Alberto Gonçalves - OBSERVADOR
Embora nunca tivesse havido escassez de
malucos, a diferença é que dantes não eram regularmente chamados a dissertar
nas televisões.
27 dez. 2025
Uma professora
do ISCTE foi à SIC Notícias afirmar, sem contraditório, que Jesus de Nazaré era
“palestino”. Com certeza a senhora não fundamentou a sua opinião no vazio, e
sim em “memes” da internet, vídeos especializados no YouTube,
uma primeira página do JN e a opinião do sr. Maduro da
Venezuela, os quais garantem que Jesus não só era “palestino” como refugiado,
resistente, guerrilheiro e quiçá um crítico feroz do “sionismo” e de Netanyahu.
Se fosse vivo (e na perspectiva dos crentes, é), votava no BE (será dos
poucos).
Claro
que, em contrapartida, também há toda uma tradição histórica e historiográfica
a tentar desesperadamente provar que Jesus era judeu. Nasceu judeu, filho de
judeus e descendente directo de Abraão e David, cresceu na Judeia, observava os
ritos judaicos, mostrava-se um produto “típico” ainda que particularmente
exigente do “judaísmo do Segundo Templo” e merecia o cognome de rabbi,
“mestre”. Segundo esta corrente de pensamento, ridiculamente alicerçada em
factos e documentos e fontes primárias, Jesus não podia ser “palestino” na
medida em que a Palestina não existia no seu tempo de vida, e não existiu até
135 d.C., quando o imperador Adriano quis apagar a identidade judaica da região
dando-lhe a designação pejorativa que os judeus reservavam para a região dos
filisteus, que por acaso nem eram árabes. Palestina deriva de Filisteia, ou Peleshet em
hebraico bíblico (ou Palaistinē em grego), que, dizem os
estudiosos e meia dúzia de livrinhos na minha estante, significa “a terra dos
invasores”.
Perante o
dilema, compete a cada um decidir se prefere acreditar nos estudiosos, nos
livros e em dois milénios de conhecimento consensual ou, por outro lado, numa
professora do ISCTE que discorre, pelos vistos habitualmente, na Sic Notícias.
Por mim, não hesito em optar pela senhora. Admito que os “memes” na
internet e um boneco produzido por inteligência artificial em que Jesus aparece
com um cachecol igual ao da dra. Mortágua influenciaram-me a escolha.
(Eu
gostava de manter este tom pela crónica afora, mas os custos da ironia estão
pela hora da morte, donde receio ser mal interpretado e alimentar a crença de
que acredito de facto nos delírios da tal professora. Assim, e em benefício da
clareza, a crónica abandona aqui as pretensões sarcásticas.)
Agora a
sério: está tudo doido? A resposta ponderada e reflectida é: aparentemente,
sim. Embora nunca tivesse havido escassez de malucos, a diferença é que dantes
não eram regularmente chamados a dissertar nas televisões – e a diferença maior
é que hoje são chamados às televisões precisamente porque são malucos. Salvo as
excepções da praxe, estimo que cerca de 87,5% dos “comentadores” televisivos
possuem uma avaria qualquer. E ao que parece é a própria avaria que lhes
assegura os convites e as avenças, o que também diz alguma coisa acerca de quem
os convida e paga. Não se trata da proverbial situação em que os chalupas tomam
conta do manicómio: aqui, os chalupas fugiram do manicómio e, em vez de serem
perseguidos por enfermeiros munidos de ketamina, foram chamados a integrar
“painéis” de comentário em estações de TV. Os desafios da inclusão movem-se por
estradas sinuosas.
Reconheça-se
que a doença mental tem um espectro largo. Na terminologia clínica, há idiotas,
alucinados, pírulas, alienados, tantãs, chalados e boçais profundos. Para as
televisões, as distinções são de somenos: o importante é que a toleima empurre
os comentadores, sofram do que sofrerem, a dizer em público as maiores
barbaridades sem que a vergonha os detenha. Jesus era palestino. Israel comete
genocídio. A burca é uma tradição respeitável. Biden está em
plena forma. Putin vai conquistar Kiev em dez minutos. A Europa está unida. A
imigração descontrolada traz segurança. Trump é pior que Hitler. Milei é
fascista. Marcelo é um estadista. Guterres é um senhor. Portugal é um paraíso.
Portugal é um inferno.
Qual o
objectivo de tamanho desconchavo? Em princípio, ganhar ou manter audiências. E
se eu aceito o princípio, duvido que o processo seja linear, isto é, que as
audiências contemplem semelhantes misérias por concordar com as misérias.
Haverá casos em que isso acontece, em que os malucos em casa vêem os malucos no
ecrã e genuinamente acham que estes têm razão. Porém, quero ser optimista e
supor que a maioria olha para aquilo com a curiosidade mórbida com que se
abranda para espreitar um acidente. Ou melhor: com a perversão que há cem anos
se dedicava aos “freak shows”, em se exibiam aberrações da natureza
para emprestar aos espectadores um sentimento de superioridade e um simulacro
de conforto. O apelo do grotesco é a única justificação plausível para aturar a
professora citada e os seus pares.
Mas que
isto não é normal, não é. Como Jesus não era palestino. E nem os “palestinos”
são palestinos.


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