terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O Aleph de Borges, um mundo de coisas infinitas

Frequentemente chamada “campo profundo”, esta imagem, apresenta-nos o nosso universo na sua mais vasta dimensão. Um mar salpicado de galáxias a perder de vista. Imagem captada pelo telescópio Hubble em órbita acima do nosso planeta.
NASA/ESA/S. Bockwith e Equipa de Hubble Ultra Deep Field e B. Mobasher
(in: Carl Sagan, Cosmos)

1 - O Aleph de Borges foi-nos dado a conhecer, há cerca de três décadas, por Jacques Bergier. Para nós, transformou-se num livro de culto. É uma viagem no tempo de lugares constituídos por labirintos infinitos. Um vaivém de tempos, épocas e personagens.
De um manuscrito antigo conta-se a história de Marco Flaminio Rufo, tribuno militar de uma das legiões romanas que empreende um longa caminhada em busca dos Imortais, da sua cidade, do “rio secreto” que a banha e purifica os homens da morte, como lhe fora indicado pelo cavaleiro vindo de Oriente.
E desse tempo imortal vagueia-se pelo destino de Benjamim Otálora que, depois de se tornar contrabandista, morre com um tiro de Suarez, capanga de Azevedo Bandeira, do Uruguai.
Volta-se atrás no tempo para testemunhar a destruição levada a cabo pelos hunos, da biblioteca monástica, salvando-se apenas o livro duodécimo de “Civitas Dei”. E neste nebuloso tempo confrontam-se as vidas de Aureliano e João de Panónia. João, um histrião (herege) é condenado à fogueira. Mais tarde, Aureliano sofre o mesmo destino, queimado num incêndio.
Outro livro surge nesse tempo infinito. “La poesia” de Croce, onde se conta a história do guerreiro Droctulft, o bárbaro que abandona os seus para salvar a cidade que iria saquear: Ravena. Uma história semelhante à da “índia loura” que acontece muitos séculos depois, que sua avó inglesa lhe havia contado. Para nos surgir, no mesmo tempo, o destino de Tadeo Isidoro Cruz, ligado a um simples momento, aquele em que lutou ao lado do valente que perseguia, contra os seus próprios soldados, numa noite escura em Laguna Colorada, local onde quarenta anos antes morrera o seu pai com o crânio rechaçado por um sabre.
Emma Zung pertence a um tempo mais próximo. Operária de 19 anos, urde um plano que concretiza. Mata com três tiros o dono da fábrica, Aarón Loewenthal, vingando o mal que este fizera a seu pai.
A casa de Astérion e a caracterização do seu pobre protagonista, pertencem a um tempo longínquo e mitico. Uma casa do tamanho do Mundo, com infinitas portas, onde vive o solitário Estérion, sem se misturar com a plebe por ser filho de uma rainha; o Minotauro de Creta. Já num tempo próximo, Dom Pedro Damián, na sua luta febril, revisita no seu delírio a sangrenta jornada de Masoller.
Deste tempo, surge-nos um tempo futuro com Otto Dietrich Zur Linde, do Partrido nazi, a aguardar julgamento. Espera que o seu depoimento ajude na compreensão da história da Alemanha (e do mundo) porque todos os factos que acontecem a um homem, foram previamente marcados por ele. Recorda os fins de 1942, época em que foi implacável com Jerusalém, poeta judeu (lendário) que se matou depois de preso no campo de concentração.
Da Guerra vintista recua-se ao tempo medieval de Averróis. Escreve um comentário de Aristóteles, defende que a divindade só conhece as leis gerais do Universo, aquelas que dizem respeito à espécie (não ao individuo). Na “Destruição da Destruição” trabalhou até ser noite cerrada; no dia seguinte, em casa de Farach, no jardim e em presença de outros convidados, falam de rosas.
Séculos depois, Borges recebeu de troco (depois de beber uma aguardente de laranja numa taberna, no dia da morte de Teolina Villar) um Zahir, uma moeda argentina que foi várias coisas em diferentes épocas.
Ao recuar no tempo, para a época quinhentista, apresenta-nos Zinacan, último sacerdote de Qoholom, encarcerado por Pedro de Alvarado. No cárcere (que não é se não uma pirâmide) vislumbra o nome inefável de Deus, composto por catorze palavras. Resignado, não as pronuncia, embora lhe trouxessem a liberdade e a vingança. Aqui começa o mistério do Aleph e, sobretudo de Borges.
Dunraven e o seu companheiro de jornada Unwin, comentam a história de Abenjacan, o Bokhari, rei do Sudão; um homem alto com pele citrea. Atraiçoado pelo seu Vizir, Zaid, pereceu às suas mãos, no labirinto construído com parte do tesouro roubado. E ainda na temática das Arábias, dá-nos conta da morte do rei da Babilónia, no deserto arábico, depois de ter enxovalhado o rei da Arábia (da boca de quem não saiu um lamento, uma palavra) no seu labirinto de bronze.
Já no século XX, um homem pára, às nove da manhã, no 4004 de uma rua do noroeste. Dirige-se a um quarto, de onde raramente sai. Espera. E, como no sonho que costuma ter pela manhã, ainda na cama, numa turva manhã do mês de Julho, é baleado por Alejandro Villar.
Em terras da Índia, um juiz investiga o desaparecimento do justiceiro David Alexander Glencaim. Em determinada casa encontra um homem velho, antigo que lhe conta uma velha história. Quando se afastam, despedindo-se, o corpo do justiceiro, decapitado, é encontrado nos fundos de uma cavalariça.
 
Finalmente, depois deste vaivém de tempos e acontecimentos fantásticos, surge o Aleph (um dos pontos do espaço que contém todos os pontos). Numa cave do prédio de Carlos Argentino Danerí (pai de Beatriz Viterbo), na rua Garay, junto da Praça da Constituição.
Diz-nos Borges, a dado passo, deslumbrado, petrificado, extasiado: “Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph” (p. 168). E acrescenta naturalmente, já rendido ao acontecimento:”O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas estava ali o espaço cósmico, sem diminuição de tamanho” (p. 169).

2 - O Aleph, aquele ponto no espaço de onde se vê todo o universo, como lembra Umberto Eco (1), é um conceito, segundo Jacques Bergier (2), que está vivo nas tradições mais antigas, assim como nas matemáticas mais modernas. Aleph é o nome da primeira letra do alfabeto da língua sagrada (3). Na cabala designa o En-Sof, o sítio do conhecimento total, o ponto de onde o espírito distingue de um só golpe a totalidade dos fenómenos, das suas causas e dos seus sentidos. É o ponto para além do infinito. O Ómega do Padre Teilhard de Chardin e a finalidade da Grande Obra dos Alquimistas. Diz-nos a lenda, a tradição, que durante a manipulação alquímica, na qual o adepto oxida a superfície de um banho fundido em metais, quando a película de óxido se quebra, aparece sobre um fundo opaco a imagem da nossa galáxia com os seus dois satélites, as nuvens de Magalhães. Se fosse verdade, tratar-se-ia do primeiro “instrumento transfinito”, afirma Bergier (4).
A ideia de transfinito foi concebida em trabalhos matemáticos de Georg Cantor (5), onde se defende que a parte é igual ao todo. Embora demencial sob o ponto de vista da razão clássica, é, no entanto, matematicamente demonstrável. Como, por exemplo, no famoso paradoxo de Banach e Tarski (6).
É deste Aleph que Jorge Luís Borges trata no seu escrito, assim intitulado. Mas onde foi ele buscar a ideia do Aleph, aquele ponto fatal de onde se vê o populoso mar, a madrugada e o crepúsculo, as multidões da América, uma teia de aranha argêntea no centro de uma pirâmide, um labirinto despedaçado que era Londres, um pátio interior da Rua Soler com os mesmos azulejos de há trinta anos vistos no vestíbulo de uma casa da calle Frey Bento, cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, convexos desertos equatoriais, e em Inverness uma mulher inesquecível, e numa casa de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio e ao mesmo tempo todas as letras de todas as páginas, um pôr do sol em Querétaro que parece reflectir a cor de uma rosa em Bengala, um globo terrestre posto entre dois espelhos que o multiplicam indifinidamente num gabinete de Alkamaar, uma praia do mar Cáspio ao alvorecer, um baralho de cartas espanhol numa montra de Mirzafur, êmbolos, bisontes, marulhadas, todas as formigas que existem na terra, um astrolábio persa, e os restos atrozes do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo? A Dante, ao último canto (XXXIII, 85-96) do Paraíso (7). Vejamos os versos 85 – 90:

Vi que na profundidade da luz eterna
Se incorpora, ligado por um vinculo de amor,
Tudo o que se encontra espalhado pelo Universo; (8)

Substâncias, acidentes e o seu operar
Quase de tal maneira unidos, que o
Que eu digo, dá uma pálida ideia (9).

E quem era Beatriz de Viterbo? A ninfa de Dante (10). Para quem escreveu A Divina Comédia (11).

Armando Palavras

Notas

[1] Sobre Literatura (Difel)
(2) O Despertar dos Mágicos (    ).
(3) E do alfabeto Hebreu. Pronuncia-se alif.
(4) Alguns “estudiosos”, sempre prontos para a especulação do conhecimento, acreditam que seria com uma aparelhagem deste género que os Maias, que ignoravam o telescópio, descobriram Úrano e Neptuno.
(5) Que viria a morrer louco.
(6) Matemáticos polacos contemporâneos. Banach foi assassinado pelos Nazis e Tarski (que faleceu em 1983 nos EUA) não foi porque se exilou nos EUA antes da guerra eclodir. Mas quase toda a sua família foi.
(7) Já Eco lhe faz referência.
(8) Usamos a edição da editora Livraria Sá da Costa (Trad. Prof Marques Braga). Diferente da edição da Bertrand (2006), trad. Vasco Graça Moura. Mas as traduções são sempre aproximações.
(9) Nel suo profondo vidi che s’interna,/ legato con amore in un volume,/ cio che per l’universo si squaderna:/ sustanze e accidenti e lor costume/ quasi conflti insieme, per tal modo/ che cio ch’i’ dico è un semplice lume.
(10 ) Embora Dante tenha popularizado a metafísica e a teologia de São Tomás no seu famoso poema, Dizem-nos  Hurbert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly ( Um Mundo Iluminado, 2011) que a sua motivação inicial era bem mais simples do que isso. Aos nove anos de idade conheceu em Florença uma menina de oito anos chamada Beatriz Portinari. Apaixonou-se por ela “à primeira vista”. A partir daí, Dante  fez de Beatriz a sua amada, e prometeu escrever um poema sobre ela como nenhum outro antes escrito para uma mulher amada. E conseguiu.
(11) Ao popularizar a metafísica e a teologia de São Tomás, não admira que no século XVI o poema de Dante fosse considerado sagrado e de “Comédia”  passasse a ser designado “A Divina Comédia”.

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