Os franceses que querem abolir o burkini
invocam a separação entre a Igreja e o Estado. Mas os franceses habitualmente
mais orgulhosos da separação entre a Igreja e o Estado não querem abolir o
burkini. Em que ficamos? Trapos à parte, toda a gente acha positivo que o
Estado se mantenha distante da Igreja. E é esquisito que poucos, na França e
aqui, desejem alargar a distância ao resto.
Não ignoro que, de Lutero a Jefferson, a
separação em causa inclui subtilezas que escapam à concepção comum. Para não
complicar as coisas, uso a concepção comum e pergunto: porque é que não se
separa tudo, ou quase tudo, do Estado? Se pelo menos desde a época das Luzes se
vê com óptimos olhos que o poder não intervenha nas crenças religiosas (e
vice-versa), continuamos nas trevas quando se trata de afastar o poder das
outras instâncias da sociedade.
Da educação, por exemplo. A que título é
que criaturas sem préstimo, nomeadas ou instaladas num ministério, devem
influenciar o tipo de escola em que se inscrevem as criancinhas, os currículos
a enfiar na cabeça das criancinhas e o nível de exigência a que as criancinhas
estão sujeitas? E quem diz a educação, diz o trabalho (o que são
"políticas de emprego" e como se distinguem das políticas que
invariavelmente criam desemprego?). E diz a iniciativa (o que é
"investimento público" e o que legitima que os seus proponentes nunca
se responsabilizem pelo respectivo prejuízo?). E diz a propriedade (o que, além
do financiamento partidário, da retribuição de favores e da compra de votos, justifica
o saque regular dos cidadãos por via do fisco?). E diz o que calha.
Dizer, conforme acontece, que o Estado não
é "pessoa de bem" é que não basta: enquanto "pessoa", o
Estado é indivíduo de péssimo carácter, que ninguém com os parafusos todos permitiria
em sua casa. Infelizmente, não falta gente com falta de parafusos a convidá-lo
para se sentar no sofá da sala, aliás em risco de apreensão por atraso no IMI.
Os entusiastas do Estado argumentam que sem este não haveria estradas (pois
não: seria preciso inventar construtoras privadas e pagas mediante, sei lá,
portagens), electricidade (óbvio: imaginem se a EDP fosse privada) e até
desporto (sem a fundamental "tutela" arriscaríamos o fracasso
olímpico de uns EUA). Os entusiastas do Estado chegam a entusiasmar-se com a
demagógica ideia de "proximidade", sendo que "próximo" é o
lugar onde o Estado melhor arrasa as nossas vidas.
Separar o Estado da Igreja foi um passo no
caminho da liberdade. Passaram-se séculos e não demos o passo seguinte. Em
matéria de liberdade, ainda estamos a gatinhar. E a fingir não perceber que, no
que toca ao Estado, o Estado estraga aquilo em que toca. Significa isto que o
Estado é desnecessário? Sim, excepto, com parcimónia, na justiça e na saúde: o
Estado é talvez útil se formos vítimas de assaltos ou doenças. No geral, porém,
são os assaltos do Estado que nos deixam de cama.
O BOM
Um anticomunista primário
Quando o PS se converte à
extrema-esquerda, valha-nos Jerónimo de Sousa para demolir o comunismo numa
única frase: "Património do PCP não se deve a favores do Estado." Ou
seja, o PCP preza a propriedade privada e despreza a "redistribuição"
estatal, ideias sadias e motivadas pela notícia de que os imóveis partidários
estão isentos de IMI. Enquanto grande proprietário, o PCP não quer pagar um
imposto grotesco e faz muito bem. No dia em que o PCP conceder aos cidadãos os
princípios pelos quais se rege, o mundo será um lugar melhor.
O MAU
Transformações
Durante décadas, cada concurso de Miss
Mundo, Miss Portugal ou Miss Chelas era ridicularizado como um desfile (com
trocadilho) de frivolidade, ignorância e patetice. Agora que Barcelona se
prepara para receber o primeiro concurso de Miss Transexual, e que um/a
português/a participa nele, a conversa passou para o "combate ao
preconceito", a "coragem" e não sei o que mais. Trata-se, claro,
de conversa fiada. A coisa continua pateta, e valorizá-la apenas pela
"diferença" é a melhor maneira de garantir que as diferenças se
mantêm.
O VILÃO
Caça às bruxas
Um exercício útil: sempre que as
declarações de Pedro Passos Coelho sobre o estado do País suscitam dúvidas,
espera-se para ver qual o rústico que o PS encarrega da reacção. Quanto mais
rústico, maior a razão de PPC. E quando se trata daquele Galamba, que parece
ter sido expulso de uma claque desportiva por excesso de fúria, a razão é
dobrada. Há dias, a pretexto do défice, o moço acusou PPC de "alucinações
com o diabo". O tom e o espírito evocam a Inquisição, e a suspeita de que
batemos no fundo. Mas não se iludam: ainda falta um bocadinho.
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