sábado, 29 de janeiro de 2011

Aspectos de Ontem – O milagre de Moisés

                    
Quando em 1947 um jovem beduíno da Palestina descobriu, na primeira das grutas, na costa oeste do Mar Morto, cerca de oito milhas a sul de Jericó, num complexo conhecido como Khirbet Qumran, manuscritos antigos de quase dois milénios, a especulação sobre a veracidade das Escrituras Sagradas foi enorme[1]. As publicações sobre o assunto foram inúmeras, e em 1957 o sábio alemão, Ch. Burchard[2], consagrou um livro à enumeração dessas publicações. Eram aí focados 1538 títulos! Mais de 60 anos após essa descoberta, com os maiores sábios do mundo dedicando-lhe tempo, nada do que aí é narrado põe em causa os Textos Sagrados!
Descobertas arqueológicas recentes (2002) provam o Dilúvio (existem narrativas como a de Gilgamesh – Suméria), nas placas de Ebla encontradas na Síria, vem inscrito o nome de Abraão[3], e a existência histórica de Salomão e de David já não oferecem dúvidas.
Há cerca de um mês, para espanto do Mundo, cientistas da Universidade do Colorado (EUA) não se inibiram ao informar que a Ciência prova milagre de Moisés[4]. Que o Diário de Noticias publicou a 23 de Setembro.
Em que consistiu o milagre de Moisés? Segundo a Tradição que nos foi transmitida, sobretudo, via sacerdotal, o povo hebreu (depois do faraó do Egipto ter permitido a sua partida), viu-se encurralado nas cercanias do Mar Vermelho pelo exército egípcio, comandado pelo próprio faraó. Moisés, que guiava os Israelitas, ergueu as mãos na direcção do mar e durante toda a noite Deus separou as águas com um forte vento de leste. Permitindo assim a fuga dos hebreus. Quando de manhã o exército egípcio os tentou seguir foi engolido pelas águas.
As experiências científicas aludidas acima, através de simulações de computador e das mais modernas técnicas, concluíram que um fenómeno natural pode realmente ter permitido este “milagre”. Segundo o investigador do Centro Nacional para a pesquisa Atmosférica, o norte-americano Carl Drews, o que este estudo (publicado online no jornal cientifico PloSONE) mostra é que “a descrição da separação das águas tem por base leis científicas”. Mas o estudo também demonstra que não poderia ter ocorrido no Mar Vermelho, mas sim numa área do delta do Nilo, há cerca de 3.000 anos. Onde, aparentemente, um ramo do rio inundava o antigo lago de Tanis.
Nesse local, um vento de leste soprando à velocidade de cerca de 100Km hora, durante oito horas, teria permitido afastar as águas (com 1,8 m de profundidade). E assim, uma faixa de terra lamacenta com entre 3,2 e 4 km de comprimento e 4,8 km de largura teria ficado a descoberto durante 4 horas, com duas paredes de água de ambos os lados. Assim que o vento parasse, essa faixa de terreno teria ficado, de novo, alagada.
Esta simulação corresponde rigorosamente ao relato bíblico. E este fenómeno já foi documentado várias vezes. No lago Erie, perto de Toledo, no Ohio. E no delta do Nilo, no século XIX, quando as águas recuaram cerca de 1500 metros.
Numa simulação anterior, cientistas russos teriam previsto o fenómeno com ventos de nordeste a cerca de 120 km hora, no Mar Vermelho, perto do actual Canal do Suez. Mas sobre a qual Drews se interroga, porque não seria possível os refugiados caminharem com ventos tão fortes.
“Contra factos não há argumentos”, costuma dizer o povo. Se o “milagre” existiu, mas num desses lagos limítrofes ao Mar Vermelho, que razões levariam a tradição sacerdotal, a referir-se ao próprio Mar vermelho?
Vamos por partes, seguindo as fontes, e apenas estas. O relato bíblico (seguimos a Bíblia de Jerusalém) em Êxodo, nunca refere o Mar Vermelho, mas sim mar dos Juncos (Ex. XIII, 18 e XV, 22). Contudo, segundo parece, a designação “o mar dos Juncos”, em hebraico Yam sûf, é acréscimo. O texto primitivo apenas dava uma indicação geral: os israelitas tomaram o caminho do deserto para o leste ou o sudeste. O sentido desta designação e a localização do dito “mar de Suf” são incertos. “Mar dos Juncos” não é referido na narrativa em Ex. XIV, que apenas fala de “mar”. O único texto que menciona o “mar de Suf”, ou “mar dos Juncos” (segundo o egípcio) como cenário do milagre é Ex. XV, 4, que é poético (seguimos a nota a) da Bíblia de Jerusalém, p. 121). Contudo, a referência ao “mar dos Juncos” é ainda atendível no Salmo 106 (7 e 9).
Se a referência ao Mar Vermelho, como local onde teria ocorrido o milagre, não existe na narrativa bíblica, onde então surge essa tradição? Da Vulgata (seguimos o texto de Colunga-Turrado, 2005). Texto redigido por São Jerónimo. Em subtítulo de XIII afirma: “Iter usque ad mare Rubrum”. Para à frente acrescentar: “…quase est iuxta mare Rubrum…”( Ex, XIII, 18). Em subtítulo de XIV acrescenta: “Transitus maris Rubri”. E mais à frente diz: “Tulit autem Moyses Israel de mari Rubro…” (Ex. XV, 22).
Da Vulgata esta tradição passou para outros textos (medievais) que a difundiram por todo o mundo cristão. No Sepeculum eclesiae lê-se: Mare Rubrum est Baptismus (…). Porque os teólogos medievais atribuíram ao milagre um duplo significado. Na iconografia baptismal, este milagre significa, ao mesmo tempo, a salvação dos fiéis que se purificam pelo baptismo no sangue vermelho de Cristo e na condenação dos seus perseguidores (Franz Jos, 1930).
Mas então seria São Jerónimo um doidivanas, um louco e aldrabão? Claro que não. O Santo era um sábio. E sendo-o era um homem culto. Conhecia as várias tradições e os textos hebraicos.
A Tora (seguimos o texto da Sporpress, 2003- tradução de Luís Filipe Sarmento), ou Torah, Lei escrita do povo judeu, diz: “Deus dirigiu o povo para o caminho do Deserto, em direcção ao Mar Vermelho” (Ex. XIII, 18 – secção Beshalaj). É a única referência ao Mar Vermelho. Em toda a restante narrativa (XIV) apenas se designa “mar”.
Concluindo: foi à Tora que São Jerónimo foi buscar a designação de Mar Vermelho, transmitindo-a depois, através da Vulgata, para todos os textos do mundo cristão.
Convém, no entanto, esclarecer um ponto. “Em direcção ao Mar Vermelho”, não quer dizer que o acontecimento tenha ocorrido no Mar Vermelho. Quer apenas dizer que ocorreu em determinado ponto geográfico que ficava na direcção do mar Vermelho.
Cabe agora aos arqueólogos, com estas provas, procurarem a prova derradeira. A arqueológica.

In: Negócios de Valpaços, nº 371, 15 de Outubro de 2010   

                                                           Armando Palavras












[1] Sobre estes manuscritos, cf. Geza Vermes, Manuscritos do Mar Morto, Esquilo, 2006; E. Laperrousaz, Manuscritos do Mar Morto, Rés Editora, 2ª ed. s.d.
[2] Bibliographie zu den Handeschriftenvom Toten Meer, Berlim, 1957.
[3] Não implica que seja o Patriarca dos Hebreus, mas indicam-nos que esse nome se utilizava entre 2600 e 2300 a.C.
[4] Já antes, no século passado, os historiadores se interrogavam sobre este milagre porque não havia documentação egípcia que o provasse. Os filólogos e geógrafos do século XX entendiam que o Texto Sagrado teria sido mal interpretado. O relato não se referia ao Mar Vermelho, mas sim ao mar dos juncos, designação que se aplicaria muito melhor a um dos lagos próximos. Como o de Bardawil, cujas águas mortas estancam ao largo da orla mediterrânica, entre Porto Said y El Arisch (Major Jarvis, L’exode dês Israélites à travers le Sinai, Revue de Paris, 1938). E muitos outros pensavam, nesta época, que era possível ter acontecido através de um fenómeno natural. Louis Réau (Iconografia da Arte Cristã) assim o diz.


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