1 - O Aleph
de Borges foi-nos dado a conhecer, há cerca de três décadas, por Jacques
Bergier. Para nós, transformou-se num livro de culto.
É uma viagem no tempo de lugares constituídos por labirintos infinitos. Um
vaivém de tempos, épocas e personagens.
De um
manuscrito antigo conta-se a história de Marco Flaminio Rufo, tribuno militar
de uma das legiões romanas que empreende um longa caminhada em busca dos
Imortais, da sua cidade, do “rio secreto” que a banha e purifica os homens da morte,
como lhe fora indicado pelo cavaleiro vindo de Oriente.
E desse
tempo imortal vagueia-se pelo destino de Benjamim Otálora que, depois de se
tornar contrabandista, morre com um tiro de Suarez, capanga de Azevedo
Bandeira, do Uruguai.
Volta-se
atrás no tempo para testemunhar a destruição levada a cabo pelos hunos, da
biblioteca monástica, salvando-se apenas o livro duodécimo de “Civitas Dei”. E
neste nebuloso tempo confrontam-se as vidas de Aureliano e João de Panónia.
João, um histrião (herege) é condenado à fogueira. Mais tarde, Aureliano sofre
o mesmo destino, queimado num incêndio.
Outro
livro surge nesse tempo infinito. “La poesia” de Croce, onde se conta a
história do guerreiro Droctulft, o bárbaro que abandona os seus para salvar a
cidade que iria saquear: Ravena. Uma história semelhante à da “índia loura” que
acontece muitos séculos depois, que sua avó inglesa lhe havia contado. Para nos
surgir, no mesmo tempo, o destino de Tadeo Isidoro Cruz, ligado a um simples
momento, aquele em que lutou ao lado do valente que perseguia, contra os seus
próprios soldados, numa noite escura em Laguna Colorada, local onde quarenta
anos antes morrera o seu pai com o crânio rechaçado por um sabre.
Emma
Zung pertence a um tempo mais próximo. Operária de 19 anos, urde um plano que
concretiza. Mata com três tiros o dono da fábrica, Aarón Loewenthal, vingando o
mal que este fizera a seu pai.
A casa
de Astérion e a caracterização do seu pobre protagonista, pertencem a um tempo longínquo
e mitico. Uma casa do tamanho do Mundo, com infinitas portas, onde vive o
solitário Estérion, sem se misturar com a plebe por ser filho de uma rainha; o
Minotauro de Creta. Já num tempo próximo, Dom Pedro Damián, na sua luta febril,
revisita no seu delírio a sangrenta jornada de Masoller.
Deste
tempo, surge-nos um tempo futuro com Otto Dietrich Zur Linde, do Partrido nazi,
a aguardar julgamento. Espera que o seu depoimento ajude na compreensão da
história da Alemanha (e do mundo) porque todos os factos que acontecem a um
homem, foram previamente marcados por ele. Recorda os fins de 1942, época em
que foi implacável com Jerusalém, poeta judeu (lendário) que se matou depois de
preso no campo de concentração.
Da Guerra
vintista recua-se ao tempo medieval de Averróis. Escreve um comentário de
Aristóteles, defende que a divindade só conhece as leis gerais do Universo,
aquelas que dizem respeito à espécie (não ao individuo). Na “Destruição da
Destruição” trabalhou até ser noite cerrada; no dia seguinte, em casa de
Farach, no jardim e em presença de outros convidados, falam de rosas.
Séculos
depois, Borges recebeu de troco (depois de beber uma aguardente de laranja numa
taberna, no dia da morte de Teolina Villar) um Zahir, uma moeda argentina que
foi várias coisas em diferentes épocas.
Ao
recuar no tempo, para a época quinhentista, apresenta-nos Zinacan, último
sacerdote de Qoholom, encarcerado por Pedro de Alvarado. No cárcere (que não é
se não uma pirâmide) vislumbra o nome inefável de Deus, composto por catorze
palavras. Resignado, não as pronuncia, embora lhe trouxessem a liberdade e a
vingança. Aqui começa o mistério do Aleph e, sobretudo de Borges.
Dunraven
e o seu companheiro de jornada Unwin, comentam a história de Abenjacan, o
Bokhari, rei do Sudão; um homem alto com pele citrea. Atraiçoado pelo seu
Vizir, Zaid, pereceu às suas mãos, no labirinto construído com parte do tesouro
roubado. E ainda na temática das Arábias, dá-nos conta da morte do rei da
Babilónia, no deserto arábico, depois de ter enxovalhado o rei da Arábia (da
boca de quem não saiu um lamento, uma palavra) no seu labirinto de bronze.
Já no
século XX, um homem pára, às nove da manhã, no 4004 de uma rua do noroeste.
Dirige-se a um quarto, de onde raramente sai. Espera. E, como no sonho que
costuma ter pela manhã, ainda na cama, numa turva manhã do mês de Julho, é
baleado por Alejandro Villar.
Em
terras da Índia, um juiz investiga o desaparecimento do justiceiro David
Alexander Glencaim. Em determinada casa encontra um homem velho, antigo que lhe
conta uma velha história. Quando se afastam, despedindo-se, o corpo do
justiceiro, decapitado, é encontrado nos fundos de uma cavalariça.
Finalmente,
depois deste vaivém de tempos e acontecimentos fantásticos, surge o Aleph (um
dos pontos do espaço que contém todos os pontos). Numa cave do prédio de Carlos
Argentino Danerí (pai de Beatriz Viterbo), na rua Garay, junto da Praça da
Constituição.
Diz-nos
Borges, a dado passo, deslumbrado, petrificado, extasiado: “Fechei os olhos,
abri-os. Então vi o Aleph” (p. 168). E acrescenta naturalmente, já rendido ao
acontecimento:”O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas
estava ali o espaço cósmico, sem diminuição de tamanho” (p. 169).
2 - O Aleph, aquele ponto no espaço de onde se vê todo o universo, como
lembra Umberto Eco (1), é um conceito, segundo Jacques Bergier (2), que está
vivo nas tradições mais antigas, assim como nas matemáticas mais modernas. Aleph é o nome da primeira letra do
alfabeto da língua sagrada (3). Na cabala
designa o En-Sof, o sítio do
conhecimento total, o ponto de onde o espírito distingue de um só golpe a
totalidade dos fenómenos, das suas causas e dos seus sentidos. É o ponto para
além do infinito. O Ómega do Padre Teilhard de Chardin e a finalidade da Grande
Obra dos Alquimistas. Diz-nos a lenda, a tradição, que durante a manipulação
alquímica, na qual o adepto oxida a superfície de um banho fundido em metais,
quando a película de óxido se quebra, aparece sobre um fundo opaco a imagem da
nossa galáxia com os seus dois satélites, as nuvens de Magalhães. Se fosse
verdade, tratar-se-ia do primeiro “instrumento transfinito”, afirma Bergier
(4).
A ideia de transfinito foi
concebida em trabalhos matemáticos de Georg Cantor (5), onde se defende que a
parte é igual ao todo. Embora demencial sob o ponto de vista da razão clássica,
é, no entanto, matematicamente demonstrável. Como, por exemplo, no famoso
paradoxo de Banach e Tarski (6).
É deste Aleph que Jorge Luís
Borges trata no seu escrito, assim intitulado. Mas onde foi ele buscar a ideia
do Aleph, aquele ponto fatal de onde se vê o populoso mar, a madrugada e o
crepúsculo, as multidões da América, uma teia de aranha argêntea no centro de
uma pirâmide, um labirinto despedaçado que era Londres, um pátio interior da
Rua Soler com os mesmos azulejos de há trinta anos vistos no vestíbulo de uma
casa da calle Frey Bento, cachos de
uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, convexos desertos
equatoriais, e em Inverness uma mulher inesquecível, e numa casa de Adrogué um
exemplar da primeira versão inglesa de Plínio e ao mesmo tempo todas as letras
de todas as páginas, um pôr do sol em Querétaro que parece reflectir a cor de
uma rosa em Bengala, um globo terrestre posto entre dois espelhos que o
multiplicam indifinidamente num gabinete de Alkamaar, uma praia do mar Cáspio
ao alvorecer, um baralho de cartas espanhol numa montra de Mirzafur, êmbolos,
bisontes, marulhadas, todas as formigas que existem na terra, um astrolábio
persa, e os restos atrozes do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo? A
Dante, ao último canto (XXXIII, 85-96) do Paraíso
(7). Vejamos os versos 85 – 90:
Vi que na profundidade da luz eterna
Se incorpora, ligado por um vinculo de amor,
Tudo o que se encontra espalhado pelo Universo; (8)
Substâncias, acidentes e o seu operar
Quase de tal maneira unidos, que o
Que eu digo, dá uma pálida ideia (9).
E quem era Beatriz de Viterbo? A
ninfa de Dante (10). Para quem escreveu A
Divina Comédia (11).
Armando Palavras
Notas
[1] Sobre
Literatura (Difel)
(2) O Despertar dos
Mágicos ( ).
(3) E do alfabeto Hebreu. Pronuncia-se alif.
(4) Alguns “estudiosos”, sempre prontos para a
especulação do conhecimento, acreditam que seria com uma aparelhagem deste
género que os Maias, que ignoravam o telescópio, descobriram Úrano e Neptuno.
(5) Que viria a morrer louco.
(6) Matemáticos polacos contemporâneos. Banach foi
assassinado pelos Nazis e Tarski (que faleceu em 1983 nos EUA) não foi porque
se exilou nos EUA antes da guerra eclodir. Mas quase toda a sua família foi.
(7) Já Eco lhe faz referência.
(8) Usamos a edição da editora Livraria Sá da Costa
(Trad. Prof Marques Braga). Diferente da edição da Bertrand (2006), trad. Vasco
Graça Moura. Mas as traduções são sempre aproximações.
(9) Nel suo profondo vidi che s’interna,/ legato con
amore in un volume,/ cio che per l’universo si squaderna:/ sustanze e accidenti
e lor costume/ quasi conflti insieme, per tal
modo/ che cio ch’i’ dico è un semplice lume.
(10 ) Embora Dante tenha popularizado a metafísica e a
teologia de São Tomás no seu famoso poema, Dizem-nos Hurbert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly ( Um
Mundo Iluminado, 2011) que a sua motivação inicial era bem mais simples do que
isso. Aos nove anos de idade conheceu em Florença uma menina de oito anos
chamada Beatriz Portinari. Apaixonou-se por ela “à primeira vista”. A partir
daí, Dante fez de Beatriz a sua amada, e
prometeu escrever um poema sobre ela como nenhum outro antes escrito para uma
mulher amada. E conseguiu.
(11) Ao popularizar a metafísica e a teologia de São Tomás,
não admira que no século XVI o poema de Dante fosse considerado sagrado e de “Comédia”
passasse a ser designado “A Divina
Comédia”.
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