Por Maria da Graça
Surpreende-me sempre o
feitiço que a palavra Amsterdam exerce em muitas pessoas. Vivendo elas longe e
sabendo-me aqui, algumas como que endoidecem a imaginar as festas a que irei, a
gente interessante que hei-de conhecer, os acontecimentos em que tomo parte, os
museus, os concertos, os teatros, os cafés.
Se vêm de visita e
partilham uns dias a minha realidade, recusam acreditar que eu de facto viva
entre as quatro paredes da minha sala de trabalho. Sorriem, achando que deve
ser pose, e nem a minha idade levam em conta.
Assim que voltarem as costas eu de certeza recomeço a ir às festas, aos cafés.
Terça-feira, 23 de
Novembro
Seria bom se cada um de
nós tivesse um anjo- da- guarda. No meu caso seria óptimo se esse anjo, além de
me livrar dos precipícios, fosse também competente na escrita e me ajudasse a
terminar o romance que, por mais que eu tente e empurre, recusa avançar.
Quarta-feira, 24 de
Novembro
Ainda me chocam, ainda me
assustam e, mesmo tendo-as partilhado em criança, as circunstâncias em que os
meus antepassados viveram continuam a parecer-me irreais.
Conheço medos e dores, o
desespero, as aflições, mas as deles eram maiores e incríveis. Protecção contra
os homens ,só tinham a dos seus braços; contra as violências da Natureza ou a
cólera de Deus, não tinham nenhuma; para se defenderem da doença tomavam chás,
levavam oferendas à igreja.
Com as possibilidades sem
conta que a vida moderna oferece numa grande cidade, queixo-me, sem razão, da
monotonia dos dias.
Mas como terão sido os
dias de quem tinha sempre os mesmos montes diante dos olhos, e vivia agrilhoado
à rotina da lavoura?
Eu, que conheci essas
circunstâncias mas não sofri, tenho tendência para romantizá-las. É uma forma
de autodefesa.
(...)
In PÓ, CiNZA E RECORDAÇÕES
-J.RENTES DE CARVALHO

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