domingo, 5 de outubro de 2025

Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de ciência e cultura (colectânea de autores oriundos de Trás-os-Montes)

Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de ciência e cultura (colectânea de autores oriundos de Trás-os-Montes), coord. Armando Palavras, Lagoaça: Exoterra, 2011.

 

CARLOS d'ABREU


Colaborar na divulgação de uma colectânea de  textos  de  autores  de  Trás-os-Montes  e  Alto  Douro  –território  geográfico  e  cultural  que  continua  a  ter  para  nós  uma  forte  carga  simbólica,  mal-grado  a  «manta  de  retalhos»  administrativos  a  que  hoje  nos  sujeitam–,  constitui  um  dever  para qualquer transmontano-duriense, mesmo que nela (colectânea) não tenha directamente par-ticipado.  E  tanto  mais  que  esta  é  uma  obra  sui  generis!  Por  diversas  razões.  Em  primeiro  lugar,  porque foi idealizada e concebida numa aldeia (aparentemente) igual a tantas outras e nas quais não estamos acostumados a assistir a acontecimentos culturais, muito menos a realizações deste vulto. A aldeia em causa leva o nome de Lagoaça e remonta aos primórdios da Nacionalidade, a quem el-rei Dinis reconheceu importância estratégica no seu esforço de consolidação do Reino, atribuindo esse seu vilar em terra de Miranda, a 14 povoadores, através de carta de foro emitida a 26 de Abril de 1286. E esta obra nasce precisamente para comemorar os 725 anos dessa efeméride. Vemos assim, que falamos de uma freguesia com pergaminhos. Pertenceu pois à Terra de Miranda, autonomizou-se, com os «forais novos» foi incluída no Concelho de Bemposta, depois no de Mogadouro e agora encontra-se vinculada aos freixenistas. Talvez esta dificuldade em a «encaixar» administrativamente revele as suas peculiaridades.Mas esta publicação, que certamente se deverá ao esforço de muitos, nasceu da vontade do empresário António Neto ao ser nomeado mordomo / presidente da Festa da Senhora das Graças, coadjuvado pelos também lagoaceiros Armando Palavras (que coordenou) e Carlos Novais que, na qualidade de presidente da Junta de Freguesia, apoiou. Está aqui um exemplo de que, quando o Homem quer, a Obra nasce!Em segundo lugar, porque ela reúne um notável conjunto de textos de mais de 70 autores. Creio  que  são  71,  considerando  que  detectei  dois  deles  a  intervir  com  pseudónimo,  mas  que  merecem a distinção, se tivermos em conta que um é o referido coordenador e o outro, o pertuésAmadeu Ferreira desdobrado no mirandês-poeta Fracisco Niebro. Pela primeira vez –que eu tenha conhecimento, porque isto de ter certezas esvai-se com a idade–, se produziu tal «mosaico» em Trás-os-Montes e Alto Douro.«Mosaico  de  Ciência  e  Cultura»,  como  o  seu  subtítulo  indica,  é  o  conjunto  resultante  da  combinação de pequenas pedras de coloração variada, com os interstícios preenchidos por uma massa que as liga entre si. Isto numa definição arqueológica. Chamando-lhe antes a Bibliotecono-mia, miscelânea, antologia, selecta ou colectânea. É pois um livro composto por um conjunto de textos, de diversos autores, em prosa e também em verso, com vários documentos iconográficos de permeio. Esta diversidade faz dele uma obra de referência, que pode ser lida segundo o gosto e interesse de cada um, bastando para tal socorrer-se o leitor da organização que o coordenador lhe imprimiu e expressou nas pp. 391 e seg.A  elaboração  de  uma  recensão  crítica  (coerente)  duma  obra  deste  tipo  representa  um  certo  esforço, considerando sobretudo a quantidade de textos nela insertos. Assim, na impossibilidade de todos poder comentar, aproveitarei a organização temática que o seu coordenador lhe conferiu e referirei o nome de (quási) todos os autores e respectivo título do texto com que colaboraram, fazendo aqui e ali, algumas –necessariamente breves–, observações.Afoitemo-nos então numa viagem pelo interior destas 4 centenas de páginas, imaginando-a em barca pelo nosso Doiro abaixo, num rio de águas arrebatadas, como as do passado, quando ainda podiam ter pressa de chegarem ao mar e aí cumprirem o seu destino. A embarcação correrá veloz e não permitirá dar conta de todas as miradas, como acima se disse.Vamos então ao primeiro item, designado «País e o Mundo», que tem precisamente como primeiro texto «Voltar à terra e ao mar», de autoria do professor Adriano Moreira. Reflecte o seu autor sobre a actual conjuntura política, económica e social que agrava a sangria de gentes desta região, que nunca cessou. E cito: «Talvez uma das maiores ameaças para o crescimento susten-tado de um país seja ter o técnico, necessitar do técnico, mas não ter emprego para o técnico». Vaticinando que (e volto a citar) «vão ser longos os anos de sacrifícios a exigir à população que decidiu ficar, ou não pôde partir, tendo sido esquecido um velho conceito de governos pruden-tes e atentos, que era o de promover e defender um conceito estratégico de reserva alimentar (...) Trás-os-Montes, que sempre pertenceu ao Reino, é uma reserva essencial», recorda-nos o intelectual.De seguida, o artigo de Loureiro dos Santos sobre «A guerra na era da informação», não fosse ele general. No item «Análise/reflexão», a prosa de outro nome grande do nosso Distrito, aliás o seu maior bibliógrafo, legítimo continuador do nosso Abade de Baçal. Refiro-me naturalmente ao professor Hirondino da Paixão Fernandes. «E não é que a luz se fez!...». É este o título. Onde numa  linguagem  precisa,  quási  poética,  com  alguns  saborosos  regionalismos  da  sua  Vila  Arçâ  –afinal  comuns  a  várias  outras  «pedrinhas»  deste  «mosaico»  distrital–,  nos  recorda  o  seu  amigo  e condiscípulo Fernando Subtil, através de uma carta que dele possui, introduzindo assim nesta colectânea mais um dos nossos, que de outro modo teria ficado de fora, por já não poder respon-der à chamada de Armando Palavras. Através dessa carta ficamos a saber um pouco mais da sua personalidade. Era um (e cito), «sonhador irrequieto, combativo, frontal».Luís Dias de Carvalho, analisa a actualidade d’«A usura». Na pág. 27, o artigo «Transmon-tanismos», um dos 5 textos que não chegaram inéditos à colectânea, mas com os quais a obra sai valorizada,  segundo  o  seu  coordenador  e  com  o  qual  concordamos  plenamente,  até  porque  foi  publicado numa revista francesa. Pertence ao professor Telmo Verdelho. «Transmontanismos» é uma verdadeira «teoria da transmontaneidade». Neste texto cabemos todos, porque todos nele es-tamos retratados. Inicia a sua reflexão afirmando que é (e cito) «Nativo de Trás-os-Montes, aman-te e sempre saudoso da terra, muitas vezes me questiono sobre a razão de ser e de parecer desta condição de origem, arrastada como uma espécie de sandice, pelos transmontanos que vagueiam pelo mundo». E mais adiante, acrescenta que «a memória do lugar, preenchida pelos rostos, pelas coisas, pelos usos e costumes, é como uma configuração mental instituidora, uma referência ou marca de pertença que se repercute para sempre no horizonte do quotidiano de toda a gente». A leitura telúrica de apenas 5 páginas e meia, é a síntese mais lúcida de análise geográfica regional que conheço!Em «Personalidades Transmontanas», Abílio Gomes evoca «Barahona Fernandes – de Vinhais para o Mundo». Inocêncio Pereira, os «Missionários, navegadores, poetas, militares e historiado-res» freixenistas.Nas «Viagens», o escritor António Modesto Navarro, que foi o primeiro apresentador deste livro  –fazendo-o  com  mestria  na  ágora  de  Lagoaça–,  sob  a  epígrafe  de  «A  nossa  Liberdade  foi  uma Biblioteca», recorda como o seu amor pelas letras nasceu com as quadras de um poema que um operário improvisou e lançou a um grupo de rapazes e raparigas sentados numa rua da sua Vila Flor de menino. Bento da Cruz descreve uma ida a Freixo de Espada à Cinta, intitulando-a «Viagem ao Nordeste Transmontano». E viajando «Entre efémero e eterno. Romagem ao cristal da manhã», ao encontro da sua Vilafrol, João de Sá, filósofo que recentemente deixou o grupo dos vivos, aquele que me habituou durante anos a procurar na caixa do correio o quinzenário Terra Quente, para com a sua crónica de página inteira, me deleitar no serão. «Viajar na minha terra é algo mais do que a descoberta de mim próprio, esse caudal tumultuoso de pensamentos, volições e sentimentos enfeixados, por vezes em conflito, sem a bênção de uma foz que os apazigúe. Daí que tenha prescindido de traçados e projectos. É uma viagem sem arquitectura, comandada pelas subtilezas do espírito, pelo que nele há de imprevisível (...)».«Por Esse Douro Acima», com textos de António Barreto e Ilda Pinto Ribeiro, o sociólogo sintetiza a natureza feita pelo homem e a poetisa refere os 250 anos da criação da Região Demar-cada do Douro.Na secção reservada à «Poesia», Ernesto Rodrigues apresenta-se com «Três Poemas», enquanto que Fernando Castro Branco nos leva à Serra de Montesinho a partir d’»O parto das pedras».

Ilda Pinto Ribeiro volta ao rio com o «Canto do Douro», o jornalista Rogério Rodrigues que se revela como poeta no pseudónimo de Pedro Castelhano, e Sílvio Teixeira com o poema-postal «Páscoa».Nas «Narrativas», a colaboração do Historiador António Borges Coelho com «O homem do chapéu amarelo». António Passos Coelho fala-nos de Francisco do Carmo, um «azarado miúdo entregue à lei da natureza» que começou por ter a nomeada de «Filho da desgraça» por ser filho de «pai natural» e depois crismado de »O pai do trabalho», porque a orfandade o obrigava a oferecer os seus braços aos vizinhos que o alimentavam e remendavam. Afinal a história de tantos infelizes em tempo de miséria.Bernardino Henriques oferece-nos dois bonitos textos: «Abraço meio fraterno» e «Tejo», nome de rio e de cão. De facto os nossos antigos tinham o hábito de chamar os canídeos por nomes de rios. Para os proteger da raiva, já que esta doença os faz repelir a água, diziam.Fernando Castro Branco regressa nesta modalidade com, «A ausência do estalajadeiro». Fer-nando Chiote Tavares e a «Fotografia», afinal uma história de amor e desamor. J. Rentes de Car-valho,  o  autor  de  «Ernestina»,  transmontano  repartido  entre  os  Estevais  (de  Mogadouro)  e  a  Holanda, a emprestar a sua prosa de profissional a esta colectânea, com a história de um homem simples que sofria com as saudades do seu amigo «Faísca». Jorge Tudela, com «Adeus, terra, adeus, pátria...», dá a voz a Victor, transmontano que como tantos outros, assenta arraiais na Grande Lisboa.  Manuel  Cardoso,  o  médico  veterinário  macedense,  que  aqui  confirma  os  seus  dotes  de  novelista, com «Os trasgos do senhor engenheiro», aquele que projectava uma barragem e nada sabia desses seres que habitam as águas e podem vingar-se com a invasão.No capítulo «Monografias», apenas o meu texto, «Das coisas da Loisa – uma aldeia empolei-rada no Doiro». Aquela Lousa que em dia aziago «pôs a guarda a lavrar» e lhe deu má fama.Na área do «Mercado de Trabalho», também uma só participação, a de Márcia Trigo, com o trabalho de investigação titulado «Imperativo do mercado global de trabalho, da competitividade e da inovação empresarial».Nos  «Costumes  e  tradições»,  as  intervenções  de  Alexandre  Perafita,  que  trata  a  «Tradição  Entrudo em Trás-os-Montes», e a de António Pinelo Tiza que nos fala da «Festa da cabra e do canhoto», em Cidões.«Por terras de Ribacôa» dá voz à arqueóloga Alexandra Lima, que nos divulga a criação de uma nova territorialidade, através da publicação do mapa inspirador «Do Côa a Siega Verde, a arte da luz» em que eu, levemente, também participei. Intitulou este seu texto, «Entre o Côa e o Douro Internacional».No item «Por terras de Foz Côa», outro arqueólogo, A. Martinho Baptista, este especializado em arte rupestre, através do texto «Eu projecto, tu projectas... O Parque Arqueológico e o Museu do Côa», no qual põe os seus conhecimentos desses dossiês ao nosso dispor.Das «Terras Barrosãs», quem melhor que António Lourenço Fontes e Barroso da Fonte, pode-ria dizer? «Uma região com identidade transmontana» e «Casa de Bragança – 600 anos ao serviço de Portugal», são os títulos com que nos obsequiaram.E chega a vez das nossas «Terras de Miranda», onde três mirandeses dissertam sobre a história, a Lei da lhéngua mirandesa e várias histórias, nesse idioma vernáculo com o qual todos nos identi-ficamos apesar de poucos o dominarem. Será que o facto de o terem baptizado de «mirandês» não dificulta a sua assunção por parte de todos os transmontanos? Afinal ela encerra em si uma cultura à qual todos nós pertencemos, incluindo os do território para lá da fronteira política, por se tratar, nada mais nada menos, que do llionés. Está bom de ver que falamos dos irmãos Amadeu e Carlos Ferreira e de Júlio Meirinhos, lídimos representantes desses falantes, apesar de outros haver.Em  «Reminiscência»,  Donzília  Martins  com  «O  relógio  da  saudade»  e  outras  histórias,  e,  Virgílio Gomes, com «Saudades».A  «Arte»  entregue  ao  mestre  Nadir  Afonso  com  «O  trabalho  artístico  mediante  a  medita-ção perseverante», onde afirma: «existem na natureza, dois tipos de atributos: as qualidades e as quantidades.  As  quantidades  sempre  existiram  à  superfície  do  planeta;  são  atributos  universais, intrínsecas das formas, ao passo que as qualidades surgem com o aparecimento do homem e suas funções e formam propriedades regionais dependentes das diferentes raças».Segue-se-lhe Eugénio Cavalheiro com, «A representação pictórica da Visitação do séc. XV ao séc. XVII, alguns exemplos».Da «Música» se encarregaram José Neves através d’ «O paradigma da nossa identidade cul-tural»,  Paulo  Preto,  da  «Música  nas  terras  de  Miranda  do  Douro.  Galandum  Galundaina»  e,  o  «portuguesinho mais bonito do Brasiu», no dizer de um apresentador televisivo daquele país nosso irmão, Roberto Leal, com «A música na minha vida...».Na «Museologia», Nelson Campos, com «O museu como espaço de investigação e instrumen-to de comunicação – reflexões a partir do caso do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo», para cuja criação contribuí.Sobre a «Ciência», se encarregou a veterinária Maria dos Anjos Pires, com «CSI UTAD: in-vestigando causas de morte» e, Paula Seixas Arnaldo, através d‘»Os mistérios da Borboleta Azul».A «Gastronomia», foi deixada ao cuidado de José António Silva, que tratou a «Confraria dos Vinhos Transmontanos» e, Jorge Lage, a defender a utilização da castanha na panificação e paste-laria, com o seu «Marron Glacé a castanha divinizada».Na área da «Crítica Social», os responsáveis pela publicação deste livro, imbuídos do espírito democrático, deram voz a Manuel António Pires Brás, alguém muito descontente com (alguns excessos  d)a  Revolução  de  Abril,  cujos  sentimentos  plasmou  nas  suas  «Histórias  Nordestinas».  Sílvio  Teixeira,  servindo-se  da  poesia,  desanca,  nos  «Políticos  contemporâneos»,  pela  descrença  que imprimem no âmago dos eleitores.E, depois, o quinhão merecido por «Lagoaça». Subordinados a este tema, ou sob a epígrafe de «Testemunhos», seguem-se 22 textos (ou outra forma de expressão, como a leitura paleográfica da carta de foro, a musical, o desenho, a fotografia). Um cento de páginas lhe são dedicadas, com toda a justiça!Mas não pensemos que só terão interesse para os lagoaceiros, pois aí encontraremos textos de ilustres Antónios, como Pires Cabral (que evoca Augusto Moreno), Almeida Santos (que conta como  se  tornou  filho  adoptivo  de  Lagoaça),  Pimenta  de  Castro,  Júlio  Andrade  (ambos  à  volta  com os «marranos»), Armando Palavras (que aborda os «Aspectos de religiosidade periférica nos séculos XVII e XVIII»), Hirondino Isaías, um longo e bonito registo da carrazedense Otília Lage, entre vários outros colaboradores e colaborações dos/das quais já não poderei dar notícia. A não ser de Adelaide Neto, que encerra o livro, dando-nos conta que um dia foi à Festa da Senhora das Graças, «bebeu auga da fonte» e, ficou devota da santa, da terra e dum lagoaceiro, por sinal o patrocinador desta obra. Não olvidando que ela (a obra) contém nas últimas páginas sínteses biobibliográficas dos autores intervenientes.

 

Carlos d’Abreu

RIBACVDANA. Associação de Fronteira para a Desenvolvimento Comunitário

ReseñasStudia ZamorenSia, Vol. XVI, 2017   208ISSN 0214-736X

FONTE: htps://revistas.uned.es/index.php/studiazamo/article/view/20760/17299

in: Revistas UNED 

 Revistas Científicas UNED



https://revistas.uned.es/index.php/

studiazamo/issue/view/1149


 Nota: Só agora publicamos este texto, porque só agora tivemos conhecimento do mesmo.


1 comentário:

  1. Grande Texto! Uma obra de Arte!! `Inda um dia gostava de escrever assim, -prosa com poesia documentada... Abençoado trabalho...
    ... Pois, o Dr. Armando Palavras sempre a cuidar dos aspectos religiosos, mas se pudesse afundava a nossa "flotilha"..., credo; santo nome de Jesus!, ... e o Dr. Jorge Lage, que é sempre muito telúrico, e que tem de se deixar os bois fazer chichi, e não os deixar subir a ladeira muito carregados ... e tal, mas sempre com o "marron glacée" de lambice, na criação...
    Vou deixar este grande livro à amostra na minha página de face! Ser Transmontano é uma Religião!!

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