Em
1990, a editora Relógio D’Água (colecção autores do Leste) teve a “ousadia” de
publicar um pequeno volume de 120 páginas de Varlam Chalamov: Os “Contos de
Kolimá”. Daí para cá, ou seja, já lá vão 26 anos e vergonhosamente nunca mais
houve em Portugal uma reedição dessa extraordinária narrativa que retrata a
frio o Grande Terror Estalinista. Estes contos são um testemunho brutal de
Varlam sobre aquilo que se passou no Gulag.
A
editora 34 de São Paulo, ao longo do ano de 2015, veio colmatar essa lacuna publicando os contos completos em seis volumes, cerca de 2000 páginas, cujo 1º volume é traduzido por por Denise Sales e Elena Vasilevich.
Os
livros da 34 agora publicados no Brasil foram traduzidos com base na edição
integral russa, organizada cuidadosamente pelo próprio autor. A apresentação do
primeiro volume é de Boris Schnaiderman que sugeriu a publicação. E inclui o
prefácio de Sirotínskaia. Para a tradução desse universo assombroso de Varlam,
a editora contou com a colaboração de oito tradutores. Com essa aposta
pretendeu-se assim compreender a linguagem dos campos, um mundo desconhecido
até dos russos, pois o assunto era tabu e proibido. O relato de Varlam é único,
bem diferente do dos escritores clássicos e de outros sobreviventes que
passaram a experiência a livro como o conhecido “Arquipélago de Gulag” do
prémio Nobel Aleksandr Solzhenitsyn.
As
tradutoras do primeiro volume dizem: “Tentamos manter as frases curtas e a
pontuação do autor pela característica do impacto”, acrescentam, contudo, “quando
ele escreve sobre a natureza, vemos uma narrativa com período longo, ponto e
vírgula, muitos adjetivos. Ou seja, diferente de quando fala do homem, sempre de forma
seca, como achava que eles ficavam naquelas condições. Sem nada de humano. Sem nenhuma
beleza.”
Daniela
Moutian que juntamente com seu pai, Moissei (que deixou a União Soviética em
1972 para fugir do regime comunista e vive desde então no Brasil), traduziram o
5º volume, “A Ressurreição do Lariço”, acrescenta: “Chalámov é a concisão
total. Temos que polir frase a frase. Este é um dos livros mais difíceis que já
traduzi. É o retrato do horror. Não tem como respirar com esses contos. É
bruto, áspero, seco”.
Já
o editor Cide Piquet comenta a obra de Varlam desta forma: “Saímos do livro
com a sensação clara da quantidade de sofrimento que uma pessoa consegue
suportar. E não é só o sofrimento físico. É a degradação moral, a humilhação. É
tudo muito pesado. Mas o mais impressionante é como ele consegue extrair beleza
daquilo, dar forma literária e fazer contos belíssimos”.
No
final do ano de 2015 foram lançados todos os restantes volumes e no prefácio de
“A Margem Esquerda” (apresentado por Cecilia Rosas) de Roberto Saviano pode
ler-se: "Não se deixem desencorajar pelos contos que vão ler, não partam
prevenidos por saber que sentirão na carne sensações atrozes, não se assustem
por saber que conhecerão horríveis torturas e tremendas injustiças. Os escritos
de Chalámov são a confirmação do bem. Pode parecer paradoxal, mas é assim"
Filho
de um padre ortodoxo, Varlam Chalámov viveu os seus primeiros 22 anos em
liberdade e os quase 20 seguintes como prisioneiro político em Kolimá, uma
imensa mina de ouro. A trassa era o
caminho que os prisioneiros percorriam para alcançar os diferentes campos
dispersos pela taiga. São desertos gelados atravessados pelo rio Kolimá. Dois
milhões de quilómetros quadrados a leste do Lena, para os quais foram
deportados cerca de dois milhões de prisioneiros entre 1932 e 1957. Tanto Anne
Applebaum em “Gulag”, como Evguenia Guinzbourg, em “Le ciel de La Kolyma” o
testemunham.
A
este lugar Varlam chama “o desembarcadouro do inferno”. Num dos seus contos
descreve minuciosamente técnicas para conduzir um carrinho de mão, de forma a
economizar esforço. Quando os pelotões fuzilavam sem descanso Varlam diz-nos:
“Durante meses, de dia como de noite, por ocasião das chamadas da manhã e da
noite, foram lidas inúmeras condenações à morte. Com um frio de cinquenta graus
negativos, os prisioneiros músicos – de delito comum – tocavam uma marcha antes
e depois da leitura de cada ordem. As tochas fumegantes não conseguiam
atravessar as trevas e concentravam centenas de olhares nas folhas de papel
fino cobertas de gelo em que estavam inscritas as horríveis mensagens”. Nas
caves realizavam-se fuzilamentos; espaços onde 50 pessoas ocupavam o lugar de
20 com direito a 200 gramas de pão diárias.
Não
há ninguém que não tenha ouvido falar de Auschwitz. Mas quem sabe que Kolimá
foi uma gigantesca máquina de aviltar e matar? Poucos. Em que escolas se fala
de Kolimá? Vassili Crossman tocou a fundo a morte em massa, outros autores se
lhe seguiram, incluindo o testemunho pessoal de Varlam.
Kolimá
é lugar de maldição e o rio que ali passa foi também enchido pelas lágrimas dos
condenados como no Cócito de Dante. Varlam não tem dúvidas quando se refere a
este local: “Recordar primeiro o mal, e o bem depois. Recordar o bem durante
cem anos, e o mal durante duzentos anos”. E durante outros vinte anos passou -os
a escrever estes contos. Armando
Palavras
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