sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Neve e altura: Decano dos jornalistas portugueses publicou primeiro livro de poesia há 60 anos

João Pedro Miranda


Neve e altura:

Decano dos jornalistas portugueses publicou primeiro livro de poesia há 60 anos

Foi em Setembro de 1965, enquanto prestava serviço militar no norte de Angola, que foi publicado o primeiro livro de poesia de Barroso da Fonte, assinado com o pseudónimo “Fernando Paixão”. Chamava-se “Neve e altura”, tinha meia centena de páginas e foi impresso em Chaves, na A Gutenberg.

Volvidos 60 anos exactos desde a estreia editorial do Poeta que é também o actual decano dos jornalistas portugueses, esta é uma data que não podíamos deixar passar em claro e que aqui partilhamos com os leitores do Tempo Caminhado.

Barroso da Fonte, que nasceu no dia 19 de Fevereiro do ano em que começou a segunda Guerra Mundial, foi um dos vários que deixou a sua pequena aldeia natal, no coração das montanhas do Barroso, em Montalegre, e conseguiu ir estudar no seminário diocesano de Vila Real, entre 1952/62.

Nunca saíra da aldeia até lá. Mas soube ler nos astros o seu destino. Nada sabia de política. Os seus valores advinham-lhe da norma, enquanto lei natural que rege as comunidades, e assim se fez à vida, mantendo-se fiel a esses valores que bebeu no leite materno.

Mal conheceu o mundo urbano e teve contacto com os jornais, reparou que a sua terra e as suas gentes não tinham o mesmo tratamento de que outras terras e outras gentes usufruíam. Foi esse o primeiro choque social e político que o levou para o jornalismo e para o combate à injustiça das desigualdades sociais. Elegeu a palavra escrita para esse combate que ainda perdura e que o levará, como ele sempre diz, até à cova.

Foi das primeiras e das mais atrevidas vozes, como o demonstram os seus 72 anos de jornalismo activo, disperso pelos jornais da região e do país. A sua credibilidade, ousadia e frontalidade criaram-lhe alguns amargos de boca, algumas infâmias, não poucas calúnias e aviltantes injustiças. Mas não foi por acaso que, entre 1982 e 1985, foi nomeado Director da Zona Norte da Direcção Geral da Comunicação Social, função com sede no Porto, cargo que desempenhou com grandes elogios e cujas ideias foram prosseguidas pelo ministro que veio a seguir e que, não conseguindo destacá-lo para Director-Geral, lhe pediu um dossier com os problemas essenciais para o sector. A chamada reconversão tecnológica, a formação profissional, as rádios locais e a Carteira Profissional de Jornalismo foram alicerçadas nesse trabalho, no associativismo e nas ideias que BF havia testado em encontros, debates e congressos, em que participara naquela qualidade. Essas ideias foram fecundadas no GI (Gabinete de Imprensa de Guimarães) e no IPIR (Instituto Português de Imprensa Regional) de que foi fundador e dirigente e que, entretanto, mereceram estatuto de utilidade pública.

Mas se o percurso de Barroso da Fonte é tão vasto e diversificado, nas várias dimensões da vida real e cultural deste país e mais além, vamos focar-nos, neste texto, apenas na vertente poética, que completa seis décadas de publicação.


O poeta

Na verdade, se agora se completam 60 anos desde a publicação de “Neve e altura”, na extinta gráfica flaviense A Gutenberg, Barroso da Fonte começou a escrever poesia enquanto estudava no seminário de Vila Real, o que mais tarde o levaria a abandonar a vida religiosa.

De facto, foi no longínquo ano de 1958, há 67 anos, que o então jovem seminarista João Barroso da Fonte começou a escrever os seus primeiros poemas, que reuniu num volume manuscrito a que chamou: Braços duma cruz (1958-1961), assinado com o pseudónimo João Montaño. Esses poemas viram a luz do dia, com a chancela da Editora Cidade Berço, numa edição fac-similada que foi publicada há 10 anos, no dia 19 de Fevereiro de 2015, data em que o poeta barrosão completou 76 anos de idade.

Foi quando nos propúnhamos comemorar o seu meio século de escritor, que fomos surpreendidos com a descoberta de duas obras manuscritas inéditas, que estavam perdidas no meio do seu vasto espólio literário: uma em prosa (a novela O amor tudo vence) e outra em verso (Braços duma cruz). Ele próprio se esquecera desses dois livros inéditos...

Os quatro “braços” dessa cruz contêm poemas dos anos: 1958, 1959, 1960 e 1961. Com a poesia escrita em cada um desses anos, o poeta reuniu cento e vinte e dois poemas num volume manuscrito, permitindo concluir que o ano de 1958 se deve considerar, na verdade, como sendo o primeiro da sua longa caminhada literária. Essa produção significa que Barroso da Fonte, com 19 anos de idade, doze dos quais a guardar cabras na sua aldeia de Codeçoso da Chã (Meixedo), já tinha escrito vinte e sete poemas, que foram registados no primeiro braço da sua «cruz». E nos três anos seguintes prosseguiu inspiradamente a actividade poética.

É de salientar que o copista original, e que também desenhou a capa, há mais de meio século, foi o Dr. Eduardo Cardoso de Barros, natural de Covas do Douro e residente em Gaia, que felizmente ainda está entre nós e também foi surpreendido pela edição deste livro.

Desde aí até agora, Barroso da Fonte publicou os seguintes livros de poesia, sem contar com as inúmeras participações em antologias, coletâneas e outras publicações lusófonas: Formas e sombras (1966), O sangue e as palavras (1967), É preciso amar as pedras (1970), Terra violada (1978), Tempo Infecundo (1982), Pausa ao Entardecer (1990); Trinta anos de poeta (1996) e Poesia, amoras & presunto (2015 – Prémio Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves).

Completando-se agora 60 anos após a publicação do livro Neve e Altura, e conhecendo bem de perto o trabalho e as suas obras (jornalismo, investigação, prosa e poesia), entendi prestar uma homenagem a este Autor, a quem me ligam os laços de sangue e um exemplo de vida inestimável. Aprendi muito com ele. E alguns dos méritos que, eventualmente, possa ter, devo-os também a ele, como por exemplo: o gosto pelo jornalismo, pela literatura, pelos temas históricos, etnográficos, e pela Cultura em geral.

Mesmo antes de concluir a minha formação académica, já trabalhávamos juntos, como, por exemplo, como subdirector do Poetas & Trovadores, jornal literário de âmbito nacional produzido pela Editora Cidade Berço que Barroso da Fonte criou em 1998, já depois de aposentado. Fundou, na mesma altura, o quinzenário local: A Voz de Guimarães, do qual fui igualmente subdirector. Tive também o gosto de ajudar a produzir, desde o final do século passado, sobretudo a nível gráfico, os seus livros, incluindo as teses de mestrado e doutoramento sobre Alberto Sampaio e Alfredo Pimenta, respectivamente.

 

João Pedro Miranda

(jornalista CP 6950)

15 comentários:

  1. ANDAM NO AR PEDAÇOS DE PAPEL

    Andam no ar pedaços de papel
    que foram ontem herança do poeta

    Vão pelas ruas gritantes os zés pereiras
    e a garotada confirma a rusga

    Ai poeta que vais morrer
    e deixas o teu nome ligado às fanfarras

    Quem sabe se até está escrito
    com letras em ziguezague na pele dos bombos
    onde o martelo baterá sem fim
    como se fora na tua cabeça?

    Vão gargalhar de ti os teus amigos
    e até os cães hão-de ladrar à tua sombra
    para que nem na morte tu sejas esquecido

    Canta poeta que vais morrer

    In Trinta Anos de Poeta (É preciso Amar as Pedras)

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  2. O PÃO DAS CRIANÇAS

    Na rua
    as palavras são braços
    de corpos anónimos
    lembrando crianças
    do país da fome

    a fome anda na rua
    do país das crianças
    com braços anónimos
    estendidos ao pão

    o pão das crianças
    do país da fome
    é feito por braços anónimos
    da gente da rua

    a gente da rua
    traz côdeas de pão
    no bolso das calças
    para entreter os dentes das crianças
    do país da fome

    no país da fome
    a alma das crianças
    lembra estátuas mutiladas
    por gente da rua
    que atira palavras
    a quem pede pão

    o pão das crianças
    tem o sabor dos cardos
    em dias de festa.

    (É Preciso Amar as Pedras ) Barroso da Fonte
    Trinta Anos de Poeta

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  3. Saúdo o ilustre jornalista decano transmontano, historiador e escritor. Abraço amigo,.
    Jorge Sales Golias

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  4. HEI-DE PARTIR

    hei-de partir
    com lágrimas nos olhos,
    como o barco desliza sobre as ondas
    feitas de espuma e saudade;
    e na praia, ninguém há-de chorar a minha despedida,
    nem o lugar vazio da minha mesa de café,
    há-de evocar o meu regresso.

    hei-de partir
    e os lenços brancos hão-de ficar silenciosos
    no bolso dos que me ignoram,
    como a minha voz triste, há-de clamar em vão
    por aqueles que não podem ouvir-me.

    serei só no altar-mor
    e os olhos dos peixes
    hão-de chorar a minha sorte de soldado desconhecido.
    na minha terra
    os sinos hão-de ecoar trindades
    como as donzelas se ajuntam nas fontes,
    ouvindo os jovens entoar canções.

    hei-de partir
    e nas ruas da cidade,
    ninguém encontrará o poeta das esquinas.
    no cais, hão-de aportar barcos sem fim,
    com votos de regresso,
    mas o meu nome não constará
    na lista dos tripulantes repatriados.

    serei só e sem nome
    numa trincheira cavada com as próprias mãos,
    para que o eco não alerte o inimigo;
    e depois da metralha,
    até o silêncio há-de ocultar a minha existência na floresta.

    floresta amiga,
    gémea do meu esquecimento,
    o teu segredo completa o meu destino
    e a dor do meu ser abandonado
    repousará docemente no teu seio!

    terra amiga,
    cemitério de heróis e de cobardes,
    arena de soberbos e facínoras,
    o teu nome enluta a minha vida,
    projectando sobre mim, sombras de crimes,
    com desejos de vingança consumada.

    hei-de entender os teus mistérios
    e irmanar o teu silêncio, à minha voz emudecida;
    e quando o desalento evadir o meu corpo
    -- da cor da tua selva --
    ou a saudade enegrecer o vão dos meus caminhos,

    hás-de contar-me histórias lindas,
    como aquela história triste
    dum soldado que não teve lágrimas na despedida,
    nem lenços brancos a acenar.

    e então hás-de chorar comigo
    a incerteza do meu regresso.

    In Trinta Anos de Poeta (Neve e Altura)
    Barroso da Fonte

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  5. DE MANHÃ

    De manhã
    quando desperto
    vejo-me ao espelho
    e fico incerto:
    se volto para novo,
    se sigo para velho.

    Dr. Barroso da Fonte- grande Poeta Barrosão !
    mgraça

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  6. O doutor Barroso da Fonte é o HOMEM , historiador, poeta, jornalista e amigo que mais admiro. Ele sabe disso . Sempre lho disse. Homem íntegro como poucos, transparente, leal ,trabalhador e solidário. Foi durante anos o meu editor através da sua Editora Cidade Berço, e quando esta acabou é ainda a ele que recorro a pedir conselhos e opinião. Nunca me desiludiu . Sempre confiei nele porque é Homem de uma só palavra. Ele merecia pela obra e por ser quem é uma homenagem a nível nacional, (tambem já lhe disse isso? HOMEM GRANDE em carater em sabedoria, inteligente e sobretudo O MEU AMIGO DR. BARROSO DA FONTE. Obrigada querido Pedro por fazeres esta pequenina homenagem ao teu pai. Ele merece tudo. Um grande e terno abraço para vós os dois da sempre grata Donzília Martins

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  7. A HOMENAGEM DA "A BARROSANA"
    Das montanhas se ergueu,
    como rocha a resistir,
    na palavra se fez céu,
    sem jamais se redimir.

    Pela pena foi guerreiro,
    pela verdade, clarim,
    decano, farol inteiro,
    contra o silêncio sem fim.

    Se o destino lhe foi duro,
    ele fez dele bandeira,
    com o verbo abriu futuro,
    com coragem verdadeira.

    Pela pátria levantou
    as pedras da tradição,
    e em poesia eternizou
    o sangue vivo do chão.

    Sessenta anos são rasto
    de uma chama sem quebranto,
    neve e altura no pasto,
    voz que ecoa em todo canto.

    Poeta, mestre e memória,
    de granito é o seu ser,
    Barroso da Fonte é história
    que A Barrosana já escreveu.

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  8. POR ISSO É QUE ESTE MUNDO CAMINHA PARA UM DESERTO, SEM ALMA! O NOSSO PRESIDENTE SÓ DÁ MEDALHAS A QUEM NADAR MUITO BEM, CHUTAR A BOLA E GANHAR MUITO PILIM, E A SALTAR MUITO ALTO, MAS, QUE NÃO VENHA DO BARROSO!!!, POIS DO BARROSO SÓ PODEMOS IR TIRAR O LÍTIO - ESSE SIM, ATÉ VAI CHEGAR PARA AS AMÉRICAS -, SÃO TERRAS RARAS ... ... - mgraça

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  9. Os Céus abriram-se, sentimos a Poesia a vibrar, os nossos sentidos ficaram mais aptos e capazes de apreciar a bela Poesia. O esplendor mostrou-se em toda a sua magnitude! Os nossos corações mostram-se livres e libertos para deliciarem-se com a sua Escrita...
    Parabéns, muitos parabéns Dr. Barroso da Fonte por não deixar secar a sua fonte inspiradora...

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    Respostas
    1. - hoje nada te prometo
      neste poema concreto vai
      apenas um beijo o
      desejo de
      contigo correr entre os silvedos
      colher amoras contar
      com os dedos pelos
      grãos de areia os anos a que faltam horas

      horas guardadas nestas
      conchas dobradas flores das
      areias que
      tens nas mãos cheias
      fechadas

      F.M.G. Obra poética´- antologia

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  10. Minha Pátria Geme

    Minha pátria geme
    minha terra minga
    minha gente morre.

    Levanta-te Poeta
    que é urgente gritar às armas
    para que as corujas não chupem
    as caveiras das crianças.

    Guimarães 1976
    (Terra Violada) In Poesia, amoras e presunto
    Prémio Nacional de Poesia FERNÃO DE MAGALHÃES GONÇALVES

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  11. MEU POEMA TEM

    Meu poema tem
    a forma e o desdém
    das coisas transviadas

    poema de impiedade
    sofrendo a crueldade
    dos homens de mau fim

    poema incongruente
    que morre de repente
    por só falar de mim.

    Codeçoso 1972 In Poesia, amoras e presunto

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  12. ATIRO PALAVRAS AO NOME DA RUA

    Atiro palavras ao nome da rua
    que tem mulheres gordas à porta de casa
    -mulheres de soalheiro
    que mostram as coxas
    aos homens que passam

    quem anda na rua
    não sente o calor
    das virgens que gemem
    o cio da hora

    a hora do cio
    emprenha vulcões
    que parem na rua
    das mães abortadas

    o nome da rua
    tem alma de gente
    que ensina às crianças
    o signo do amor.

    Chaves, 1972
    (Terra Violada) IN Poesia, amoras & presunto

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  13. EM CADA PEDRA

    Em cada pedra
    encontro a minha seiva

    em cada árvore
    descubro o meu destino

    em tudo o que palpita
    me sinto renascer

    e quanto mais revivo
    mais quero morrer.

    Apúlia, 1973
    IN Poesia, amoras & presunto
    Barroso da Fonte

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  14. AINDA QUE NÃO TENHA PALAVRAS DOCES

    Ainda que não tenha palavras doces
    rosmaninho
    ou rebentos de primavera
    este poema é teu
    MULHER PRETA

    que envergas um pano branco
    e vais pela rua da sanzala
    de prato à cabeça
    com peixe ou mandioca
    descalça e original
    como as tuas formas
    esteticamente modeladas
    seduzindo os desejos de tantos
    que te compram barato.

    Se pudesse fazia-te importante
    e tu serias a rainha das mulheres
    de todas as cores e nacionalidades.

    Queria ver os teus pés descalços
    pisar tapetes de veludo
    e teu corpo
    esteticamente modelado
    vestir mantos de cambraia
    para que esse teu rosto
    escorraçado e abatido
    se transfigurasse para sempre
    num destino de recuperação.

    Tenho pena de ti
    por querer levar-te nos braços
    entre todas as mulheres
    e não poder contigo
    porque sou apedrejado pelos homens da minha raça!

    Queria pedir à vida
    os teus despojos
    e mascará-la com infâmia e maldição
    para que não morras sem tréguas
    pela sina com que nasceste.

    Será lida no tempo
    a tua história simples
    para ser no coração dos homens
    a voz de todos os instantes
    pedindo flores para o teu sepulcro,

    (O Sangue e as Palavras)
    In Trinta Anos de Poeta

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