendo em conta o
estado lastimável em que Portugal se encontra e a sua dependência total de
decisões sobre as quais não tem qualquer controlo – seja o fim do programa de
compra de dívida do BCE, seja a subida de juros nos EUA. O primeiro-ministro e
o Presidente da República uniram as mãos para anestesiar o país: um colocou a
máscara e o outro abriu o oxigénio.
Portugal,
contudo, não deixa de estar deitado na mesa de operações, dependente, incapaz
de tomar decisões difíceis, semi-comatoso. Ninguém está a fazer nada por ele. A
esta anestesia sem intervenção cirúrgica tem-se chamado “descrispação”. Mas
serve para muito pouco e está longe de ser qualquer coisa próxima de uma cura.
É mesmo só um entorpecimento momentâneo, que nos distrai e alivia. Uma
bebedeira de facilidades. Uma alienação dos problemas que nunca deixaram de
existir. Eles permanecem lá todos, e nem sequer estão adormecidos – o simples
passar do tempo agrava os seus efeitos.
Agora
que os juros chegaram aos 4% que alegadamente assustam as agências de rating, e
António Costa se vê obrigado a reafirmar a sua confiança no país a partir da
Índia, convinha começar a substituir o optimismo descerebrado pelo realismo
lúcido, e admitir que a “descrispação” é apenas um novo nome para uma velha
prática: adiar ao máximo a resolução dos problemas difíceis. Querem um conselho,
caros leitores? Vejam se se apressam a crisparem-se outra vez, porque nada de
bom aguarda este país.
Jornalista
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