A música é um dos elementos que
mais define, determina e diferencia os povos entre si, sendo, sem dúvida, uma
parte importante a sua cultura.
São principalmente os que
gravitam no mundo dos gabinetes universitários que pensam que a música
tradicional é um fenómeno estático, fossilizado e incapaz de sofrer transformações. Para essas
pessoas, a música tradicional passa pela sua interpretação, sem dar lugar à
criatividade. Também alguns daqueles dos que estão mais relacionados com a
cultura tradicional limitam-se à sua interpretação pura e defendem a fidelidade
e a pureza da versão autêntica. Felizmente,
ainda existem os que pensam que a cultura tradicional dos povos não é
algo que, tendo surgido num dado momento da História e de maneira individual,
se repita de forma invariável. Esta foi transmitida directamente de geração em
geração, dentro da comunidade, ou da própria família. Na sua formação tomaram
parte, em maior ou menor medida, cada uma das novas gerações, dando origem ao
aparecimento de novas matizes culturais.
Os que se dispõem a
abandonar o “conforto” da urbe e “palmilham” os caminhos da verdadeira recolha
e compilação dos cantos e melodias tradicionais são peremptórios em afirmar que
a música tradicional é, em muitos casos, um fenómeno vivo e em contínua
evolução. A mesma melodia, ou canção, modifica-se ao ser recolhida em
diferentes lugares de uma mesma região, ao ser cantada por jovens ou por
pessoas mais idosas, apresenta até nuances conforme a sua versão (cantada ou
instrumentalizada).
As culturas tradicionais
sempre foram fenómenos abertos, e influenciaram-se, reciprocamente, nas suas
relações, através da história.
Fra Angelico, Detail of the Lianailuoli Tabernacle 1433, Florence, Museo di San Marco |
Actualmente, toda a comunicação é
recebida por outras vias (escrita, radiofónica, televisiva, online),
tornando-se muito mais abrangente e em maior quantidade, sem conhecer as fronteiras do seu próprio país. Estas serão
algumas das razões que deram origem ao facto das formas estéticas serem cada
vez mais uniformes e que a participação activa e directa do povo, na música,
seja menor. Assim, se justifica que, nos últimos tempos, se tenham perdido
tantas das particularidades da música tradicional e se tenha, por assim dizer,
provocado um retrocesso do património popular. O mesmo acontece com a língua e
com a escrita, sendo os regionalismos cada vez mais relegados para um segundo
grau de importância. E, a pouco e pouco, nasce uma cultura globalizada, que
desvaloriza ou apaga as idiossincrasias de cada nação.
Cada vez mais os regionalismos
deixam de ser tão evidentes para darem lugar a uma língua, também ela,
globalizada.
Numa época em que a
sociedade se torna cada vez mais global, quer nos aspectos culturais,
económicos, sociais e até mesmo políticos, é premente que a nossa identidade
cultural não se perca nem desvirtue. Não é novidade que o Litoral continua a
ser o grande meio impulsionador de uma cultura mais efémera e que a maior parte
das vezes não se identifica com as nossas verdadeiras raízes culturais. Essas
ainda as podemos encontrar, ainda vivas, no nosso país interior.
É no mundo rural que reside a
base de sustentação desta cultura, que nos meios urbanos é vista de uma forma
mais intelectual e elitista, mas a sua divulgação é escassa ou quase nula.
Em matéria de cultura, as nossas
regiões não se podem considerar desfavorecidas, uma vez que são depositárias de
histórias e de tradições construídas ao longo de gerações de homens e de
mulheres, mantendo viva a sua identidade própria.
No entanto, para permitir uma tomada de
consciência do valor da tradição e da necessidade de preservá-la, é essencial
proceder a uma vasta divulgação dos elementos constitutivos deste património
cultural.
Nos dias de hoje, em que
tanto se fala na região do Douro como Património Mundial, é altura de pensar
que a música tradicional desta região, enquanto constituinte de manifestações
da criatividade intelectual, individual ou colectiva, merece beneficiar de uma
protecção que se inspire na que é dada às produções intelectuais. Tal atitude revela-se indispensável para desenvolver,
perpetuar e divulgar, ainda mais, este património, simultaneamente no País e no
estrangeiro, sem atentar contra os interesses legítimos envolvidos.
Curiosamente, Portugal é dos
poucos países da União Europeia que não reconhece a música tradicional como
algo de importante e que mereça um estudo mais aprofundado. A comprová-lo está
o facto de não existir nenhum curso oficial quer nos Conservatórios, quer no
Ensino Universitário, dedicado ao ensino dos instrumentos musicais
tradicionais, caso da gaita-de-foles, do cavaquinho, da braguesa, da toeira, da
campaniça e da própria guitarra portuguesa. É no Associativismo que podemos
encontrar a grande escola, e, consequentemente, o pilar da conservação e
difusão de uma forma cultural que é, sem dúvida, uma das formas mais ricas da
nossa identidade cultural.
Portanto, não é de estranhar
que, nos poucos estudos académicos sobre o assunto, se possa concluir que nas
grandes cidades, a música tradicional portuguesa não consta das preferências
dos seus habitantes. Obviamente, que o interesse por este tipo de música dos
meios de comunicação, quer seja a rádio ou mesmo a televisão, é quase nulo como
se houvesse um complexo motivado pela suposta escassa qualidade da música
tradicional/popular.
Provavelmente, o poder
central devia estar mais atento a este tipo de fenómenos, pois, para além da
sua importância pedagógica e social, poderia levar milhares de jovens a
conhecer um Interior que também é seu. Podemos afirmar que, tendo em conta os
poucos projectos existentes, estes, são excelentes meio de criação de
sinergismos de desenvolvimento e sustentabilidade, capazes de suster a tão
preocupante desertificação que o Estado diz querer resolver, mas na realidade
nada fazer.
O problema que podemos colocar
é o de como se poderá afirmar e defender uma cultura tradicional num quadro de
grande envelhecimento da população e de analfabetismo, com a consequente
passividade que ambos implicam.
É óbvio que se o património
musical fosse visto de uma forma diferente por parte do Estado, poderíamos ter
um Interior profissionalmente mais apelativo para os jovens. Esse investimento
passaria, a saber:
-
criação de novos cursos superiores dedicados ao estudo específico dos
instrumentos musicais tradicionais portugueses;
-
criação de pequenos museus regionais, onde a comunidade, em especial os jovens,
possa, não só observar os diferentes tipos de instrumentos, mas também ouvir
pequenos concertos, que demonstrem as capacidades melódicas e harmónicas dos
mesmos. Concertos que poderiam ser uma forma de incentivar os diferentes grupos
da região e dar mesmo lugar a intercâmbio entre diversos grupos musicais de
várias regiões;
-
promover, quer nas escolas do ensino regular, quer nas escolas de ensino
artístico, “workshops” de construção de instrumentos tradicionais;
-
implementação de pequenas indústrias de instrumentos tradicionais, que poderiam
ser estimuladas por Associações Culturais ou Autarquias, mas de iniciativa
privada;
-
maior divulgação, por parte dos meios de comunicação locais, regionais e
nacionais da nossa música tradicional.
É imperioso que os jovens
reconheçam que muita da música que ouvem tem as suas raízes nas formas
folclóricas celtas e em fórmulas mais elementares da sua cultura, utilizadas
num passado ainda pouco distante e, por isso, susceptíveis de serem renovadas, ampliadas e reelaboradas
pelas novas gerações.
Por outro lado, é lícito
perguntar se será justo, em nome da preservação e da defesa da cultura de
determinada comunidade, dos seus hábitos e dos seus valores, impedir o acesso
das pessoas que a constituem aos bens que outras comunidades já adoptaram e
utilizam como seus.
Não poderemos olhar
cândida e nostalgicamente para o passado, recusando o futuro, assim como, em
nome deste, rejeitar o passado como se houvesse uma incompatibilidade absoluta
entre eles.
José António de Matos Esteves das Neves
in Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
José António de Matos Esteves das Neves
nasceu no Porto em 1959 e reside em Vila Real. É Licenciado em Educação Musical ,
Mestre em Instrumentos e Técnicas ao Apoio do Desenvolvimento Rural pela UTAD,
Mestre em Didáctica da Música pela Universidade de Vigo, Doutorando em
Didáctica da Música na Universidade de Trás os Montes e Alto Douro e Formador
para as áreas da Educação Musical, Animação Cultural e Análise de Projectos
Educativos. Frequentou cursos específicos nas Universidades de Navarra e
Complutense de Madrid. Sócio fundador e
membro da Direcção do Grupo Recreativo e Cultural “A Voz do Campo”, onde fundou
a Tuna que dirigiu durante 10 anos. Colaborou com a Orquestra do Norte como
consultor pedagógico exerceu o cargo de Assessor para as áreas da Música e
Dança na Delegação Regional de Cultura do Norte, e Assessor da Câmara Municipal
de Vila Real onde foi responsável pela
criação e elaboração do projecto do Conservatório de Música, objectivo que é
atingido em 2004. É, desde então Director Executivo da Fundação Comendador
Manuel Correia Botelho, e membro da Direcção Pedagógica do Conservatório
Regional de Música de Vila Real. É professor universitário na UTAD e no
Instituto Superior Estudos Intradisciplinares - Mirandela. Possui ainda uma
vastíssima obra editada, quer literária (ensaios etnográficos, de música
popular, etc) quer musical, onde se destaca a composição de várias obras e colaboração
em discos, programas de rádio e televisão. É membro da Sociedade Portuguesa de
Autores.
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