[Inauguração da exposição fotográfica de Paulo Patoleia “Rostos
Transmontanos” e apresentação do livro com o mesmo título, em Lagoaça, a 4 de
Abril de 2015, pelas 15h00, na sede dos órgãos autárquicos da Freguesia]
Saúdo os companheiros de mesa e demais presentes e dou os parabéns à
Junta de Freguesia por esta iniciativa.
Antes de tudo, quero dedicar este acto à memória do nosso conterrâneo e
Amigo Leandro Vale, há dois dias falecido. Actor, Encenador, Director de Teatro
e Dramaturgo que muito contribuiu para a divulgação do Teatro pela ruralidade
transmontano-duriense e em cuja rota também figura esta Freguesia.
Quero dizer-vos que é a segunda vez que sou convocado para vir a Lagoaça
por razões da apresentação de um livro e, da primeira delas, garanto-vos,
guardo muito gratas recordações.
Refiro-me à colectânea de textos de autores transmontanos organizada
para comemorar os 725 anos da atribuição pelo rei Dinis da carta de foro ao
vilar de Lagoaça (ocorrida em 1286) e coordenada pelo lagoaceiro Armando
Palavras, publicamente apresentada na edição de 2011 da vossa festa grande, e
titulada Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura,
livro que reuniu mais de 70 autores vivos. E sobre esse momento não resisto a
ler-vos um excerto da apresentação que da referida Obra me coube fazer em
Bragança:
Cadeiras dispostas em filas reservadas aos autores. A praça apinhada de
gente. Ao centro da mesa o vila-florense António Modesto Navarro, arguente
principal, a quem coube a ingrata tarefa, não direi de o mostrar (ao livro) e
comentar, porque o fez com mestria (não fosse ele mestre da escrita e da
palavra), mas porque para isso foi obrigado a lê-lo e a interpretá-lo em tempo
contado.
Uma multidão que se concentra na praça pública, por aí ter marcado
encontro com um Livro. Que belo exemplo! Não faz lembrar a escola grega da
Antiguidade, ou a escola Contemporânea de alguns meninos africanos? O interesse
pelo Saber e a preocupação de o transmitir. Um assomo aos artigos 73.º e 78.º
da Constituição da República Portuguesa: “Todos têm direito à educação e à
cultura” e, “Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever
de preservar, defender e valorizar o património cultural.
Ora, Lagoaça está no bom caminho, assim a sua gente o entenda. A sua
situação Geográfica e a sua História concede-lhe características adequadas para
aqui convergir a Cultura regional através dos seus Agentes. Por ser uma
freguesia ribeirinha, num tramo da fronteira política (e por conseguinte
fronteira artificial) unida pelo Douro (elemento eminentemente natural). A
cooperação com os vizinhos que temos mais próximos, urge.
E para ela podeis contar com a minha colaboração.
Mas este foi um parêntesis. Vamos ao que aqui nos trouxe.
Porque estamos a celebrar o LIVRO, celebremos aqueles que lhe dão alma e
corpo. E permitam-me nessa conformidade que homenageie no centenário que ainda
decorre do poeta Joaquim Namorado, o criador do movimento literário
neo-realista que, não sendo transmontano-duriense, foi capaz de captar como
ninguém, o seu telurismo, brindando-nos com a mais pungente ode que conheço
sobre o nosso Doiro:
Port Wine
O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bars.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlinos
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.
Mas reunimo-nos aqui para assistir ao lançamento de um livro
(acompanhado da correspondente exposição fotográfica), um livro que na verdade
é um monumento, um monumento que pretende homenagear a gente transmontana,
transmontano-duriense naturalmente, gente que herdou um território e que se
prepara para no-lo legar.
É um livro pelas suas características, especial. Especial pelo conteúdo
-fotografias e textos- e pelo cuidado com que foi trabalhado para poder
circular, para poder ser usufruído.
Atentem bem nesta capa! Capa sobre a qual, o meu amigo Euclides Griné,
do grupo dos Estudos Literários da Universidade de Coimbra, ao agradecer o
convite que lhe enderecei para este encontro, afirmou que “a capa é notável:
vejo nela o tempo feito, o coração no meio e a interrogação adiante”.
Nele se apresentam 74 fotografias, sendo que uma delas representa o
Fotógrafo e é de autoria do seu amigo e nosso conterrâneo Leonel Lopes, e a
cuja memória foi o livro dedicado.
Possui 4 textos mais extensos, a minha própria Apresentação, o Prefácio
da Tradutora e Intérprete Isabel Matos, a Introdução pelo Conservador e
Restaurador e amante da Fotografia Jorge Abreu, e um Posfácio do Alcalde de
Morille e professor da Universidade de Salamanca Manuel Ambrosio Sánchez.
Mas ao livro se associaram mais 46 amigos que, com a sua pena,
legendaram os retratos, o que perfaz um total de 52 autores. 52 autores!
Reparem bem! Só um registo fotográfico com esta força anímica é capaz de
mobilizar tanta gente.
São eles (exceptuando-se os dois Fotógrafos), por ordem alfabética: A.
M. Pires Cabral; Alfredo Cameirão; Amadeu Ferreira; Antero Neto; António
Afonso; Antonio Gómez; António Júlio Andrade; António Luís Pereira; António
Pimenta de Castro; António Sá Gué; António Tiza; Arnaldo Silva; Artur Salgado;
Assunção Anes Morais; Augusto Bordalo Ferreira; Bernardino Henriques; Berta
Nunes; Carlos Carvalheira; Carlos d’Abreu; Carlos Pedro; Carlos Sambade; Chus
Sánchez Villasante e José Ballesteros; Emilio Rivas Calvo; Ernesto Rodrigues;
Fernanda Guimarães; Fernando Mascarenhas; Henrique Pedro; Isabel Mateus; Isabel
Matos; J. Rentes de Carvalho; João Farias; Jorge Abreu; Jorge Cordeiro; Júlia
Ribeiro; Lara de León; Leandro Vale; Leonel Brito; M. Hercília Agarez; Manuel
Ambrosio Sánchez; Maria de São Miguel; Miguel Pires Cabral; Paula Machado;
Renato Roque; Rogério Rodrigues; Rosa Sánchez; Teresa Leonardo Fernandes; Tiago
Patrício; Virgínia do Carmo; e Vitor da Rocha.
O meu bem-haja a todos eles por terem aceitado, sem hesitar, este
desafio. Desafio que, com o Editor António Lopes, tive o prazer de coordenar.
Editor a quem muito devemos por ter tornado possível este livro. E eu que o
diga!
Como todos os livros têm uma história que neles não vem escrita, não
será despiciendo contar-vos como tudo começou.
Quando as fotografias de Paulo Patoleia começaram a ser mostradas na
exposição itinerante, rapidamente alguns de nós percebemos que essas
fotografias, pela forte mensagem que transmitiam, mereciam ser reproduzidas em
livro para mais gente a elas poder aceder. Isto ocorreu em 2011. Nesse ano uma
editora de fora da região foi contactada, não por mim. E o seu responsável
aceitou o desafio e chegou com o Fotógrafo a assinar um contrato, contando ela
vir a ser subsidiada através de mercenários que então operavam na zona mas, a
subvenção falhou e o contrato caducou.
Entrei eu em cena. Convidei três outros autores, para que comigo
escrevessem os textos, textos curtos, no sentido de enquadrarmos as
fotografias, segundo as “normas” literárias. Estávamos em Janeiro de 2012.
Fui organizando o material, pedi que se elaborasse uma maqueta,
solicitei alguns orçamentos a gráficas, tudo com vista a candidatar a sua
publicação ao “Programa de Apoio aos Agentes Culturais”, da Direcção Regional
de Cultura do Norte, através da Associação Cultural e Recreativa de Maçores.
A candidatura foi apresentada em Março desse ano e após vencidos todos
os aspectos burocráticos, ficámos a aguardar o desfecho, desfecho que se
demorou muito para além do calendário previsto no regulamento do referido
programa, findo o qual, recebemos a notícia de que o nosso projecto não foram
contemplado.
A verdade é que o programa apoiou na região, nesse ano, 37 outros
projectos, podendo nós intuir que o organismo que zela pela Cultura neste
território, não viu nesta obra nem cultura nem região representada. Mas como os
nativos somos nós, e ainda com capacidade para discernir, entre o que nos
pertence e o que de postiço nos querem impôr, discordámos de tal decisão.
Contactei o nosso conterrâneo Editor António Lopes, a quem dei
conhecimento do projecto. De imediato se propôs reunir connosco para conhecer o
trabalho e, após essa reunião, decidiu apoiar incondicionalmente a sua
publicação. Naturalmente que isto aconteceu porque o Escritor António Sá Gué
também é transmontano e, a sua condição de Agente Cultural da região, não
previa outra decisão face a material com esta qualidade, no qual, logo nos
comunicou, também se revia.
Mas para não alongar este acto, passo directamente à minha leitura da
Obra:
Rostos Transmontanos,
tal é o mote. E que dele ninguém remoque porque o não permitiremos!
O nosso conterrâneo e amigo Paulo Patoleia, rebelde na juventude, ainda
hoje de espírito irrequieto, após muitas aventuras, venturas e (algumas)
desventuras, descobriu nos últimos anos o gosto pela Fotografia. Desenvolveu-o
e achou a arte que ela encerra.
Conseguiu-o através do género “retrato”. Não o retrato que os nossos
antepassados mais próximos buscavam nos fotógrafos das respectivas vilas (que
os tiveram muito bons), para remeterem aos familiares ausentes nas Áfricas ou
nos Brasis. Ou os exigidos pela Administração, para o Bilhete de Identidade.
Não! Estes são retratos especiais. Muito especiais. As fotografias aqui
reproduzidas revelam primeiro que tudo o olhar do fotógrafo. De seguida, o rosto
registado pelo fotógrafo, o sujeito da fotografia, não a coisa, o objecto, mas
a pessoa e o seu mundo. Depois… Bem, depois o nosso olhar é conduzido a
penetrar o olhar do fotografado. E é a leitura que daí resulta, que nos faz
perceber a mestria do Paulo.
Se neste trabalho o Paulo Patoleia revela, por um lado, coragem (porque
arrisca expor, expondo-se), por outro mostra-se generoso (porque sabe
partilhar). É nesta partilha e só devido a ela, que podemos perceber que é um
criador.
Estes rostos não deixam ninguém indiferente. São o rosto de uma região
inteira. Contêm toda a Geografia Transmontano-Duriense, revelada pelos sulcos
neles impressos durante a passagem do khrónos. Tempo e telurismo,
juntos. Solo e clima agrestes. Ladeiras, fragas e arroios. Moroiços, socalcos,
cepas, oliveiras e amendoeiras. Janeiros geadeiros e canículas estivais. As
leiras. Afinal daimosos porque dobrados pela vontade inquebrantável de
sobreviver no território que lhes calhou para viverem.
São retratos, são gente, gente que povoa um território que se despovoa.
São metáforas.
Mensagens de canseira, de solidão, de sofrimento, de mágoa, de
privações, de sobrevivência, por vezes de resignação. Mas também os há, de
confiança, de grandeza, de fé e até esplendor. Todos dignos.
E não resultam de um casual registo do real, antes de uma intenção
facilitada pelo facto do retratista estar também retratado. Pois só quem sente
ou pertence verdadeiramente a um povo, lhe consegue captar a sua essência.
Quando vimos pela primeira vez este conjunto de retratos, perguntamo-nos
se os retratados, quando se deixaram fotografar, imaginaram que viriam a ser
mostrados em público. Nesse momento chegamos a questionar-nos da licitude do
acto, quer dizer, do direito ou não de expor na àgora, uma pessoa assim,
“desnudada”. Se o fotógrafo os informara da sua intenção. E muito menos que
sobre eles viéssemos a escrever. Será que se alguns deles nos vierem a ler,
directamente ou por interposta pessoa, se não rirão de nós, por pormos ar tão
grave em rostos e vidas tão simples? Que legitimidade temos para registar e
sobretudo tentar interpretar a vida alheia? É esse um exercício necessário? Que
contributo damos, uns e outros, para melhorar a vida deste povo?
A verdade é que este conjunto de telas é um registo in extremis de
um corpo extenuado, que definha porque o seu sangue embarca todos os dias. Já
não é só o vinho que desce o Douro, é também quem plantou as cepas. E antes que
elas mirrem, contemplemos os multifacetados rostos do transmontano Paulo
Patoleia!
Carlos d’Abreu
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