JORGE LAGE
Era tão temida que quando, no final da década de cinquenta do século passado, o
Presidente, Capitão Ilídio Esteves, mandou romper a Estrada Municipal entre
Chelas e a Estrada da Pala dos Lobos (esta Estrada Nacional 315 – em macadame –
hoje desleixada pelo Município) acho que nem besta de carga voltou a
passar carregada na Ladeira do Arrebentão. Rodeava-se pelo novo caminho
municipal. Curioso notar que esta Estrada Municipal vai tomando o nome do lugar
por onde passa: Estrada de Vale das Mós, Estrada da Pala dos Lobos, Estrada da
Merigadeira… Esta estrada, que é importante para os naturais e visitantes de
Chelas e aldeias vizinhas, depois do 25 de Abril tem sido votada ao desleixo.
Para o troço da Estrada de Chelas ao cruzamento da EN 315 o alcatrão e a
gravilha esgotam-se, há 50 anos. Há dinheiro para foguetórios, comezainas na
Praça Nova, feiras e festas e não se consegue uma pequena verba para alcatroar
a Estrada de Vale das Mós a Chelas? Percorre-se o Município de Valpaços e nos
mais recônditos lugares e lugarejos lá está o alcatrão a convidar à visita.
Cada vez que vou visitar a minha irmã, pago a taxa de 17 euros para lavar o
carro (fica coberto de uma camada de poeira). Voltando à Ladeira das Hortas, há
outros locais que eram de respeito, mas passava-se lá de quando em vez e um ou
outro lavrador trilhava as Ladeiras: a de Vale de Esgueife, a de Vale de
Freixinho ou a do Calvário. Nestas passava-se menos vezes ou por festa. Na
Ladeira das Hortas era quase todos os dias, de manhã, à tarde e à noute. Quem
ia para a Ribeira do Rabaçal, na margem esquerda, tinha os principais pontos de
referência, do mais longe ao mais perto: A Molinheira, o Açude dos Leirós, a Tapada
Ribeira, o Açude do Trovoadas (Azenha dos Eixes ou do Casal Sá Lima, de
Matozinhos), a Azenha de Chelas (do Capitão Ilídio Esteves) e a Ladeira das
Hortas. As hortas ribeirinhas do Rabaçal sustentavam, no dia-a-dia, a maioria
das famílias e os animais de trabalho de Chelas. Todos os lavradores sabiam que
carro carregado que ali passasse, na acarreja com o pão ou o trigo, na arranca
das batatas, ou carregado de lenha, com as cantadeiras em festa e a anunciarem a
toda a aldeia e aos Eixes, tinha que fazer uma pequena pausa no fundo, para os
«beis» mijarem e descansarem. E, no Verão, que mijadelas faziam!... Até a
espuma fazia e deixavam umas pequenas buracas na poeira dos caminhos. As
jugadas, muitas vezes com a língua de fora e os vazios a fazerem de foles, aconselhavam
três ou quatro minutos de descanso. Um bom lavrador aproveitava esse momento
para acariciar o focinho dos animais, para lhe dar mais confiança, para lhes
agradecer a generosidade de se não negarem ao trabalho. Havia muito pragmatismo
no lidar com os animais e cada um no seu lugar. Eram momentos de ternura que hoje
demagogos «protectores» de animais nunca perceberão. Sem animais sãos, leais e
generosos nunca o ano correria bem aos lavradores e seriam motivo de chacota,
de zombaria e desprestígio no areópago da aldeia, podendo até estar em causa um
farto ano agrícola para o lavrador que não soubesse lidar com os animais de
sela ou de jugo. Portanto, o sopé da Ladeira das Hortas era uma pequena estação
de pausa, para os animais estacarem por bons momentos, mijarem e o lavrador de
olhos nos alhos lhes dizer no mais profundo silêncio: - Tendes que dar tudo!
Não me podeis deixar mal... Se o Lavrador da casa visse que os bois estavam
assustados ordenava: - fala aos beis!... Aliás, quando os animais eram
generosos, o lavrador também os mimava mais com erva tenra, com batata miúda e
com baldes de enfarnada afidalgada e se doentes não faltava a farinha fina.
Muitas vezes era o ancião da família a dizer ao lavrador: - bota-lhe uma
cesta de batatas ou uma enfarnada que eles bem merecem. Mas, no fundo da
ladeira das Hortas, com os animais aliviados na bexiga e já menos afogueados,
quando o lavrador gritava: - EiH!... - sentiam a aguilhada por cima da
cabeça e do lombo, era para treparem ladeira íngreme acima. Por vezes, um
animal menos afouto ou possante, depois de meia dúzia de passos, perante a
ameaça e os estrépitos da aguilhada no varal e a voz incitadora do lavrador,
lançava um urro cavernoso afiado que ecoava no povoado: - Uarrr!...
Então o lavrador recebia-o com um arrepio que lhe gelava a alma. O lavrador não
podia dar parte de fraco e com a alma apertada pedia ao paquete para pôr uma
pedra de calço numa roda e paravam a meio da ladeira. Os beis voltavam a parar
e a ganhar maior fôlego. O lavrador acariciava-os e deixava-os descansar um
pouco. Frequente um deles esfourava-se todo, pernas e rabo abaixo.Examinava a
rodeira puída e nalgum buraco mais fundo metia uma ou outra pedra por onde a
roda do carro fosse melhor, arroussando por aí o carro e a jugada. Pedia ao
paquete que fosse para a frente dos «beis». Com o lavrador à ilharga dos beis,
disparava, afoutando-os: - Eih Preto! Eih Garrancho!... Utah!... Ah! balentes!...
Utah!... A aguilhada batia estrepitosamente nas baras, nas engarelas e
os beis recebiam umas picadelas nas ilhargas das mãos (as patas da frente eram
mãos para o lavrador, humanizando-os e vendo-os como indispensável a uma casa
de lavoura – ainda não havia tractores). O lavrador e quem estivesse por perto
metiam os ombros ao carro e todos, animais e homens, puxavam ladeira acima para
que a Ladeira das Hortas fosse vencida. Quando se atingia o cimo e o trilho puído
e poeirento fosse sulcado era como se caminhasse no Céu. Estava vencido o
perigo. Porém, embora raramente, o mais fraco dos animais, quando ia ladeira
acima, ao soltar um «uarr!...» de clamor lancinante e ajoelhava, era indicação
que estava no limite e que não podia dar mais. Então o lavrador gritava: - óh!...
Calçava-se o carro e todos os que estivessem por perto metiam ombros ao carro e
puxavam tanto quanto podiam para ajudar. Se não conseguiam tinham que chamar uma
jugada para acamboar. Alguns lavradores, com «beis» mais possantes, avançavam e
pediam para tirar os animais que estavam ao carro e punha lá os seus. Era a
suprema humilhação para o lavrador em apuros. E Caminho das Hortas acima,
levavam carro e carga, como se fossem um potente rebocador. No dia seguinte e
até nessa «neite» a notícia corria de casa em casa e o labrador ficava-se por
casa para não enfrentar a chacota da desonra e poder ser confrontado com a sua
burrice, por não ter beis capazes ou por ser brutote e não saber a força dos
seus animais, carregando-os demais. Por isso, ter beis bem tratados era
fundamental. Beis escanzelados era sinal de que na casa desse labrador se
passava mal ou era fraco para a cria, o que ainda era pior, descendo na hierarquia
social. O bom lavrador acomodava primeiro a jugada e só depois comia ele. A
manjedoura devia andar limpa e o retraço atirado para a manjedoura da cria
menos importante, machos ou burros. Havia uma escala hierárquica na alimentação
dos: beis, cabalos, machos/mulas, burros, cães e gatos. Hoje, em vez de cidades
temos canidades (cidades de cães), estando, muitas vezes, os cães e os gatos à
frente das pessoas. Mas, na minha aldeia, os que não eram bons labradores,
podiam-se contar por metade dos dedos duma mão. Eram inábeis na vida de
laboura, sem jeito para os animais e a cuidarem dos campos. O meu primo
António, o meu irmão Manuel, o Arnaldo Falcão e o António (o que amarrado na bicicleta,
nas Curbas do Bale, parecia um lebrato – embora inábil ciclista) eram dos
melhores labradores. O meu primo António tinha uma vaidade desmesurada, que
exteriorizava. Mais nas lavras, decrua e entravessa, cantava ou assobiava,
exteriorizando a alegria pelos regos traçados, pelo roço revirado, por uma
lavoura de mestre e fundamental no afolhamento, haver mais pão no ano seguinte.
Os lavradores da aldeia eram uns bons, outros menos, todos lutadores,
garantindo a subsistência das famílias, fossem labradores de beis, de machos ou
de burros.


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