domingo, 24 de novembro de 2013

Mais Gente da Minha Terra em Valpaços

António Passos Coelho nasceu em Valnogueiras (Vila Real) em 1926. Formou-se em Medicina na Universidade de Lisboa. Estagiou no Caramulo (1954). Em 1960 obtém a especialidade em Pneumotisiologia. Em 1970 exerce funções em Angola, onde é encarregado de organizar a luta antituberculosa. Em 1973 é nomeado Director do Hospital-Sanatório de Luanda e é responsável pelo curso de Tisiologia na Faculdade de Medicina de Luanda. Regressado a Portugal desenvolveu a actividade em Vila Real, onde desempenhou numerosos Amónio cargos. Paralelamente desenvolveu uma considerável actividade literária Passos, publicando vários livros de contos como Gente da Minha Terra e Histórias Selvagens. Além de poesia, dedicou-se ao romance: Caramulo (reeditado em 2006), Zélia (2008) e Angola, Amor Impossível (2011).

 
Publicado  no jornal Negócios de Valpaços - 15 de Novembro, XIII


Mais Gente da Minha Terra

“Mais gente da Minha Terra” é o novo livro de António Passos Coelho. Uma colectânea de 14 contos, narrativa onde é mestre. A narrativa curta está-lhe no sangue, como estava em Borges, o mestre argentino. Mas enquanto Jorge Luís Borges vai além do real, num percurso imaginativo profícuo, A. Passos Coelho, conta-nos histórias (algumas inventadas) da vida real transmontana, onde a descrição, ímpar e milimétrica, apalpa os tipos humanos de outras épocas da ruralidade.
Esta pequena colectânea inicia com dois contos portentosos: “O Casca Grossa” e “O Compõe”.
O primeiro trata de um homem bom que, chegando à sua aldeia natal vindo do Brasil, financiou uma festa de arromba à sua madrinha, a santa padroeira; a Senhora do Rosário. Dela se despediu depois com os bolsos vazios, rumando, de novo, para as terras de Vera Cruz com dinheiro emprestado. Anos mais tarde retorna com nova fortuna apreciável, com a qual ajuda tudo e todos, acabando por morrer em miséria, numa madrugada.
Para o “Casca Grossa”, como no conto de Borges (“O indigno”), no “Relatório de Brodie”, a felicidade, embora confusa, não tinha mistério, “porque por si mesma se justifica”. E para ele, Tomás, fazer aquela festa à madrinha para ficar, de novo, sem tostão (ou ajudar as pessoas), era uma enorme felicidade.
O segundo conta-nos a história do “compõe”, para o vulgo, o “endireita”. Ferreiro de profissão, “o que punha fama neste homem despretensioso e simplório era a rara habilidade que Deus lhe dera para compor os ossos deslocados ou partidos das criaturas humanas”, diz-nos no início da narrativa o seu autor.
Depois de uma queda, nunca mais foi o mesmo, perdendo até o juízo.
Em “Bárbaros e Selvagens”, retomando um tema caro às aldeias transmontanas, a matança do porco, vislumbra-se a sensibilidade do autor para as questões ambientais, e o amor profundo para com os animais. O mesmo que lhes consagra Torga nos “Bichos”.
Naquele “Natal de sonho” passado naquela aldeia, igual a tantas outras da ruralidade transmontana, o presépio tem as honras da casa. E é nele que recai a curiosidade própria das crianças; nas peças dispersas.
“A Santinha Nariguda”, uma narrativa curta, traz-nos à memória a atitude aldeã, tantas vezes narrada em episódios reais. Quantas histórias se contam de peças levadas a reparar e, quando retornam, os seus proprietários duvidam que sejam as mesmas…Esta história de Passos Coelho bem se pode enquadrar num desses numerosos episódios reais. Só que, neste caso, contado com a delicadeza e a sabedoria de um mestre da narrativa.
O “Americano da Abóbada”, Gregório Estanislau Bronze, um homem corpulento de 75 anos, estabelecido numa pequena aldeia da serra do Caramulo, com uma bela reforma conquistada pelos anos de trabalho na América, prefigura aquele tipo de beberrão muito apreciado pela massa popular. Nem depois de doente, numa cama do hospital, deixava o seu garrafão de cinco litros. Nunca bebia água, como era atestado pela própria filha. Um conto onde reina o humor, no diálogo estabelecido entre os personagens.
Sensível ao calor humano, o autor, no “Pai do trabalho”, zurze nos poderes públicos que desprezam o indivíduo, neste caso, um homem simples, atencioso e generoso a quem a vida maltratou.
“O Parrezas” é aquele caçador que bem podia surgir num dos contos de Ivan Turguénev. Acompanhado da sua Matilde e do Zatopek, percorre a serra do Caramulo, impondo a sua lei. Vive do que caça, por isso a protege. Não deixa de ter problemas com a guarda, mas conselho amigo, depois de tantas caçadas, resolveu-lhe o problema. No fim da caça o cabo da guarda era sempre presenteado com duas ou três peças.
“A Honra da minha avó” é um conto extraordinário. Nele estão contidos valores morais e éticos fundamentais. A postura honrosa do fidalgo e a atrapalhação da avó quando moçoila.
“O Mastro” descreve-nos uma tradição transmontana em desuso. Também lembrada por Gabriel Garcia Marquez em “Cem Anos de Solidão” quando Remédios, a bela, se “ vestiu de homem e se rebolou na areia para subir ao pau-de-sebo”. Um tronco, geralmente de pinheiro, era cuidadosamente ensebado e no topo era colocado um lenço oferecido pela madrinha do mastro, normalmente uma das moças mais bonitas da aldeia. Quem conseguisse chegar ao topo recebia como prémio uma nota de 20 escudos.
O conto de A. Passos Coelho rememora essa tradição, contando a peripécia de um menino de 11 anos que conseguiu a proeza, ganhando um punhado de rebuçados. Mas também uma gaita, prémio que é narrado com a malícia própria das gentes de Além Marão.
“O ceguinho dos segredos” é uma narrativa cujo conteúdo era comum nas aldeias transmontanas: contar determinado segredo a uma criança se esta fizesse determinado recado. Como por exemplo, o local de um ninho (evocando o poema de Torga), um meloal, etc.
Mas nesta aldeia, os segredos do ceguinho eram para adultos. E o ceguinho sabia os segredos de toda a gente madura da aldeia. A forma como os conhecia deixou o padre-cura embasbacado.
“O Progresso” é outro conto extraordinário. É uma narrativa trágica; é a tragédia pessoal de um emigrante que, depois de tanto trabalho, ficou arruinado. Mesmo a pequena casa e a quintinha que a rodeava (o sonho da vida) lhe foram destruídas em nome do progresso. E nisto, o personagem de Borges na “História de Rosendo Juárez”, é contundente: “Eu sempre fui da opinião de que não se é ninguém para deter a máquina do progresso”.
“Uma conversa no parque” trata de um diálogo vivo e curioso entre duas crianças. Expõem, interrogam-se. Em suma, divertem-se com o simples facto de se tornarem amigos expondo uma à outra, episódios banais.
Esta bela colectânea termina com “História da Medicina”. Chamado à residência de uma doente, são infrutíferos os esforços para a convencer a deixar-se operar. Enquanto a auscultava apercebe-se de “gritos e ruídos esquisitos” vindos de dependência ao lado.
A filha mais velha da doente informa-o que são da irmã mais nova. Sofria “da cabeça” desde que o namorado morrera na guerra do Ultramar. O médico aconselha o filho da doente sobre os dois casos familiares.
Na manhã seguinte torna à aldeia onde a doente havia falecido. Desloca-se a uma quinta próxima para auscultar outra doente que o havia solicitado. O diálogo travado entre a velha senhora e o filho, de um humor arrebatador, irá servir de epílogo a esta narrativa.
São assim os contos de António Passos Coelho. De uma simplicidade desconcertante, cobertos de tristezas e amarguras, mas também de ternura; de Amor. De amor para com a pessoa humana; um Amor Universal.

Armando Palavras





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