Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de
ciência e cultura (colectânea de autores oriundos de Trás-os-Montes), coord.
Armando Palavras, Lagoaça: Exoterra, 2011.
CARLOS d'ABREU
Colaborar na divulgação de uma colectânea de textos
de autores de
Trás-os-Montes e Alto
Douro –território geográfico
e cultural que
continua a ter
para nós uma
forte carga simbólica,
mal-grado a «manta
de retalhos» administrativos a
que hoje nos
sujeitam–, constitui um
dever para qualquer
transmontano-duriense, mesmo que nela (colectânea) não tenha directamente
par-ticipado. E tanto
mais que esta
é uma obra
sui generis! Por
diversas razões. Em
primeiro lugar, porque foi idealizada e concebida numa aldeia
(aparentemente) igual a tantas outras e nas quais não estamos acostumados a
assistir a acontecimentos culturais, muito menos a realizações deste vulto. A
aldeia em causa leva o nome de Lagoaça e remonta aos primórdios da
Nacionalidade, a quem el-rei Dinis reconheceu importância estratégica no seu
esforço de consolidação do Reino, atribuindo esse seu vilar em terra de
Miranda, a 14 povoadores, através de carta de foro emitida a 26 de Abril de
1286. E esta obra nasce precisamente para comemorar os 725 anos dessa
efeméride. Vemos assim, que falamos de uma freguesia com pergaminhos. Pertenceu
pois à Terra de Miranda, autonomizou-se, com os «forais novos» foi incluída no
Concelho de Bemposta, depois no de Mogadouro e agora encontra-se vinculada aos
freixenistas. Talvez esta dificuldade em a «encaixar» administrativamente
revele as suas peculiaridades.Mas esta publicação, que certamente se deverá ao
esforço de muitos, nasceu da vontade do empresário António Neto ao ser nomeado
mordomo / presidente da Festa da Senhora das Graças, coadjuvado pelos também
lagoaceiros Armando Palavras (que coordenou) e Carlos Novais que, na qualidade
de presidente da Junta de Freguesia, apoiou. Está aqui um exemplo de que, quando
o Homem quer, a Obra nasce!Em segundo lugar, porque ela reúne um notável
conjunto de textos de mais de 70 autores. Creio
que são 71,
considerando que detectei
dois deles a
intervir com pseudónimo,
mas que merecem a distinção, se tivermos em conta que
um é o referido coordenador e o outro, o pertuésAmadeu Ferreira desdobrado no
mirandês-poeta Fracisco Niebro. Pela primeira vez –que eu tenha conhecimento,
porque isto de ter certezas esvai-se com a idade–, se produziu tal «mosaico» em
Trás-os-Montes e Alto Douro.«Mosaico
de Ciência e
Cultura», como o
seu subtítulo indica,
é o conjunto
resultante da combinação de pequenas pedras de coloração
variada, com os interstícios preenchidos por uma massa que as liga entre si.
Isto numa definição arqueológica. Chamando-lhe antes a Bibliotecono-mia,
miscelânea, antologia, selecta ou colectânea. É pois um livro composto por um
conjunto de textos, de diversos autores, em prosa e também em verso, com vários
documentos iconográficos de permeio. Esta diversidade faz dele uma obra de
referência, que pode ser lida segundo o gosto e interesse de cada um, bastando
para tal socorrer-se o leitor da organização que o coordenador lhe imprimiu e
expressou nas pp. 391 e seg.A
elaboração de uma
recensão crítica (coerente)
duma obra deste
tipo representa um
certo esforço, considerando
sobretudo a quantidade de textos nela insertos. Assim, na impossibilidade de
todos poder comentar, aproveitarei a organização temática que o seu coordenador
lhe conferiu e referirei o nome de (quási) todos os autores e respectivo título
do texto com que colaboraram, fazendo aqui e ali, algumas –necessariamente
breves–, observações.Afoitemo-nos então numa viagem pelo interior destas 4
centenas de páginas, imaginando-a em barca pelo nosso Doiro abaixo, num rio de
águas arrebatadas, como as do passado, quando ainda podiam ter pressa de
chegarem ao mar e aí cumprirem o seu destino. A embarcação correrá veloz e não
permitirá dar conta de todas as miradas, como acima se disse.Vamos então ao
primeiro item, designado «País e o Mundo», que tem precisamente como primeiro
texto «Voltar à terra e ao mar», de autoria do professor Adriano Moreira.
Reflecte o seu autor sobre a actual conjuntura política, económica e social que
agrava a sangria de gentes desta região, que nunca cessou. E cito: «Talvez
uma das maiores ameaças para o crescimento susten-tado de um país seja ter o
técnico, necessitar do técnico, mas não ter emprego para o técnico».
Vaticinando que (e volto a citar) «vão ser longos os anos de sacrifícios a
exigir à população que decidiu ficar, ou não pôde partir, tendo sido esquecido
um velho conceito de governos pruden-tes e atentos, que era o de promover e
defender um conceito estratégico de reserva alimentar (...) Trás-os-Montes, que
sempre pertenceu ao Reino, é uma reserva essencial», recorda-nos o
intelectual.De seguida, o artigo de Loureiro dos Santos sobre «A guerra na era
da informação», não fosse ele general. No item «Análise/reflexão», a prosa de
outro nome grande do nosso Distrito, aliás o seu maior bibliógrafo, legítimo
continuador do nosso Abade de Baçal. Refiro-me naturalmente ao professor
Hirondino da Paixão Fernandes. «E não é que a luz se fez!...». É este o título.
Onde numa linguagem precisa,
quási poética, com
alguns saborosos regionalismos
da sua Vila
Arçâ –afinal comuns
a várias outras
«pedrinhas» deste «mosaico»
distrital–, nos recorda
o seu amigo
e condiscípulo Fernando Subtil, através de uma carta que dele possui,
introduzindo assim nesta colectânea mais um dos nossos, que de outro modo teria
ficado de fora, por já não poder respon-der à chamada de Armando Palavras.
Através dessa carta ficamos a saber um pouco mais da sua personalidade. Era um
(e cito), «sonhador irrequieto, combativo, frontal».Luís Dias de Carvalho,
analisa a actualidade d’«A usura». Na pág. 27, o artigo «Transmon-tanismos», um
dos 5 textos que não chegaram inéditos à colectânea, mas com os quais a obra
sai valorizada, segundo o
seu coordenador e
com o qual
concordamos plenamente, até
porque foi publicado numa revista francesa. Pertence ao
professor Telmo Verdelho. «Transmontanismos» é uma verdadeira «teoria da
transmontaneidade». Neste texto cabemos todos, porque todos nele es-tamos
retratados. Inicia a sua reflexão afirmando que é (e cito) «Nativo de
Trás-os-Montes, aman-te e sempre saudoso da terra, muitas vezes me questiono
sobre a razão de ser e de parecer desta condição de origem, arrastada como uma
espécie de sandice, pelos transmontanos que vagueiam pelo mundo». E mais
adiante, acrescenta que «a memória do lugar, preenchida pelos rostos, pelas
coisas, pelos usos e costumes, é como uma configuração mental instituidora, uma
referência ou marca de pertença que se repercute para sempre no horizonte do
quotidiano de toda a gente». A leitura telúrica de apenas 5 páginas e meia, é a
síntese mais lúcida de análise geográfica regional que conheço!Em
«Personalidades Transmontanas», Abílio Gomes evoca «Barahona Fernandes – de
Vinhais para o Mundo». Inocêncio Pereira, os «Missionários, navegadores,
poetas, militares e historiado-res» freixenistas.Nas «Viagens», o escritor
António Modesto Navarro, que foi o primeiro apresentador deste livro –fazendo-o
com mestria na
ágora de Lagoaça–,
sob a epígrafe
de «A nossa
Liberdade foi uma Biblioteca», recorda como o seu amor
pelas letras nasceu com as quadras de um poema que um operário improvisou e
lançou a um grupo de rapazes e raparigas sentados numa rua da sua Vila Flor de
menino. Bento da Cruz descreve uma ida a Freixo de Espada à Cinta,
intitulando-a «Viagem ao Nordeste Transmontano». E viajando «Entre efémero e
eterno. Romagem ao cristal da manhã», ao encontro da sua Vilafrol, João de Sá,
filósofo que recentemente deixou o grupo dos vivos, aquele que me habituou
durante anos a procurar na caixa do correio o quinzenário Terra Quente, para
com a sua crónica de página inteira, me deleitar no serão. «Viajar na minha
terra é algo mais do que a descoberta de mim próprio, esse caudal tumultuoso de
pensamentos, volições e sentimentos enfeixados, por vezes em conflito, sem a
bênção de uma foz que os apazigúe. Daí que tenha prescindido de traçados e
projectos. É uma viagem sem arquitectura, comandada pelas subtilezas do
espírito, pelo que nele há de imprevisível (...)».«Por Esse Douro Acima», com
textos de António Barreto e Ilda Pinto Ribeiro, o sociólogo sintetiza a
natureza feita pelo homem e a poetisa refere os 250 anos da criação da Região
Demar-cada do Douro.Na secção reservada à «Poesia», Ernesto Rodrigues
apresenta-se com «Três Poemas», enquanto que Fernando Castro Branco nos leva à
Serra de Montesinho a partir d’»O parto das pedras».

Ilda Pinto Ribeiro volta ao rio com o
«Canto do Douro», o jornalista Rogério Rodrigues que se revela como poeta no
pseudónimo de Pedro Castelhano, e Sílvio Teixeira com o poema-postal
«Páscoa».Nas «Narrativas», a colaboração do Historiador António Borges Coelho
com «O homem do chapéu amarelo». António Passos Coelho fala-nos de Francisco do
Carmo, um «azarado miúdo entregue à lei da natureza» que começou por ter a
nomeada de «Filho da desgraça» por ser filho de «pai natural» e depois crismado
de »O pai do trabalho», porque a orfandade o obrigava a oferecer os seus braços
aos vizinhos que o alimentavam e remendavam. Afinal a história de tantos
infelizes em tempo de miséria.Bernardino Henriques oferece-nos dois bonitos
textos: «Abraço meio fraterno» e «Tejo», nome de rio e de cão. De facto os
nossos antigos tinham o hábito de chamar os canídeos por nomes de rios. Para os
proteger da raiva, já que esta doença os faz repelir a água, diziam.Fernando
Castro Branco regressa nesta modalidade com, «A ausência do estalajadeiro».
Fer-nando Chiote Tavares e a «Fotografia», afinal uma história de amor e
desamor. J. Rentes de Car-valho, o autor de «Ernestina»,
transmontano repartido entre
os Estevais (de
Mogadouro) e a
Holanda, a emprestar a sua prosa de profissional a esta colectânea, com
a história de um homem simples que sofria com as saudades do seu amigo
«Faísca». Jorge Tudela, com «Adeus, terra, adeus, pátria...», dá a voz a
Victor, transmontano que como tantos outros, assenta arraiais na Grande
Lisboa. Manuel Cardoso,
o médico veterinário
macedense, que aqui
confirma os seus
dotes de novelista, com «Os trasgos do senhor
engenheiro», aquele que projectava uma barragem e nada sabia desses seres que
habitam as águas e podem vingar-se com a invasão.No capítulo «Monografias»,
apenas o meu texto, «Das coisas da Loisa – uma aldeia empolei-rada no Doiro».
Aquela Lousa que em dia aziago «pôs a guarda a lavrar» e lhe deu má fama.Na
área do «Mercado de Trabalho», também uma só participação, a de Márcia Trigo,
com o trabalho de investigação titulado «Imperativo do mercado global de
trabalho, da competitividade e da inovação empresarial».Nos «Costumes
e tradições», as
intervenções de Alexandre
Perafita, que trata
a «Tradição Entrudo em Trás-os-Montes», e a de António
Pinelo Tiza que nos fala da «Festa da cabra e do canhoto», em Cidões.«Por
terras de Ribacôa» dá voz à arqueóloga Alexandra Lima, que nos divulga a
criação de uma nova territorialidade, através da publicação do mapa inspirador
«Do Côa a Siega Verde, a arte da luz» em que eu, levemente, também participei.
Intitulou este seu texto, «Entre o Côa e o Douro Internacional».No item «Por
terras de Foz Côa», outro arqueólogo, A. Martinho Baptista, este especializado
em arte rupestre, através do texto «Eu projecto, tu projectas... O Parque
Arqueológico e o Museu do Côa», no qual põe os seus conhecimentos desses
dossiês ao nosso dispor.Das «Terras Barrosãs», quem melhor que António Lourenço
Fontes e Barroso da Fonte, pode-ria dizer? «Uma região com identidade
transmontana» e «Casa de Bragança – 600 anos ao serviço de Portugal», são os
títulos com que nos obsequiaram.E chega a vez das nossas «Terras de Miranda»,
onde três mirandeses dissertam sobre a história, a Lei da lhéngua mirandesa e
várias histórias, nesse idioma vernáculo com o qual todos nos identi-ficamos
apesar de poucos o dominarem. Será que o facto de o terem baptizado de
«mirandês» não dificulta a sua assunção por parte de todos os transmontanos?
Afinal ela encerra em si uma cultura à qual todos nós pertencemos, incluindo os
do território para lá da fronteira política, por se tratar, nada mais nada
menos, que do llionés. Está bom de ver que falamos dos irmãos Amadeu e Carlos
Ferreira e de Júlio Meirinhos, lídimos representantes desses falantes, apesar
de outros haver.Em «Reminiscência», Donzília
Martins com «O
relógio da saudade»
e outras histórias,
e, Virgílio Gomes, com
«Saudades».A «Arte» entregue
ao mestre Nadir
Afonso com «O
trabalho artístico mediante
a medita-ção perseverante», onde
afirma: «existem na natureza, dois tipos de atributos: as qualidades e as
quantidades. As quantidades
sempre existiram à
superfície do planeta;
são atributos universais, intrínsecas das formas, ao passo que as
qualidades surgem com o aparecimento do homem e suas funções e formam
propriedades regionais dependentes das diferentes raças».Segue-se-lhe Eugénio
Cavalheiro com, «A representação pictórica da Visitação do séc. XV ao séc.
XVII, alguns exemplos».Da «Música» se encarregaram José Neves através d’ «O
paradigma da nossa identidade cul-tural»,
Paulo Preto, da
«Música nas terras
de Miranda do
Douro. Galandum Galundaina»
e, o «portuguesinho mais bonito do Brasiu», no
dizer de um apresentador televisivo daquele país nosso irmão, Roberto Leal, com
«A música na minha vida...».Na «Museologia», Nelson Campos, com «O museu como
espaço de investigação e instrumen-to de comunicação – reflexões a partir do
caso do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo», para cuja criação
contribuí.Sobre a «Ciência», se encarregou a veterinária Maria dos Anjos Pires,
com «CSI UTAD: in-vestigando causas de morte» e, Paula Seixas Arnaldo, através
d‘»Os mistérios da Borboleta Azul».A «Gastronomia», foi deixada ao cuidado de
José António Silva, que tratou a «Confraria dos Vinhos Transmontanos» e, Jorge
Lage, a defender a utilização da castanha na panificação e paste-laria, com o
seu «Marron Glacé a castanha divinizada».Na área da «Crítica Social», os
responsáveis pela publicação deste livro, imbuídos do espírito democrático,
deram voz a Manuel António Pires Brás, alguém muito descontente com (alguns
excessos d)a Revolução
de Abril, cujos
sentimentos plasmou nas
suas «Histórias Nordestinas».
Sílvio Teixeira, servindo-se
da poesia, desanca,
nos «Políticos contemporâneos», pela
descrença que imprimem no âmago
dos eleitores.E, depois, o quinhão merecido por «Lagoaça». Subordinados a este
tema, ou sob a epígrafe de «Testemunhos», seguem-se 22 textos (ou outra forma
de expressão, como a leitura paleográfica da carta de foro, a musical, o
desenho, a fotografia). Um cento de páginas lhe são dedicadas, com toda a
justiça!Mas não pensemos que só terão interesse para os lagoaceiros, pois aí
encontraremos textos de ilustres Antónios, como Pires Cabral (que evoca Augusto
Moreno), Almeida Santos (que conta como
se tornou filho
adoptivo de Lagoaça),
Pimenta de Castro,
Júlio Andrade (ambos
à volta com os «marranos»), Armando Palavras (que
aborda os «Aspectos de religiosidade periférica nos séculos XVII e XVIII»),
Hirondino Isaías, um longo e bonito registo da carrazedense Otília Lage, entre
vários outros colaboradores e colaborações dos/das quais já não poderei dar
notícia. A não ser de Adelaide Neto, que encerra o livro, dando-nos conta que
um dia foi à Festa da Senhora das Graças, «bebeu auga da fonte» e, ficou devota
da santa, da terra e dum lagoaceiro, por sinal o patrocinador desta obra. Não
olvidando que ela (a obra) contém nas últimas páginas sínteses
biobibliográficas dos autores intervenientes.
Carlos d’Abreu
RIBACVDANA. Associação de Fronteira para a
Desenvolvimento Comunitário
ReseñasStudia ZamorenSia, Vol. XVI, 2017 208ISSN 0214-736X
FONTE: htps://revistas.uned.es/index.php/studiazamo/article/view/20760/17299
in: Revistas UNED
Revistas
Científicas UNED
https://revistas.uned.es/index.php/
studiazamo/issue/view/1149
Nota: Só agora publicamos este texto, porque só agora tivemos conhecimento do mesmo.
Grande Texto! Uma obra de Arte!! `Inda um dia gostava de escrever assim, -prosa com poesia documentada... Abençoado trabalho...
ResponderEliminar... Pois, o Dr. Armando Palavras sempre a cuidar dos aspectos religiosos, mas se pudesse afundava a nossa "flotilha"..., credo; santo nome de Jesus!, ... e o Dr. Jorge Lage, que é sempre muito telúrico, e que tem de se deixar os bois fazer chichi, e não os deixar subir a ladeira muito carregados ... e tal, mas sempre com o "marron glacée" de lambice, na criação...
Vou deixar este grande livro à amostra na minha página de face! Ser Transmontano é uma Religião!!