Alberto Gonçalves – Diário de Noticias
Manhã.
Desde cedo - ou, para ser exacto, desde há semanas - que quase todos os canais
televisivos estão sequestrados por analistas e repórteres desportivos. Os
analistas arriscam teses alusivas à "basculação" e ao
"4-4-2". Os repórteres exibem, aqui e em França, populares aos
gritos. Pelas minhas contas, cerca de oitocentas mil pessoas já foram chamadas
a prever quem vai ganhar logo e quem vai marcar os golos. Que eu visse, ninguém
recusou responder.
Hora
de almoço. O país discute apaixonadamente o microfone que o futebolista Ronaldo
arrancou das mãos de um jornalista e depositou, com inegável mestria, no fundo
de um lago.
Início
da tarde. O ministro das Finanças dá uma conferência de imprensa para
"explicar" (sem explicar nada) a "recapitalização" (o
patrocínio à força) do "banco público" (a CGD, empresa de prestação
de serviços a amigalhaços). O dr. Centeno diz que ainda é cedo para especificar
verbas (cinco mil milhões) e que o investimento (a loucura) será recuperado a
curto prazo (nunca). O único facto esclarecedor é o momento da conferência,
enterrada sob o entulho futebolístico a fim de a golpada passar despercebida.
Passou.
Cinco
da tarde. A selecção da bola disputa um jogo. O país, incluindo os deputados na
AR, desaparece de modo a seguir os acontecimentos.
Sete
da tarde. À frente de logótipos publicitários, o Presidente da República surge
nas televisões a comentar a partida: "Sofremos, mas foi bom e passámos
frente a uma equipa que jogou pelo resultado, naquele que foi um dos jogos mais
emocionantes e com muitos golos no Europeu. Depois, dei um grande abraço a
Fernando Santos. Está feito. Os jogadores mostraram muita genica quando o
resultado esteve 1-0, 2-1 e 3-2. Tivemos 25 minutos excepcionais e os jogadores
conseguiram dar três e voltar o resultado." O PR não garante que possa
assistir ao próximo jogo em França, questão que deixa multidões angustiadas. Há
uma espécie de consenso tácito que obriga a respeitar a figura presidencial.
Por isso, e para manter pelo menos o respeito que a generalidade da opinião
publicada dedicou ao prof. Cavaco durante dez anos, limito-me a notar que o
prof. Marcelo se presta a inúmeras figuras, e que nenhuma é presidencial.
Entretanto,
nas "redes sociais" divulga-se uma fotografia em que o dr. Costa, o
dr. César dos Açores e dois pechisbeques que os costumam acompanhar aparecem de
mãos estendidas, desta vez não a pedir dinheiro aos contribuintes indígenas ou
alemães, mas a indicar o resultado do jogo: 3-3, três dedinhos esticados em
cada mão. E um sorriso destrambelhado nos rostos. Por muito que me esforce, sou
incapaz de comentar a estranhíssima imagem.
Hora
de jantar. Após celebrar um empate e ceder a nova investida dos milhares de
repórteres literalmente à solta, o povo recolhe a casa. Amanhã é outro dia, no
qual as sumidades que nos tutelam cairão com martelinhos na galhofa do São João
do Porto. E, também cansado de sustentar parasitas e rematados malucos, o Reino
Unido votará pela saída da União Europeia. Quando, num futuro não demasiado distante,
se escrever a história do tempo em que Portugal se afundou numa inimaginável
miséria, o 22 de Junho de 2016 não gozará de qualquer referência. Justamente:
embora os festejos populares no meio de sucessivos anúncios da desgraça pareçam
torná-lo assaz exemplar, é só um dia habitual no desvario colectivo a que
descemos.
Noite.
A propósito, alguém suspeitava que pudéssemos descer tanto? Alguém antecipou
uma corte que se assemelha a um circo? Alguém adivinhou que os pacientes
tomariam conta do manicómio? Alguém podia prever os últimos seis meses, em que
perante uma Europa segura por pinças e rendida ao terrorismo, uma nação
pequenina e débil entregou o seu destino material a partidos comunistas e a sua
representação a artistas de variedades que tiram selfies, acorrem a flash
interviews, comunicam pelo Twitter, espalham "afectos" e riem imenso?
Alguém concebeu uma população que, a um passo certo do abismo, alterna a apatia
com o patriotismo em chuteiras?
Não
sei se nos fazem de estúpidos. Não sei se somos realmente estúpidos. Não sei se
os "estadistas" que nos tocaram em sorte são um enorme azar ou a
consequência lógica de uma sociedade irremediavelmente embrutecida. Não sei o
que fizemos para merecer isto. Não sei o que não fazemos para merecer melhor.
Sei que, se imaginássemos o pior dos cenários, não seria tão terrível como o
presente. O presente é mau demais. E do futuro, possivelmente sem os malévolos
burocratas de Bruxelas a limitarem os nossos delírios, perdão, a nossa
"soberania", nem é bom falar
Se
acreditasse em teorias da conspiração, acreditaria sermos cobaias numa
experiência de engenharia social, com cientistas de bata branca a avaliar quais
os níveis de primitivismo, incompetência, irresponsabilidade, alucinação,
arrogância e zombaria que um país suporta? O pior é que, por esse Terceiro
Mundo fora, a experiência já se realizou repetidamente. E, para infortúnio das
cobaias, a conclusão foi sempre a mesma. Mas insisto: não acredito numa teoria
assim. A prática é inacreditável quanto baste.
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