Há muitos, muitos anos, numa noite
mágica da minha vila transmontana, de repente os contos de fadas, as histórias
contadas pelas mulheres à porta de casa, foram substituídas por um homem que
criou ali mesmo as quadras de um poema, para os que se sentavam na escada de
pedra de uma casa da rua de Santa Luzia.
Havia rapazes e raparigas sentados na
escada exterior daquela casa, havia camponeses e operários juntos, como por
acaso. Olho ainda o grupo e distingo o Miguel, um trolha, homem alto e magro, a
dizer aquilo com a naturalidade maior de quem trabalha.
Fiquei impressionado para o resto da
vida. Afinal a arte (a escrita de livros, a música, o teatro, a poesia) podia
ser nossa. Se a soubéssemos conquistar, se não fôssemos apenas os parvos que só
sabem falar de futebol e trabalhar sem questionar a injustiça e a exploração,
poderíamos ir mais longe, crescer na vida e ocupar de corpo inteiro a natureza
das coisas.
De repente, aquilo que era só poder dos
grandes, dos que estudavam e viviam longe de nós, era também poder nosso, pela
voz desse homem, um trolha, um operário dos muitos que então havia.
Era no início da década de 1950/60.
Fiquei atento, desde aí, à mudança, à
conquista de todos os poderes da terra. Se um homem, ou mulher, cá de baixo, do
trabalho, se aventurava a ser grande e criava poesia, então era possível
conquistar todos os poderes do mundo e mudar a vida.
Um rapaz, de repente feito tocador de
gaita-de-foles, filho da mulher que guardava as sentinas públicas, na praça
nova da vila, transmitiu-me a segunda impressão de força. Ele chegara dos lados
de Miranda do Douro e tocava, à porta de casa da mãe, e esse domingo foi um dia
libertador.
Para quem tocava?
Ali estava eu, à entrada da praça nova,
e ele, sozinho, a tocar. Era a transgressão, no poder de fazer música, de ligar
a nossa vida dura ao prazer e à alegria.
Os outros, os grandes senhores, não
gostavam disso, na vila. Quando nos viam juntos, com o Mestre Manuel Palmeirão
a contar histórias, ou a inventar as farsas que iria fazer no Entrudo com o
João do Albino e o Fernando Tripeiro, mandavam a guarda. Telefonavam, de casa,
para o posto, e lá vinha a patrulha afastar-nos, ou levar os mais renitentes
para o porão do quartel da GNR.
O som da trompete de um homem que vivia
no largo de igreja, e que pertencera à banda de música já então desaparecida,
todas as manhãs atravessava a janela da casa, ocupava o largo e entrava em nós
com poderes mágicos, de incentivo a voos novos, de procura de saídas para a
nossa tristeza, para a vida amarga que tínhamos.
Por tudo isso, aos dez anos, fiz as
primeiras quadras da minha vida. Estava sentado no muro do pomar, num dia de
calor, acabara de escrever um postal apaixonado a uma primeira namorada e de
repente veio aquilo, os versos, que até eram satíricos e fizeram torcer de
raiva certos senhores da terra.
*****
Estava traçado um destino, no meio de
tantos destinos adversos?
Nesse tempo, nós não podíamos aspirar a
outra coisa que não fosse o trabalho nas oficinas ou nos campos. Os mais
afortunados iam trabalhar para as lojas de comércio, feitos marçanos. Aos dez
anos, em Julho de 1952, quatro alunos da 4ª classe ficaram distintos no exame e
não foram estudar para o segundo colégio particular que iria abrir na vila, em Outubro. O primeiro
colégio tinha fracassado, anos antes, e aí vinha outra hipótese de rasgar novos
horizontes. Os quatro melhores alunos que ficaram com a distinção não
conseguiram ir estudar, por não haver dinheiro para as mensalidades, e foram
trabalhar para a terra e para as oficinas da vila. Outros estudaram e víamo-los
passar, cheios de livros, na nossa infância dos dez, onze e doze anos já
carregada de violência, de necessidades e de pesos que provavelmente nos iriam
esmagar.
A
nossa liberdade foi uma biblioteca. Tinha um guarda que era secretário da
Câmara e sargento da Legião Portuguesa. Atirava-nos as chaves com má vontade,
cada vez que aparecíamos à porta da Câmara Municipal, ou então dizia: hoje não
há livros!, e lá tínhamos de regressar a casa com os já lidos, à espera de
outro dia de melhor humor desse homem que guardava o poder do sonho e do saber,
de tudo o que ainda mal percepcionávamos.
A vida rolou e entraram nos mundos
daquelas duas ou três crianças que liam livros da biblioteca os universos tão
vivos de centenas de escritores que ali estavam à nossa espera. O mais velho de
nós principiou a escrever contos aos treze anos. Aos quinze, saía da oficina às
cinco horas da tarde e ia para o café, ler por exemplo o “Vermelho e Negro”,
volume enorme que escandalizava os agrários e outros senhores, sentados no
espaço do salão que só a eles pertencia.
Lá fora, na praça, um homem passeava no
jardim e lia o jornal, o “Primeiro de Janeiro”, outra ofensa clara a quem tudo
dominava. Para nós, estes acontecimentos foram decisivos, a abrirem pistas, a
traçarem destinos diferentes. Manuel da Fonseca, com “Aldeia Nova”, deu o
primeiro sinal da partida necessária e do sempre possível regresso à terra já
numa postura crítica. Victor Hugo, Aquilino Ribeiro, Pavese, Redol, Ferreira de
Castro, Eça de Queirós, tantos e tantos escritores enfileiraram ao nosso lado e
dormiram connosco, nas tardes e noites dessa terra agreste e aparentemente
parada.
Foi um trajecto duro. Manuel Palmeirão,
um mestre com quem trabalhei numa oficina, na velha forja de histórias criadas
por ele ali mesmo, enquanto o ferro aquecia ou o levávamos a tomar forma,
conduziu-me sem querer pelos caminhos da imaginação e da descoberta incessante
e sofrida do mundo que não tínhamos.
Os livros lidos às escondidas, pela
noite dentro, ou em sítios sossegados, perto da terra, das árvores e dos
homens, abriram outros destinos que não seriam os nossos, na falsa normalidade
da existência que nos impunham.
Creio que foi através de Manuel da
Fonseca que tive o primeiro contacto com a poesia popular do Alentejo. Ainda
então os livros significavam rasgões enormes na escuridão da nossa vida de
transmontanos, antes de sermos sacudidos pela grande emigração para essa Europa
a que (não) pertencíamos.
Mais tarde, conheci uma décima de um
poeta e sindicalista de Aljustrel, com o mote: “Não tenho vagar amor – Para te
dar atenção – Tenho muito que fazer – Na minha Associação” – composição que me
haveria de impulsionar determinadamente para o levantamento que fiz em três
distritos do Alentejo, Évora, Portalegre e Beja, de que resultou uma edição
difícil e gratificante – “Poetas Populares Alentejanos”.
Como técnico da Secretaria de Estado da
Cultura, foi-me dado apenas um mês para esse trabalho, seguido de outro,
arrancado a ferros. Apesar de tudo, tive a oportunidade rara de sulcar grande
parte do Alentejo, de ver e ouvir os criadores de poesia e os construtores da
Reforma Agrária. “Mãe da minha alma”, como dizia Francisco Angélico, poeta
popular de Aldeias de Montoito, em relação ao 25 de Abril, “um susto eles
levaram...” Por isso, foi tão difícil autorizarem-me a andar pelo Alentejo, à
procura dos poetas e criadores da vida e da revolução. Por isso também, pelas
dificuldades criadas, não andei pelo litoral, onde sabia que existiam homens e
mulheres que faziam poesia e construíam a liberdade e o futuro nos campos.
Hoje, olhando para trás e relendo o
prefácio do livro “Poetas Populares Alentejanos”, percebo melhor porque fiz
esse levantamento, no ano amargo de 1976, após o 25 de Novembro e a primeira
morte do 25 de Abril. Ia para onde era possível ir, para uma região de gente
activa e de orgulhos legítimos, de consciências e de sonhos, à procura do que
perdera e haveria de reencontrar no mais fundo de todos nós, o direito
inalienável à conquista da felicidade e da mudança.
Está lá, nessa procura, sempre, o
encantamento perante o primeiro homem que fez e disse uma quadra, ou o segundo
homem que se pôs à frente das sentinas públicas onde a mãe era guarda e tocou
gaita-de-foles num som que ainda hoje atravessa a minha vida e me diz que é
sempre possível conquistar o impossível, ir mais longe, meus amigos, sempre
mais longe, como diria Manuel da Fonseca, um homem e escritor desse sul mais
lindo, o que está dentro de nós e se interliga com o meu Trás-os-Montes e lhe
dá vida e futuro.
Aqui estamos, a falar de poetas e da
língua que não queremos perder. Há muitos anos, ainda não imaginava que iria
fazer um livro que se chamaria “Emigração e Crise no Nordeste Transmontano”,
entrevistei um casal de emigrantes que tinha dois filhos, a passarem férias em Vila Flor. Falaram
do salto, das dificuldades, e até deram lustro à vida airosa que já teriam
conquistado em França. Os
filhos também falaram, misturando curiosamente o português com o francês. Era
em 1970. Tempos depois, gorada a ideia de fazer um filme sobre camponeses
transmontanos e a emigração (por intervenção da GNR secundada por uma brigada
da PIDE), tirei essa e outras entrevistas das fitas do gravador e tentei
publicá-las. A desse casal emigrante foi parar ao Jornal “República”. Enviada à
Censura, veio cortada nas partes em que as duas crianças falavam da vida que
tinham em França, exactamente quando o francês que já utilizavam se sobrepunha
à nossa língua. Fiquei estupefacto, pois as frases eram tão inocentes como as
crianças... Mais tarde, percebi a subtileza dos censores, quando veio a lume a
ausência de escolas e de professores portugueses em França e noutros países de
forte emigração nossa. Por isso perdemos a 2ª geração e a 3ª geração dos filhos
de emigrantes. Por isso perdemos mais e mais a nossa língua, a cultura e a
identidade que nos caracteriza.
Foi isso, o peso da língua viva e
criadora, que senti no Alentejo, nesse ano de 1976 e noutros que se seguiram.
Carreguei um gravador e um saco, de terra em terra, de casa em casa, à procura
da resistência antiga, da reforma agrária que avançava nesse tempo, e de que
maneira, e dos poetas criadores de quem tinha lido composições nos livros de
Manuel da Fonseca e também em jornais, embora muito esporadicamente. Por todo o
lado, de Montemor-o-Novo a Montoito, de Benavila a Campo Maior, de Pedrógão a
Aljustrel, de Corte Vicente Anes a Vale Vargo, encontrei esse carinho e essa
paz que sentimos quando estamos na nossa terra e no meio de homens e mulheres
que são livres e impõem essa liberdade como quem respira, como quem ama e faz
décimas ao mundo, para acordar sempre em nós essa ambição de romper fronteiras
e ir mais longe, lá onde se encontram a alegria e a fraternidade, a ambição e o
sonho de fazer de novo o que está errado e criar o que não existe.
Por isso, alegra-me ver um emigrante da
minha vila que ainda é analfabeto e conta a história do irmão que ia descalço
para a escola, em dias de neve, com um sentido crítico acentuado pelas lutas e
greves que viu em França, ou mostra com alegria a biblioteca das filhas, que
estudaram e se libertaram à custa do seu sacrifício e da participação activa
delas e da mulher, nesses anos de ausência e de dor. Por isso, é sempre com o
sentimento íntimo de dar mais um passo em frente quando descubro que em
Montemor-o-Novo foi feito, três anos depois de por lá ter passado e de não ter
encontrado poetas, a não ser os que faziam a reforma agrária, um levantamento
que permitiu a publicação na revista Almansor de poema de cinquenta e três
poetas populares do concelho, homens e mulheres que trouxeram, através da
Câmara Municipal e para todos nós, um acervo de trezentas composições
criadoras.
*****
Hoje, é um dado adquirido que o Poder
Local tem sido um apoio fundamental ao levantamento e à projecção da
criatividade popular, no sul, sobretudo, mas também noutras regiões do país. Ao
invés, o poder central, concretamente a Secretaria de Estado da Cultura, para a
qual realizei este levantamento de poetas populares, fez tudo para interromper
esse meu trabalho logo ao fim do 1º mês de levantamento e recolha no Alentejo.
O outro tempo de trabalho de campo foi imposto por mim e o trabalho de casa
saiu dos meus fins-de-semana, das noites e das férias. Em 1977, o trabalho
estava pronto e era grande a incomodidade dos chefes, quando se propunha a sua
publicação. Só em 1979, com o poeta e romancista Helder Macedo à frente da
Secretaria de Estado, foi possível abrir concurso e publicar finalmente, em
1980, numa editora, três mil exemplares de um livro reduzido a um terço do que
era possível publicar, por razões de custos e da magra dotação concedida. Ficou
para trás um projecto que era mais amplo, de incentivo em todo o país ao
levantamento, à recolha, ao estudo e à difusão do que era, e é, património de
todos. Ficaram para trás muitas oportunidades de dar a palavra aos que afinal
vêm tendo voz porque existem estudiosos, autarcas, amigos da língua e da
cultura, sempre, em cada sítio, atentos ao fluir da criatividade e do sonho,
essa utopia transformada em realidade, do homem e da mulher que muitas vezes
não sabem ler mas vêem impressa a sua voz e a sua criatividade e sabem que
jamais serão calados por poderes obscurantistas.
Por isso, em Lisboa, no Porto ou noutra
cidade, é sempre triste ver quando alguém pensa mais nos que já têm o que têm,
o acesso à cultura, o poder do saber e se aborrecem diariamente de tanto
espectáculo, de tanto concerto, e coçam a barriga de tédio, fingindo lerem
livros ou verem exposições, quando deviam voltar maiores esforços para a
pesquisa, o levantamento, a descoberta desse gesto às vezes aparentemente tão
pequeno que é a chegada de mais um ser afastado da cultura e da criação, por
origem, por classe, pela carga diária de alienação e de trabalho ou por falta
dele. Um ser que se aproxima e faz um poema, ou quer fazer música, ou teatro,
ou quer participar na vida com os outros, e não encontra atenção, nem resposta,
nem um posicionamento sério, da parte de quem, afinal, poderá deter poderes de
decisão mas já não sonha, não inova, não revoluciona, e apenas faz de suporte,
de mero suporte, daqueles que detêm os poderes de tudo e não querem sonho, nem
criatividade, nem uma nova vida que afinal acaba sempre por surgir, lá longe,
na nossa memória e no futuro da conquista daquilo que pertence a quem está vivo
e quer viver com todos os direitos, livre e em plenitude.
Que debaixo duma árvore, em
Trás-os-Montes, no Alentejo ou em qualquer parte do país, numa escada de pedra
ou no silêncio da casa, nunca faltem um homem
e uma mulher a enfrentarem o mundo e a mostrarem mais uma vez, mil
vezes, que a cultura e o conhecimento são de nós todos. Têm de ser de todos
nós, para transfigurar o quotidiano, para que as transformações e novas
revoluções aconteçam e nasçam outras poesias e vidas, libertas de fome, de
opressão e de violência, neste País que amamos e cantamos, mesmo quando não
responde aos nossos anseios e se deixa ocupar e destruir por dentro e por fora,
pelos inimigos encapotados ou declarados da nossa existência independente, onde
deve caber sempre a felicidade de criar e de trabalhar em plenitude e
liberdade.
António Modesto Navarro
O autor
António Modesto Navarro nasceu em Vila Flor (Trás-os-Montes) em 3 de Fevereiro de 1942. Trabalhou numa oficina, foi fuzileiro naval, esteve na guerra colonial em Moçambique, foi criativo publicitário e técnico superior principal do Ministério da Cultura. Desenvolveu intensa actividade de animação cultural, em organizações como a Associação do Nordeste Transmontano, Voz do Operário, etc., quer participando em congressos, seminários e encontros e realizando levantamentos da realidade sociocultural. Além de ter colaborado regularmente em revistas e jornais nacionais como “Seara Nova”, “Vértice”, “A Capital”, etc., colabora em várias publicações e é autor de 39 livros (ficção, poesia, levantamentos sociológicos e reportagem). Em 1968 publicou o seu primeiro livro, Libelo Acusatório, prefaciado por José Saramago. E dois dos seus livros foram proibidos e apreendidos pela PIDE. Sob o pseudónimo de Artur Cortez, na década de 1980/90, revelou-se como escritor policial. Tem colaborado em obras colectivas, está representado em colectâneas, antologias, livros escolares e participou em séries de televisão. A obra policial de Modesto Navarro foi objecto de uma dissertação apresentada na Universidade de Birmingham (Inglaterra). E foi um dos actores principais do filme “Meus Amigos”, de António da Cunha Telles, realizado em 1973. Foi presidente do Conselho Regional da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro e fez parte da direcção desta instituição regionalista, a mais antiga de Lisboa. Foi presidente da Direcção da Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário. De 1976 a 1985, foi eleito na Assembleia Municipal de Vila Flor, em Trás-os-Montes. Desde 1985 é membro da Assembleia Municipal de Lisboa. Desempenhou o cargo de Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, e esteve representado na Assembleia Metropolitana da Grande Área Metropolitana de Lisboa. Recebeu o Prémio Caminho de Literatura Policial em 1991. Recebeu a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa em 2002.
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