Virgilio Gomes |
Este termo deveria querer
significar que a receita é confecionada numa panela…! Mas, não, apesar de ser
uma receita culinária executada numa panela é um ícone da cozinha brasileira
com um conteúdo bem específico. É fácil encontrar entendimento que este prato
tem origem na receita portuguesa das “Tripas à Moda do Porto”.
Segundo Luís da Câmara Cascudo,
um dos meus autores preferidos, panelada é “Comida preparada com os intestinos,
os pés e certos miúdos do boi, adubado com toucinho, linguiça ou chouriço, e
convenientemente temperada. É prato próprio de almoço, e servido com pirão
escaldado, feito do respetivo caldo em fervura, com farinha de mandioca.”
Segundo Maria Lúcia Gomemsoro, a panelada já era mencionada em documentos do
século XVI, o que revela a instalação rápida deste prato com influências
evidentes da cozinha portuguesa. Veremos depois a receita na qual se percebe
que há mais semelhanças do que diferenças com as nossas tripas, já citadas. A
panelada está identificada como um prato de origem nordestina brasileira.
Segundo o Professor José Arimatea Bezerra, da Universidade Federal do Ceará, a
panelada é um ícone da cozinha nordestina, mais precisamente cearense, com
origem na região sertaneja. Mas vamos encontrar pratos semelhantes em Minas Gerais onde
também é conhecida por “Cozido Mineiro”, assim como encontramos “Panelada” no
Maranhão, designadamente em Imperatriz. Ainda a “Dobradinha” no Pernanbuco.
Contaram-me que também ainda se come panelada em Teresina, Piauí. Alguns escritores
célebres, como Franklin Távora (1842 – 1888), fizeram entrar a panelada nos
seus textos. Na obra recente com o título “Ceará Terra da Luz”, edição de 2005,
com textos de Ângela de Barros Leal, encontramos nas citações de cozinhas
locais: “… panelada, de cabrito ou de carneiro, repousada de um dia para o
outro no molho aromático de seu sumo e tempero”. Esta transcrição leva-nos à
questão do tipo de carne utilizada, e tempo de cozedura. Se inicialmente seria
apenas de bovinos, encontrei várias receitas com miudezas de caprinos.
Repetidamente é sempre afirmado a confeção de longa cozedura, no borralho, e a
baixa temperatura.
Contam-se muitas histórias
associadas à panelada. Em zonas rurais de interior, e em vésperas de festa,
deixava-se a panelada a cozer em lume brando durante toda a noite. Brincalhões
ficam de alerta durante a noite até conseguirem roubar a panela e levavam-na
para outro local, para terminar a cozedura. De manhã, descoberto o roubo, e
aflição associada, o espoliado era convidado para a festança, e comer a sua
própria panelada. Há ainda a expressão popular que diz: “Panelada é sempre
almoço de sujeito valentão”. Isto por ser um alimento pesado e forte. Mais
ainda se deve referir que a panelada se serve em ambiente convivial. Geralmente
sábado ou domingo. E é esse ato que continua louvável. Gente se reunindo à
volta de uma panela cheia, e partilhada por todos.
Lamentavelmente estes pratos têm
sido pouco aproveitados para promoção turística. Muitas vezes com a desculpa de
que os turistas não apreciam este tipo de confeções. O que estará em causa não
é o conteúdo da receita mas a forma como é apresentada. Raramente encontro
propostas de cozinha cearense tradicional. Timidamente vão aparecendo alguns
produtos com uma roupagem especial. Claro que há exceções, da “Colher de Pau”
ao “Cantinho do Faustino”. Já refletiram na quantidade de pessoas que se
deslocam, em França, a Caen só para comer tripas? E em Portugal assiste-se a um
crescendo de gente procurando as “Tripas à Moda do Porto” possivelmente graças
à divulgação da sua Confraria, e dedicação e empenhamento do meu amigo Hélio
Loureiro.
Encontrei vários locais,
restaurantes, especialmente no Centro e bairros mais periféricos de Fortaleza,
mas optei por conversar com uma grande família que partilharam comigo a receita
de panelada, lá de casa. As dicas fundamentais eram-me ditadas pelo casal
Nizinha e Cícero Anastácio (meu Mestre de Maracatu), e completadas pela filha
Mara (a Leda).
Começa-se por preparar as carnes:
bucho, tripa, coração e bofe. As mais delicadas são o bucho e as tripas que são
lavadas várias vezes com água à qual se junta sumo de limão e vinagre. As
tripas viram-se com a ajuda dos dedos, ou com um pauzinho. Depois de garantir
uma boa limpeza destas carnes, dá-se-lhes uma escaldadela. Limpa-se também,
muito bem, pé de boi (mocotó). As carnes atrás citadas são todas de gado
bovino. Prepara-se uma panela, que pode ser de barro, na qual se coloca óleo ou
azeite, e pica-se cebola e alho para refogar. Juntam-se as carnes ao refogado e
adiciona-se tomate, cheiro verde (coentros e cebolinho), folhas de louro,
pimenta do reino e colorau. Pode agora mexer-se tudo. Por vezes adicionam
pedacinhos de carne de sol, e ou carne verde cortada apenas temperada com sal.
Cortam-se vários tipos de chouriço ou linguiça e juntam-se na panela.
Adiciona-se um pouco de água para cozer, e tempera-se com sal. Vai a lume alto
se for para comer de imediato, cerca de uma hora, prática que não se aconselha.
Mas manda a tradição que a panelada deve ser confecionada de véspera ficando no
borralho durante a noite. No dia seguinte retira-se a gordura que sobe à tona.
Entretanto aproveita-se a água de cozer as carnes para preparar o “pirão” com
farinha de mandioca. O pirão é o acompanhamento ideal para a panelada, e prepara-se
também arroz branco. Confessam-me que a bebida ideal é a cachaça! Para uma
comida forte, dizem-me que tem que se beber a condizer. Hoje em dia são poucos
os que têm essa coragem, e a gente nova foge para a cerveja. Todos confessam
que a panelada é para comer em
grupo. Tem um sentido clânico. Mas um bom tinto também lhe
faz boa justiça. Quis ouvir também um profissional. O Chef Evando Souza
partilhou comigo a sua receita. Pequenas nuances a distanciam desta receita
familiar. Primeiro coze levemente as carnes e só depois as adiciona ao
refogado, que não leva alho. Na maioria tudo coincide, mais carne, menos
tempero…
Bem, depois ainda falámos da
“dobradinha” que é uma panelada à qual se junta feijão fradinho. Claro que fiz
logo a ligação à nossa Dobrada mas com feijão branco. Depois ainda temos em
Portugal as inesquecíveis “Tripas aos Molhinhos” de Vila Real, e boas receitas
com tripas em Rio Maior.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto © Ramon Cavalcante
atualizado em Sábado, 28 Janeiro
2012 08:16
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Jorge Borges
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