O cancioneiro é a amostra mais perfeita da identidade cultural, telúrica, e humana, rácica, histórica deste povo uno e único.
O paralelismo temático, semântico, cíclico, histórico, etnográfico é a afirmação cabal da unidade de povos, de motivações, de tendências, de destinos, de sentimentos, que a saudade e morrinha Rosália e Teixeira de Pascoais retratam. Podemos comprovar se houver dúvidas.
O herói destas montanhas e autor e actor deste passado estratificado e duradouro, podemos chamar-lhe galego, minhoto, transmontano, barrosão.
Tinha razão o poeta João Verde em Monção:
A Galiza mailo Minho,
São como dois namorados,
que o rio trás separados,
quase desde o nascimento.
Deixai-os pois, namorar,
Já que os pais para casar
Não lhes dão consentimento.
Um breve retrato do que se canta desde o nascer ao morrer leva-nos à mesma conclusão, como dizia Joaquim Lorenzo Fernandes: o galego nasce entre cantigas, vive cantando, e despois do seu passamento, a sua lembranza mantem-se entre cantigas. O mesmo dizemos do raiano Ourensano, Transmontano.
COMO E ONDE NASCEU O CANCIONEIRO
Teófilo Braga diz que foram as mulheres que guardaram no seu seio amoroso, com num relicário o lume sacro da poesia...Mas não só. Também os poetas populares os cantadores dos desafios, as regueifas galegas, das festas, dos serões, das ruadas, dos dias santos, feiras e romarias, construíram espontaneamente ao ritmo do realejo, da sanfona, do cavaquinho, ou da concertina, os versos rimados, os poemas do mundo rural, as alegrias e sofrimentos, os trabalhos colectivos, os escárnios e má língua. Também, quando alguém morre e deixou saudade e pena, o poeta inventa os motes, meio cantados e chorados, que o livro da memória guarda e transmite.
A poesia popular é um armazém de sentenças, sentimentos, saberes, preocupações, cuidados, anseios, paixões, amores, vícios, valores, defeitos e qualidades do povo que as inspirou.
Como os ditos e provérbios, em frase mais frias e curtas, assim a quadra popular em harmonia rítmica, cantada no ermo da montanha, ou no bulício da roda, e da ronda é o retrato do íntimo e fundo anseio humano.
O Homem da raia, leitor nato da natureza, aprende a cantar na solidão do monte com os passarinhos, ou em grupo como as andorinhas. Imita-os na descontracção, na arte, na harmonia, na alegria. Aprende com os animais a ser duro, teimoso, paciente, forte conforme com o ciclo normal da vida e das coisas. E são também a natureza, as plantas, as flores, os animais tema de inspiração, canto e de semelhanças com a vida humana.
Como um Adão neste verde paraíso nortenho, em constante equilíbrio e harmonia, o nosso raiano, agarrado ao seu torrão, é um lírico, idílico e heróico poeta do amor, à terra, à mãe, ao trabalho, aos seus santinhos curandeiros. Se de poeta e louco todos temos um pouco, aqui este dito acerta em cheio.
DIFERENÇAS RAIANAS
Quando leio, ouço o cantar dum lado e doutro da raia, e tenho esse privilégio desde Tourém a Randin, desde V.Perdizes a Videferre de ouvir cantar o galo em dois reinos, estou em sintonia com a mesma identidade cultural, rácica, etnográfica. As palavras, fora o sotaque, são as mesmas; as rimas, a métrica, os temas em nada diferem. O autor também será o mesmo, igual ambiente criador o proporcionou.
Ao som da gaita, ou da sanfona tanto faz, a melodia alegre, umas vezes, triste outras, encaixa na alma tanto do rural, como do urbano como em terreno próprio.
Muitas vezes apetecia-me fazer um cancioneiro da raia, colhendo num lado e noutro. Creio que já está feito por todos os investigadores destes temas. Mas dos que tenho consultado e ouvido, quase posso afirmar que os dois cancioneiros fazem um, porque o Espírito é o mesmo, como em Deus uno e trino.
A promiscuidade da raia causou esta irmandade.
Peregrinos de Compostela, mendigos, pedintes da casa ardida, artesãos sem fronteiras, contrabandistas e romeiros das festas importaram com fidelidade e adaptaram ao idioma local as modas novas, que neste peregrinar lhe assentavam e falavam no fundo da alma.
QUEM CANTA SEU MAL ESPANTA
Os trabalhos agrícolas pesados ou não, eram e ainda podem ser às vezes, acompanhados do canto em coro, em solo, em desafio. A mecanização e o ruído das máquinas apagou a voz do homem e a função aliviadora do canto.
Dantes pelas terras raianas, cantava-se nos serões, na rua à noite, após os trabalhos, nas festas e arraiais, nos fiadeiros, nas desfolhadas, malhadas, ceifas, vindimas, espadeladas e arranque dos linhos.
E cada actividade era descrita, relatada nas suas múltiplas facetas cantando, na maior parte das vezes, entre rapazes e moças, com sentidos amorosos, autenticas declarações de alegria, amor, dor, paixão, felicidade, ou o contrário disso se era o caso, do amor não correspondido, da ausência, da infidelidade, do ciúme, do erotismo camuflado, do convite e provocação ao namoro, ao casamento, à união de corações e corpos, onde algumas vezes a emulação chegava a vias de facto, cacetada até dar cum pau.
O SAGRADO E O PROFANO
Além do ciclo do trabalho caseiro, agrícola, há no decorrer do ano as várias festas e dias santos que foram pretexto dum rico cancioneiro. Falamos dos reis, desde Natal a 6 de Janeiro a pequenada, os moços e moças de porta em porta, aprenderam dos pais as cantigas ao menino Jesus, seguidas de outras dedicadas ao patrão e gente da casa, que depois dão a chouriça ou o lacão do porco.
No Domingo Gordo, Domingo corredoiro na Galiza, julga-se e joga-se o galo, que depois se reparte pelas raparigas e rapazes do povoado em poesia testamentária, Se morre o burro faz-se o mesmo. Um habilidoso faz os versos e reparte o burro por todos, como o testamento do burro
A criança da raia norte, mal nasce é logo embalada com as mesmas e semelhantes canções e gestos pela mãe, ou irmãos mais velhos: dorme, dorme, meu menino/que a mãezinha logo vem…
Os jogos idênticos e sortes são ensinados pelos mais velhos em rimas infantis semelhantes.
Podíamos dizer que os namoros aconteciam após declaração feita em verso envergonhado, como verdade disfarçada, dum amor como que adiado, proibido, tímido.
A boda também nas aldeias raianas era ocasião de treinar a veia poética dos mestres ou mais atrevidos na arte da cantoria e no jeito da quadração.
A noiva era pedida pelos cantadores em desafio, à porta da sua casa, que saía chorosa e bela despedindo-se dos seus. Era conduzido no mesmo enlevo poético até à igreja e da igreja ao banquete. O ramo da noiva cheio de fitas e doces era cantado, saudado, interpretado e entregue aos noivos com um sem fim de cantigas simbólicas.
As festas e grandes romarias da Raia Ourensana e Transmontana são frequentadas ainda hoje tanto por uns como por outros e era aí que as culturas se misturavam e selavam na memória colectiva, imbuídas dum sentimento mágico, religioso, místico. A identidade da fala, de anseios e sentimentos levava as gentes novas a guardar e trazer para a sua aldeia a moda nova, que logo circulava e se fundia com a tradição anónima.
A forma poética mais comum é a quadra que rima nas pares e é livre nas ímpares. Algumas podem variar
De métrica e rima por causa da música acompanhante.
Além da quadra de amor a mais comum e sobrevivente, e muito semelhante ou mesmo igual, há as quadras de sarcasmo, crítica a profissionais, artesãos, sogras, viúvas, velhos, padres e outros.
Uma parte do cancioneiro das nossas terras altas, é ainda o dos romances à laia medieval e trovadoresca, que relatam amores, crimes, lendas, histórias que nos vieram pelos pobres pedintes, mendigos, peregrinos de Compostela e são os mesmos dum e outro lado da fronteira.
São poemas herói cómicos, líricos e dramáticos cantados uns, romanceados outros e ficaram vivos na memória dos mais velhos, hoje quase perdida e tantas vezes para sempre, ao não ser recolhida pela geração presente, que parece fugir da sua identidade e cultura, para ser domada pela massificante invasão da aldeia global, que é hoje o mundo.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
Padre Fontes |
António Lourenço Fontes (Padre), nasceu em Cambezes do Rio (Montalegre), mas está ligado ao emblemático Congresso de Vilar de Perdizes, que há mais de 20 anos se tem vindo a realizar anualmente. A sua obra literária é vasta e dela destacamos Os chás dos Congressos de Vilar de Perdizes. Além de estar ligado a este ambiente cultural do Barroso que soube criar, actualmente divide a actividade de pároco com a de “empresário”, ao fundar em Mourilhe o hotel rural Senhora dos Remédios, entre o Gerês e o Larouco, nas margens do Cávado e do afluente Pedreira.
Boa tarde,
ResponderEliminarOnde posso comprar o livro "Fontes, António Lourenço Os chás dos congressos de Vilar de Perdizes 1985"
Muito obrigada,
Isabel Manique