No passado dia quatro deste mês, na livraria Bertrand, ao Chiado, foi apresentado O Romance do Gramático, de autoria do Professor de Literatura, Ernesto Rodrigues, da Universidade de Lisboa. Do romance tratou o Dr. José Manuel Mendes, cujo texto não podemos reproduzir porque foi uma elocução de memória. Ernesto Rodrigues, seguindo o mesmo processo, não deixou contudo, de a alinhavar em texto magnífico que abaixo se reproduz. Ernesto Rodrigues é um Grande Professor de Literatura. E trás à colação a memorável obra latina de Apuleio: O Asno de Ouro[1].
José Manuel Mendes, Ernesto Rodrigues, Directora da Gradiva |
Tanto O Burro de Ouro, como o Satyricon de Petrónio são, no entender da grande maioria dos estudiosos, as duas únicas obras latinas existentes que se podem aproximar daquilo a que modernamente se convencionou chamar romance. E se Ernesto Rodrigues trata inicialmente do romance grego, citando a Apologia de Sócrates e o Fédon (como exemplifica com Bakhtine), o próprio Apuleio deixa claro, no prólogo da sua obra, que o seu relato constitui a recriação de uma história grega (1.6: fabulam Graecanicam incipimus).
Quanto à identificação da obra de Apuleio, os editores e tradutores costumam intitulá-la de O Burro de Ouro, ou Metamorfoses. Contudo, Santo Agostinho, responsável pelo mais antigo testemunho sobre Apuleio, na Cidade de Deus (18.18), intitula-a de O Burro de Ouro [Asinus aureus ][2]. Embora Asinus signifique literalmente asno.
Armando Palavras
O Romance do Gramático, um romance total
Quando entramos na casa do romance grego, é curioso observar a importância que tiveram os diálogos socráticos na constituição do romance biográfico, a terceira espécie de romance antigo, segundo Bakhtine, em Estética e Teoria do Romance. Ele divide o romance biográfico em “dois tipos principais de autobiografia”: o de tipo platónico – caso da Apologia de Sócrates e do Fédon - , em que acompanhamos a existência de quem, ignorante mas confinado, céptico e autocrítico, se aproxima de si mesmo, só então atingindo o verdadeiro conhecimento: há crise e regeneração, assistimos a uma “metamorfose”; e, segundo tipo, aquele que assenta no enkomion, não nos ocorrendo, hoje, que esse encómio era elogio fúnebre de um cidadão. Aí está uma singular forma biográfica, a narrativa de uma vida, por si mesmo e interpostas figuras, até ao leitor. O Romance do Gramático é autobiografia de um ser em crise, duvidoso, parcialmente encomiástica, porque editorialmente curada após a sua morte.
A metamorfose já é elemento processual no romance de costumes, a segunda modalidade de romance grego, para Bakhtine, que se demora com O Asno de Ouro, de Apuleio: as peregrinações do herói Lucius, transformado em burro, visam uma identidade. Da culpa à redenção, é a história de um destino. Também aqui, Fernão de Oliveira e o velho dominicano que o segue vão da culpa à redenção.
Esta modalidade alarga, por já conter uma série de provas a vencer, o mais conhecido romance de aventuras, estudado em primeiro lugar pelo ensaísta russo.
Ora, aventuras (primeira modalidade), costumes (segunda) e biografia (terceira, entre autobiografia e encómio post- mortem) estão conjugados n’O Romance do Gramático, qual tábua de saberes, de discursos, autores e problemas do século XVI português e europeu.
[1] Misto de erotismo, de magia e de experiência iniciática, é uma das obras clássicas mais justamente famosas e faz de Apuleio o último grande autor da Antiguidade pagã.
[2] Assim acontece com a versão portuguesa das edições Cotovia (2007), tradução de Delfim Leão.
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