17/02/2016
Ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar
desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um
dos grandes problemas que atingem hoje o país?
Acordos
e desacordos na escrita do português
O
acordo ortográfico celebrado entre Portugal e Brasil em 1986 levantou acesa
polémica há cerca de 30 anos e, pelo visto, continua a despoletar, em Portugal,
posições dramáticas contrárias a esse acordo e debates inflamados. Estas
posições não seriam de surpreender se os que pretendem que se anule o acordo
não o apresentassem como uma questão maior que afeta a conduta dos portugueses
ou os princípios do seu funcionamento social. No entanto, com surpresa se
verifica que comentadores como o Dr. Pacheco Pereira (P.P.) emitem opiniões
sobre o acordo ortográfico que, no mínimo, merecem ser contraditadas por quem
trabalha nesta área. Lembre-se, antes de passar à explanação do problema, que a
história das reformas e dos acordos ortográficos entre Portugal e Brasil é
longa, tendo como início, em 1911, uma sugestão de reforma seguida de um
primeiro acordo proposto pela Academia Brasileira em 1931 e replicado pela
Academia Portuguesa em 1945. Em 1973 e 1975 foi esboçado um novo acordo que
emanou de discussões levadas a efeito num seminário de grande repercussão
realizado em Coimbra em 1967. Este foi o ponto de partida para o acordo que
surgiu como trabalho básico em 1986. É sobre as reações que tem suscitado que
incide este texto.
Disse
Pacheco Pereira, usando a autoridade que lhe reconhecemos, que o “novo” acordo
ortográfico provoca um “abastardamento da língua portuguesa”. A primeira
observação a fazer diz respeito à palavra utilizada: “abastardamento” da
língua”? O que significa esta expressão? O dicionário informa-nos que o
“abastardamento” trata de “degeneração ou perda da genuinidade”. Considera
então P.P que a variação da língua no decorrer dos séculos, ou melhor, a sua
evolução é uma degeneração? Em relação a quê? Ao latim vulgar, ao português do
século XV ou do século XVIII? Ora ninguém de boa-fé poderia afirmar que
deveríamos voltar à forma de falar de há 500 anos, ou mesmo ao século XIX e à
época da polémica entre Leite de Vasconcellos e Cândido de Figueiredo
precisamente sobre ortografia. Será que algumas destas posições contrárias à
mudança se conformam com a imagem nostálgica de um passado que Pacheco Pereira
julga “abastardado”? Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos
de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos
grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada
para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria
que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar
para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo
económico ou, ainda, para enriquecer e
adequar o modelo educacional para as novas gerações.
A
unificação e a simplificação da escrita
Se
admitirmos que a anulação do acordo ortográfico não se inclui nos grandes
objetivos do atual desenvolvimento do país, vale a pena rever algumas das
finalidades que estiveram na base da sua elaboração. Sirvo-me para tal de um
artigo publicado em junho de 1986, da autoria de Lindley Cintra, um dos
signatários do acordo. Refiro apenas os objetivos que Cintra considerava
prioritários: a unificação da escrita produzida em Portugal e no Brasil e a
simplificação de diversas grafias. Diz Cintra: “Pode e deve pois considerar-se
indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal
matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há
muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza
perante uma ou outra das medidas a adotar. Além da extrema conveniência de
ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em
relação à oralidade e sendo uma representação sempre meramente convencional
desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se
renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa,
do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efetiva e
coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito
abandonados.” [1]
No
seguimento desta argumentação, o Professor Lindley Cintra dá a conhecer a
proposta de simplificação que foi aprovada na reunião de 1986 e que tem como
aspeto principal a supressão das chamadas ‘consoantes mudas’. “Com efeito, a
vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior
átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:
a)
– Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das
grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um
brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias
ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. [a tor], [a são].
b)
– Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração,
quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro,
esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade
de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte
generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem
qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.”
Como
corolário das palavras de Lindley Cintra quero pôr em relevo o seguinte: A
existência de uma ortografia comum não implica que passemos a utilizar a mesma
forma de falar mas apenas uma escrita, ou melhor, uma só ortografia. Note-se
que num único país como Portugal, por exemplo, existe apenas uma ortografia e,
no entanto, ocorrem variações na língua que em certos aspetos estão muito afastadas
da norma ortográfica. (basta pensar nos dialetos setentrionais e em palavras
como viagem [b]iagem /[v]iagem ou em outras características de variação).
Poderíamos
agora acrescentar ao interesse da unificação e simplificação da ortografia do
português a feição “económica” da unificação da escrita, integrando nessa
unificação os países que têm o português como língua oficial e reforçando assim
a perspetiva que esteve na base da criação da CPLP. Um dos principais objetivos
desta Comunidade é, por natureza, a preocupação com o enriquecimento da língua
portuguesa no campo da ciência e da cultura, e no uso quotidiano dos países que
a integram [2]. Num artigo publicado em 2011 eu própria manifestei concordância
com este ponto de vista: “Numa ocasião em que tanto se fala sobre problemas da
nossa economia, é um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português
constituem uma mais-valia no campo das interações económicas e um dos mais
importantes investimentos que cabem à iniciativa governamental e coletiva” [3].
No âmbito desta afirmação cabe a convicção de que a unificação da escrita entre
países que usam a mesma língua, e a simplificação da sua ortografia, concorrem
para uma mais fácil expansão dos textos escritos nessa língua, neste caso o
português.
Ora
no sentido de aumentar o prestígio da língua portuguesa e no sentido da sua
difusão tem-se avançado pouco em Portugal. Na ausência de estímulos para a
criação de meios que reforcem e difundam a língua portuguesa, é fundamental que
se proteja a produção em português através de uma política de incentivo à
tradução e à realização de obras de base para a formação escolar, e à produção
de obras teóricas e de aplicação em todos os campos do saber. Estas formas de
incentivar a utilização da língua portuguesa são facilitadas pelas mudanças
preconizadas pelo novo acordo, e justificam, em Portugal e no Brasil, a
existência de uma ortografia que converge para a unificação e para a
simplicidade [4].
Língua
e ortografia
A
frase que motivou este texto – o abastardamento da língua pela aplicação do
acordo ortográfico – mostra, por fim, uma confusão entre língua e ortografia,
confusão frequente que não é exclusiva de Pacheco Pereira. Na verdade, é de
lamentar que quem usa a língua em que aprendeu a falar e que dela se serve como
meio de transmitir conhecimentos, reflexões e paixões da alma, possa
confundi-la com a sua representação escrita que é o meio em que aprendeu a
escrever. A aceitarmos esta confusão teríamos que aceitar também que uma língua
que não tem ortografia não existe como língua. Como se sabe, a língua
identifica o ser humano e existe em todas as sociedades, enquanto a escrita
está restrita a determinados estádios de desenvolvimento de uma sociedade,
razão pela qual existem línguas sem escrita tal como há pessoas que não
aprenderam a escrever. O domínio da língua na sua forma de expressão verbal
contribui para o desenvolvimento das capacidades lógica, afetiva e estética dos
indivíduos; coopera na sua tomada de consciência de um adequado comportamento
em situação de intercomunicação; possibilita o esclarecimento de pontos
obscuros da história; serve a ciência e permite o acesso ao conhecimento
psicológico e social do indivíduo. Enfim: a língua está presente em todas as
formas da nossa atividade.
A
ecrita traz outras vantagens à atividade sociocultural, vantagens que
estiveram na raiz da sua criação como meio de comunicação e impulsionaram o
lugar de relevo que hoje ocupa nos países que a utilizam: ela participa no
enriquecimento do indivíduo e da sociedade que a utiliza pela clarificação do
pensamento e das emoções; ela viabiliza, pela sua própria natureza, a
comunicação a distância no espaço e no tempo; ela permite a manutenção da
expressão de ideias e sentimentos, ela colabora na explicitação das formas
obscuras do pensamento; ela fornece instrumentos que permitem várias formas de
análise da utilização da língua.
Ainda
que todos estes aspetos da importância da escrita sejam relevantes, devemos
interpretar as reações às mudanças na ortografia de uma língua como o olhar
saudoso em busca do passado, da tradição, da raiz. Essa nostalgia é provocada
em todos os campos de ação pela quebra da tradição ou pelo afastamento do que
julgamos ser a fonte que temos o dever de preservar. Não podemos no entanto
furtar-nos à necessidade de viver no tempo atual ainda que saibamos que aquilo
por que lutamos no aqui e agora virá a modificar-se no tempo vindouro.
[1]
In Expresso, 28 de junho de 1986
[2]
Difícil se torna compreender a integração da Guiné Equatorial na CPL
[3]
Ver, por exemplo, o jornal Expresso, janeiro de 2011.
[4]
Foi certamente com esta finalidade que se considerou, no Brasil, vantagem na
supressão do treme (linguista – linguista) e na eliminação do diacrítico em palavras
como idéia – ideia etc.
Professora
Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa
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