Normalmente quando se aborda o tema da Alquimia, os nomes que surgem como fundadores são: Hermes Trimegisto, Zoroastro, Pitágoras, o Rei Salomão, Ptolomeu, Hipócrates, o (Pseudo-) Demócrito, Zózimo (considerado o primeiro alquimista filósofo) e até mesmo Aristóteles. Mas é depois aos alquimistas medievais como Paracelso, Ireneu Filaleto, Nicolau Flamel ou Basílio Valentim, apenas para citarmos alguns, que se vão beber as fontes dessa ciência oculta[1].
Existem inúmeros tratados de alquimia distribuídos pelas mais variadas bibliotecas. Na de Paris existe um manuscrito in-fólio com trezentas e tal páginas, com diversos desses tratados. E inúmeras obras, hoje impossíveis de consultar, como por exemplo o “Mutus Liber”[2].
Na verdade, os primeiros alquimistas não ficcionais do mundo ocidental vieram, até onde se pode afirmar com certeza, do Egipto do período helenístico[3]. A personagem mais antiga deles foi Maria, a Hebraea. Maria, a Hebreia, ou Maria, a Judia. Sobre a qual a nossa principal fonte é Zózimo, o panapolitano. Zózimo é o primeiro alquimista grego cujos escritos autênticos chegaram até nós. Viveu no Egipto helenístico, por volta de 300 d.C. e escreveu um número impressionante de obras. Vinte e duas foram publicadas por Marcellin Berthelot.
Zózimo também escreveu com sua irmã Eusébia, uma enciclopédia química em vinte e oito livros, da qual apenas restaram fragmentos, também publicados por Marcellin Berthelot[4].
Lippmann atribui a identificação de Maria com Miriam, a irmã de Moisés, a Zózimo (Entstehmg, p.46). Mas não fornece as fontes. E os tratados de Zózimo traduzidos por Marcellin Berthelot, não lhe fazem referência (ao que parece).
A fama de Maria fez com que Epifânio (315-402), um Padre da Igreja, no seu tratado Contra as Heresias[5], tivesse afirmado que a Judia havia tido uma visão de Cristo. Epifânio descreve essa visão referindo-se a duas obras da alquimista: Grandes Perguntas e Pequenas Perguntas.
Jung[6], presume que essa descrição da visão se refere a Maria. O que não deixaria de ser curioso. Esta seria assim, a primeira referência a um judeu (neste caso a uma judia) que acreditava em Jesus. Todavia, esta suposição parece pertencer mais ao campo das lendas cristãs dos tempos primevos. Contudo, em manuscritos medievais é descrita como tendo carregado o Menino Jesus aos ombros[7].
Zózimo atribui ao (Pseudo-) Demócrito uma referência a Maria, esquecendo-se que esta viveu cerca de cem anos depois.
As lendas de Maria tenderam a deslocar-se para a Antiguidade tardia. Em determinadas fontes árabes (c.987) é denominada “a matrona Maria Sícula”; “Maria, a Copta”, ou “a sábia” em manuscritos árabes medievais. Diz-se ainda que foi contemporânea e estudou com Ostanes, grande mago persa. Situação impossível porque este foi cunhado de Xerxes (519? - 465 a. C.).
George Syncellus (séc. IX) comenta na sua Chronographia que Ostanes teria ensinado filósofos egípcios, entre eles Maria, a Hebrea e Arnaldo de Villanova (1235-1315) chama-lhe “filha de Plutão” (Raphael Patai, p.144).
Noutras lendas recua 16 séculos porque a denominam irmã de Moisés e Aarão.
O mais famoso instrumento de alquimia inventado por Maria é o balneum Mariae (banho-maria). Recipiente duplo cuja parte externa é preenchia com água enquanto a parte interna é aquecida em fogo brando[8].
Concluindo, Zózimo, sem dúvida a maior autoridade entre os alquimistas do período helenístico, e que se dizia seu discípulo, considerava Maria como a maior autoridade entre todos os alquimistas que o precederam e cujos ensinamentos e práticas ele apresenta em seus inúmeros tratados. Contudo, Maria pode ter vivido duas gerações antes de Zózimo. Inícios do séc. III d.C.
A imagem que se reproduz (impressa numerosas vezes) representa Maria, a Judia, numa cópia da reprodução extraída de Michael Maier[9]. E nela consta a seguinte inscrição: “A fumaça é completada pela fumaça e a erva branca que cresce nas montanhas pequenas captura as duas”.
Maria, a Judia. Cópia da reprodução extraída de Michael Maier, Symbola aureae duodecim nationum (Frankfurt-am-Main, 1617) |
A gravura mostra Maria como uma mulher imponente em primeiro plano, à esquerda, vestida com trajes amplos, com pregueado muito vincado. Enverga túnica comprida, caindo junto aos pés destapados em fole harmónico, e uma capa igualmente comprida, cruzada à frente, presa por um firmal sob o pescoço, com ponta apanhada sobre o antebraço direito. Apresenta a cabeça a ¾, coberta totalmente com um capuz; um mantelete cobre-lhe o pescoço. Com a mão esquerda espalmada para cima aponta para uma montanha pequena, à direita, na qual cresce uma erva branca que exibe cinco ramificações, cada uma coroada por uma flor. No sopé da montanha encontra-se uma urna da qual saem duas colunas de fumaça que sobem e se separam, circundando a erva branca, formando uma guirlanda, e se unem com outras duas colunas de vapor que descem de uma urna invertida (a imagem reversa da outra no sopé) que atinge a rebarba da superfície cromática, e parece estar suspensa no céu. Uma cordilheira define a linha do horizonte nos longes.
Armando Palavras
[1] A tal propósito, cf. CALADO, Jorge, Haja luz! – A História da Química Através de Tudo, Gradiva.
[2] A tal propósito, cf. BECHTEL, Guy, Os Grandes Livros Misteriosos, Ed. 70, Lisboa, 2000.
[3] George Steiner ao abordar a obra grandiosa de Joseph Needham, a colecção Modern Masters, aborda a questão da alquimia na Antiguidade chinesa, mencionando, por exemplo, a alquimista e poetisa errante Li Shao-Yün. E também aborda, ao de leve, Maria, a judia (Os Livros que não escrevi, Gradiva, 2008, pp. 44-45)
[4] PATAI, Raphael, Os Alquimistas Judeus, Perspectiva, S. Paulo, 2009, p. 117.
[5] Patrologia, cursos completos. Series graeca, Paris, 1858.
[6] Psychology and Alchemy, p. 160.
[7] PATAI, Raphael, idem, p.143.
[8] ALIC, Margaret, Women and technology in ancient Alexandria: Maria and Hypatia, Women’s Studies International Quarterly 4: 305-312, 1981.
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