26 de Setembro de 1988. Cheguei à UTAD,
recém-licenciada em
Medicina Veterinária na Escola Superior de Medicina
Veterinária (ESMV - Lisboa). Canudo na mão, o mundo que se abria diante de
mim…eu ávida de começar a trabalhar, mostrar aquilo de que era capaz, agora
Médica Veterinária e após ter passado por um estágio em virologia com o saudoso
Dr. Vigário no Laboratório Nacional de Investigação Veterinária (LNIV). Por lá
aproveitei para conhecer melhor o trabalho dos patologistas veterinários Prof.
Nunes Petisca e Prof. Manuel Lage, cujo trabalho muito me marcou.
Regressada ao Norte, agora para ficar e
encontrar o meu nicho, entrei na jovem UTAD, ainda pequena mas já fervilhando
de actividades, no então Departamento de Higiene e Sanidade. O meu propósito?
Leccionar no recém-criado curso de Medicina Veterinária (que estava no 2º ano)
a disciplina de Histologia. Mas logo fui recrutada para leccionar várias outras
disciplinas afins, como era frequente acontecer nessa altura, estendendo a
minha leccionação também à Engenharia Zootécnica. Foi no entanto na Patologia
Geral, caída nos meus braços em Janeiro de 1989, que me mantive até hoje, e fiz
a maior parte da minha carreira académica.
Numa Universidade jovem e em expansão,
comecei por ter o meu gabinete no recém-inaugurado edifício de Ciências
Agrárias, onde fui ainda encontrar um rudimentar laboratório (o embrião da
estrutura que é hoje) com apenas uma estufa e um micrótomo de Minot, velho e desafinado, mas
manipulado com mestria pela Técnica Lígia Lourenço, que com todo o seu brio e
profissionalismo parecia trabalhar num equipamento topo de gama.
Talvez em função da minha juventude e de
ter estagiado com os Mestres em
Lisboa, as necrópsias foram colocadas a meu cargo. Assim, sempre que
necessário, após a morte de um animal competia-me a mim avaliar a causa do
sucedido. Deste modo, em vésperas de 1990, nascia de forma espontânea, não
oficial e quiçá ingenuamente, o serviço de necrópsias da UTAD. Hoje, por
comparação ao que nos é apresentado nos meios de comunicação, poderíamos
chamar-lhe o serviço de “CSI”, pois o
objectivo deste procedimento médico é o exame do cadáver para determinar a
causa e o modo de morte assim como a presença de ferimentos ou doença nos
animais.
Actualmente o serviço de necrópsias está
integrado na actividade médica de Anatomia Patológica, prestada pelo
Laboratório de Histologia e Anatomia Patológica (LHAP), que iniciou
oficialmente a sua função em Setembro de 1988. Na equipa que integra este
Laboratório, e que tem crescido ao longo do tempo, contamos com a participação
de diversos colegas, uns vindos da casa-mãe, a ESMV (actualmente Faculdade de
Medicina Veterinária), como as Professoras Anabela Alves e Paula Rodrigues, mas
na sua maioria colegas formadas por nós, como as Professoras Fernanda Seixas,
Isabel Pires, Justina Oliveira, Maria de Lurdes Pinto e Adelina Gama. Por aqui
passaram também antigos alunos nossos, que saíram para liderar laboratórios
similares noutras instituições, como é o caso da colega Helena Vala. No grupo,
mais vocacionada para a área de morfo-fisiologia, contamos ainda com a Prof.
Ana Margarida Calado.
Palácio de Mateus - Vila Real |
Esta estrutura integra ainda alguns
técnicos e operacionais. Além da Lígia, que está associada ao LHAP desde a sua
origem, e que com a sua contínua necessidade de perfeição e a procura de
excelência, de aprofundamento constante dos seus conhecimentos a tornam
cobiçada e um elemento primordial no desempenho das funções desta estrutura,
fazem também parte da equipa do laboratório a Dª Ana Plácido e a Dª Glória
Milagre que são indispensáveis ao bom funcionamento do serviço.
Visto mais de perto, poderíamos afirmar
que o Laboratório pelo qual sou responsável é um reino feminino, qual colmeia
enxameando de abelhas que diligentemente vão dando provas da sua capacidade
técnica e científica, indiferentes às diversidades da sua origem, na sua génese
e na sua especialização. Somos agora chamadas com regularidade a intervir na
vida científica nesta área específica do conhecimento, tanto a nível nacional
como internacional, modo pelo qual a qualidade do nosso trabalho nos é
reconhecida. Mas as histórias mais divertidas encontram-se na origem do Serviço
de Anatomia Patológica, enquanto éramos mais jovens e pouco experientes… e em
que muitas vezes nos valeram os conselhos dos nossos Tutores, os Professores Manuel Lage (meu antigo professor na ESMV e
do LNIV de Lisboa) e Manuel Azevedo Ramos (do LNIV do Porto), que por várias
vezes se deslocavam à UTAD para nos orientar no inicio de árdua tarefa de
iniciar um curso de novo. E, claro está, não podemos esquecer o Dr. Pedro
Roquete, anatomopatologista do Hospital de Vila Real. Com o seu ensino,
entremeado da paciência e amizade com que sempre nos distinguiu, foi o Dr.
Pedro que nos ensinou a “arte” do anatomopatologista, o seu rigor que nos levou
a caminhar no sentido do sucesso nesta área. O seu empenho, disponibilidade, abnegação
e sobretudo paciência, ensinaram-nos a crescer. Com estes Conselheiros, nasceu
e cresceu o serviço tal como ele é na actualidade.
Assim, é a nós que cabe responder às
perguntas dos proprietários dos animais ou aos colegas que nos remetem uma
análise: de que morreu o animal? Qual o diagnóstico para esta ferida? Que lesão
é esta na pele do meu cão? Este tumor é muito grave? Que prognóstico posso dar
a este caso? É também este aspecto que mais entusiasma os mais novos, os nosso
alunos, quando vêm ter connosco para fazer de “detective” e perceber a causa da
morte de um animal, ou perceber como chegamos a um diagnóstico
histopatológico... tudo que leva muito mais tempo do que possa parecer num mero
episódio do CSI Miami... Mas, também
é esta actividade que tem episódios agradáveis de recordar.
Dois cabritos nascidos no Alvão
estiveram entre as primeiras necrópsias que me lembro de ter feito. Os
pastores, donos destes animais, contavam com uma grande mortalidade no seu
rebanho e queriam saber o que fazer. Nessa altura, a única instalação de que
dispunha era o pequeno laboratório no edifício de Ciências Agrárias, pelo que
foram levados lá. Quando cheguei para fazer a necrópsia, o laboratório estava
em grande alvoroço, e o saco com os animais, à porta. Pelos vistos, os animais
traziam pulgas que, com o arrefecimento dos corpos após a morte, procuravam
outro ser vivo para se alimentarem... e escolheram uma técnica que andava
sempre muito bem arranjada do laboratório de microbiologia, e que tinha o
cabelo sempre muito bem armado, estilo Marge Simpson...
De outra vez, trouxeram-nos uma galinha
para tentarmos saber o porquê das mortes no grupo… mas esqueceram-se de a
trazer morta! Ainda viva, embora um pouco fraca, cacarejando de um lado para o
outro lá ia passeando no laboratório; não havia voluntários para a matar, mas
sem estar morta não se podia determinar a razão de tantos animais do mesmo
grupo estarem a morrer... eu lembrei-me como a minha mãe fazia este serviço e
da sua mestria, habitual que era na nossa zona ter galinhas e em casa ter de as
matar, depenar e meter no tacho, achando por isso que deveria ser de fácil
execução. No entanto, faltaram-me a faca afiada e o jeito, de forma que a
galinha meio degolada resolveu fugir-me das mãos e transformar um laboratório
de paredes brancas num filme de terror...
Outro episódio caricato, ocorreu numa
das visitas do Prof. Lage e do colega Azevedo Ramos, no início de um Inverno.
Em casa de um agricultor havia uma vaca para necrópsia, cuja morte repentina
tinha levantado suspeitas. Resolvemos fazer esse serviço ainda antes de cair a
noite. No entanto, era Novembro, e às 16 horas não se via grande coisa no
quinteiro onde a vaca fora depositada. Com a ajuda do colega clínico Carlos
Pinto e a companhia dos colegas visitantes senti-me segura do resultado dessa
enorme tarefa, pois teria quem me ajudasse. Como já referi, chegámos ao local
no final da tarde, dispondo apenas de uma mísera lâmpada de umas “25 velas”,
como diziam na aldeia, a alumiar o local em que se encontrava o animal. Já para
não falar do material cortante (vulgares faca e tesouras...) que pareciam o
refugo de outras vidas em que apenas cortariam a manteiga no verão
transmontano. Mas ainda assim cumprimos a nossa tarefa. Vendo o fraco gume, e
como sempre despachada no momento de intervir, tratei de afiar aquelas lâminas,
pondo em prática os ensinamentos do meu pai, lâmina contra lâmina, de cima para
baixo e quase da esquerda para a direita, zup-zup-zup, lá comecei a afiá-las
até que as considerei “no ponto”. Dediquei-me então à tarefa árdua de abrir um
animal com mais de 10 vezes o meu peso e teso que nem carapau devido ao rigor mortis. Nessa altura, reparei que
o Prof. Lage e o colega Azevedo Ramos teciam comentários entre si e para os
presentes, mas no meu esforço de querer despachar trabalho, não me dei conta do
que diziam. Só mais tarde, em Lisboa, num dos primeiros encontros da Sociedade
Portuguesa de Patologia Animal, ouvi o Prof. Lage comentar junto de colegas de
outras instituições, e de modo exuberante, a forma como me “lancei” a uma vaca: “pega em duas facas e com agilidade afia uma
na outra, depois salta para dentro da vaca e em três tempos faz a necrópsia.”
Exagero da sua parte, mas que impressiona quem o ouve! Obrigada professor, pela
sua amizade e orientação!
Com muito esforço e persistência lá
fomos conseguindo pequenas vitórias junto da reitoria para melhorar as nossas
condições de trabalho, permitindo o crescimento do Serviço que prestamos à
comunidade. Finalmente, eis que nos é entregue uma pequena estrutura que
funcionaria ainda durante algum tempo (até à construção do Hospital
Veterinário) como sala de necrópsias. E esta casinha foi palco de mais uma
peripécia. Era Agosto. Na UTAD estávamos em pleno período de férias, pois é
neste mês em que tradicionalmente o corpo docente o pode fazer. Neste mês, a
UTAD esvazia-se de alunos e docentes… parece estar “às moscas”. Nesse ano, só
aqueles que tinham de preparar provas académicas ficaram por lá nalgum tempo.
Tendo-me foi concedida licença para fazer o Mestrado de Imunologia no ICBAS,
Universidade do Porto, e estando eu fora grande parte da semana em período
académico, comprometi-me e estar disponível durante o mês de Agosto,
apresentando-me ao Serviço caso fossem necessários os meus préstimos. Num
desses dias, apareceu um produtor de ovinos que se queixava de lhe estarem a
morrer muitos animais no seu rebanho, alguns sem sintomas, outros a “andar à
roda e a marrar contra a parede”. Como alguns dos animais tinham sido comprados
à Universidade e eram geneticamente valiosos, foi-lhe recomendado que quando
tivesse um animal muito mal, quase a morrer, o trouxesse para se fazer a
necrópsia, mas que o trouxesse no próprio dia da morte ou ainda moribundo, pois
com o calor que estava se estivesse morto desde o dia anterior de nada
serviria, uma vez que a putrefacção mascararia qualquer lesão. Entenda-se que
era esperado que o animal chegasse morto! Um ou dois dias depois avisaram-me
que o dito produtor passara por lá a deixar um dos carneiros reprodutores, que
estava às portas da morte. Marquei a necrópsia para o início da tarde,
aproveitando a ajuda da colega Rita Payan, que também tinha ficado pela UTAD, e
que seria uma boa ajuda de braços, pois sozinha demoraria muito mais a fazer a
necrópsia. Habitualmente, o nosso equipamento para este serviço inclui
galochas, uma bata ou fato de macaco, um avental e luvas, que nos permitem
proteger a roupa que se traga vestida. A Rita nesse dia trazia uma indumentária
fresca e leve, como o dia quente recomendava. Vestia de branco, com uma
casaquinha alinhada às flores a condizer com as sabrinas, do mesmo material.
Teimosa como sempre, decidiu que não iria precisar de vestir mais nada, pois se
o animal já estava morto e eu faria a maior parte do serviço, a sua acção seria
mais de fotógrafa do que ajudante. Chegadas à casinha, olhámos para as mesas e…
nada! Olhando para os cantos da sala, num deles vimos não o moribundo que, na
ausência de cadáver, nos tinha sido prometido, mas um carneiro reprodutor com
um belo par de cornos e com um aspecto bem fresquinho. De imediato fechámos a
porta, e do lado de fora conferenciámos para delinear estratégia (até parecia
que receávamos que o bicho nos ouvisse!). Teríamos de eutanasiar o animal com
os escassos meios que tínhamos disponíveis no momento, para o que contávamos
apenas com um velho escopo que poderia ser utilizado para o insensibilizar. Em
alternativa, poderíamos ficar à espera que o animal morresse pelos seus
próprios meios. Rapariga expedita, a Rita arregaçou as mangas e decidiu que, tendo
alguma experiência, teria mais facilidade em executar a tarefa (tinha
trabalhado um ano no matadouro local), pelo que entrámos de novo. Sem se
preocupar com a indumentária, adepta de que tudo se pode lavar, ou não vale a
pena comprar, lá avançámos nós a encostar o animal a um canto da sala.
Sentindo-se encurralado, o carneiro faz das tripas coração e resolve investir
contra nós! Rico moribundo que nos tinham deixado! Enfim, depois de uma pega de
caras, com algum esforço e suor (o animal ainda conseguia empurrar-nos às duas
de um lado para outro, com a nossa falta de prática e de força em conter um
animal desta espécie), a Rita lá conseguiu fazer a insensibilização sem grande
sofrimento para o animal e a necrópsia foi feita, mas nunca mais aquelas
sabrinas voltaram a combinar fosse com que farpela fosse… De referir que era um
parasita alojado no cérebro a causa de todo o problema nesse rebanho.
Assim, vos mostro um pouco deste grupo,
o “CSI UTAD”. Com o tempo fomos
crescendo em saber e prática. Com condições de trabalho melhores, as situações
caricatas vão-se reduzindo. Estas histórias que aqui vos deixo vão sendo
recordadas em reuniões ou serões, às vezes com alguma incredulidade, como quem
diz… seria mesmo possível termos trabalhado naquelas condições? Na razão
inversa, a nossa implantação nesta área aumenta. No entanto, não conseguimos
ter a projecção do nosso homónimo de Los Angeles ou Miami, nem conseguimos
determinar com toda a certeza a causa de morte de todos os casos que nos
surgem, pois nem sempre isso está ao nosso alcance, mas somos reais, da UTAD,
transmontanas e Portuguesas, com MUITO ORGULHO!!!
Agradecimentos:
Gostaria de expressar um sincero
agradecimento à colega Rita Payan, ao meu marido Carlos Matos e a todo o grupo
do LHAP.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico
de Ciência e Cultura (2011)
Maria dos Anjos Pires é Agregada (2006) e Doutorada (1998) em Ciências Veterinárias pela UTAD,
Mestre em Imunologia pelo ICBAS (1993) e licenciada em Medicina Veterinária
pela Fescola Superior de Medicina Veterinária (1988) de Lisboa. Docente da UTAD
da área de Histopatologia (Patologia Geral, Imunologia e Teratologia) desde de
1988. Responsável pelo Laboratório de Histologia e Anatomia Patológica desde
1998, é actualmente membro do Concelho Cientifico da Escola de Ciências
Agrárias e Veterinária. Como investigadora participa em vários projectos
científicos da área de imunopatologia e oncobiologia animal. Organizou e
pertenceu a comissões científicas de várias reuniões científicas nacionais e
internacionais. Participou em mais de 60 reuniões e congressos nacionais e
internacionais onde apresentou mais de 140 comunicações e posteres, mediou
sessões e participou em mesas redondas, na área da Medicina Veterinária,
Anatomia Patológica, Patologia Experimental e Imunologia Tem mais de 50
publicações nacionais e estrangeiras, um livro (“Atlas
de Patologia Veterinária - Biopatologia”. 212 p. ISBN: 972-757-281-2 Editora
Lidel, 2004) e participou em capítulos
de mais dois livros internacionais. É actualmente presidente da Sociedade
Portuguesa de Patologia Animal.
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