Alexandre Parafita |
Os sinos foram, durante séculos, um valioso
meio de comunicação, em especial, nos meios rurais. Davam às comunidades as
notícias alegres e tristes, tantas vezes empoladas pelo critério emocionado dos
sineiros que imprimiam cunhos pessoais no manuseio dos badalos, mas sempre num
quadro de códigos partilhados no meio social envolvente. E se reconhecermos
como válida a teoria de Cazeneuve que considera os mass media como “os meios cuja finalidade habitual não reside na
comunicação interpessoal, mas na transmissão de uma mensagem de um centro
emissor para uma pluralidade de receptores”, então teremos nos sinos, com os
seus efeitos, um dos mais originais meios de comunicação social.
Remetidos hoje a uma mera funcionalidade
associada à marcação das horas e anúncio das missas dominicais, há, contudo, a
memória do seu uso como chamamento para os mais diversos rituais, ora festivos,
ora trágicos e angustiosos. Pelas características do toque a finados, sabia-se
se era morte de homem, de mulher ou de anjinho. Nos toques a rebate, vinham os
alertas de perigo, que se distinguiam caso se tratasse de fogo, de invasão,
saqueamento, caça a ladrões ou batida a animais selvagens, incluindo para espantar
a bicha nos campos. Os rebates desesperados dos sinos apelavam sempre a um
congraçamento colectivo na defesa dos interesses em perigo.
Em muitas aldeias transmontanas, no toque a
finados, usa-se o sino maior do campanário, na crença de que quanto maior for o
estrondo para mais longe iria o demónio naquela hora e não se aproximava do
defunto. Segundo a tradição popular, o demónio ciranda em torno do corpo
procurando resgatar a alma, daí os vários rituais de esconjuro que nesses
momentos o povo costumava praticar, como é o caso da infindável recitação das
“Doze palavras ditas e retornadas”.
Outros toques de grande representação
simbólica, traduzindo todo um universo de codificações socioculturais
partilhadas, estão associados aos momentos do parto. É tradição serem tocadas
nove badaladas quando a mulher está a dar à luz, e em alguns lugares é o marido
que se ocupa dessa tarefa. Nesse momento, as mulheres que andam nos campos
interrompem os seus trabalhos e, num gesto de solidariedade íntima com a
parturiente, rezam nove ave-marias em apelo divino para que tudo corra bem. E
quando assim acontecia, noutros tempos, era costume dar-se uma gorjeta ao
sineiro para que repicasse os sinos em tom de festa.
Também se toca o sino para afugentar as
trovoadas, usando-se aquele que esteja virado para o lugar onde se pretende que
elas vão cair. Habitualmente, era a serra do Marão, “por não dar palha nem
grão”. A crença na eficácia dos sinos em tempos de trovoada é grande entre a
população transmontana. Reza a lenda que na Castanheira, aldeia do concelho de
Chaves, os sinos da igreja de S. João tocavam sozinhos para anunciarem as
trovoadas, o que permitia aos camponeses regressarem dos campos a tempo de se
protegerem e acautelarem os seus haveres. E conta-se também que os galegos de
uma povoação vizinha, ao saberem desse dom, foram lá de noite roubá-los, e que,
depois de recuperados pelos seus legítimos donos, nunca mais tocaram sozinhos.
Para uns ficou a suspeita de que os trocaram, para outros vingou a certeza de
que a virtude dos sinos se extinguira no percurso pecaminoso e infecto a que
foram sujeitos.
Há outras lendas que narram toques
misteriosos sem a presença de qualquer sineiro. Aludem, por exemplo, ao dia da
restauração da independência no ano de 1640, em que muitos tocaram sozinhos num
impulso solidário e patriótico contra os espanhóis, numa altura em que ainda
não tinham chegado a terras tão longínquas as notícias do golpe dos conjurados.
Há também alusões a sinos que tocaram sozinhos vaticinando outras alterações políticas
marcantes, inclusive a morte do rei D. Sebastião nas longínquas terras de
Alcácer Quibir.
Não faltam também lendas de sinos que
narram a sua fuga misteriosa das igrejas onde foram colocados, indo aparecer no
local onde pretendem que uma outra igreja ou capela sejam construídas. Este
contexto traduz geralmente conflitos de vizinhança, com constantes
transladações dos sinos para diferentes locais em função das conveniências
dominantes nas comunidades. E perante questões terrenas desta ordem, importa
que haja uma resposta do Céu, traduzida na fuga do sino à revelia da mão
humana.
Há ainda um fulgor etnográfico notável na
linguagem simbólica dos sinos com as respectivas descodificações que as
diferentes comunidades alimentam, geralmente à luz dos seus caprichos,
quezílias e rivalidades. Atribuem-se, na região transmontana, diálogos aos
sinos nos concelhos de Vinhais, Bragança, Mogadouro, Carrazeda de Ansiães,
Alfândega da Fé e Chaves. Neste último, o sino da capela da Misericórdia diz: “Tem lêndeas, tem lêndeas, tem lêndeas!”.
O sino da capela do Mártir de S. Sebastião responde: “Tira-las, tira-las, tira-las!”. Da capela do Espírito Santo,
pergunta-se: “Com quê? Com quê? Com quê?”.
E o sino maior da igreja matriz responde: “C’os
dentes, c’os dentes, c’os dentes!”.
Alexandre Parafita
in Diário de Trás-os-Montes
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