sábado, 27 de setembro de 2025

A Ladeira das Hortas

 

JORGE  LAGE



A Ladeira das Hortas – Era o segundo troço dos caminhos que mais respeito metia aos lavradores da minha aldeia. Ao caminho a que guardavam mais respeito era à mítica «Ladeira do Arrebentão», onde um pequeno descuido podia descambar numa grande «desgracia». 

Era tão temida que quando, no final da década de cinquenta do século passado, o Presidente, Capitão Ilídio Esteves, mandou romper a Estrada Municipal entre Chelas e a Estrada da Pala dos Lobos (esta Estrada Nacional 315 – em macadame – hoje desleixada  pelo Município) acho que nem besta de carga voltou a passar carregada na Ladeira do Arrebentão. Rodeava-se pelo novo caminho municipal. Curioso notar que esta Estrada Municipal vai tomando o nome do lugar por onde passa: Estrada de Vale das Mós, Estrada da Pala dos Lobos, Estrada da Merigadeira… Esta estrada, que é importante para os naturais e visitantes de Chelas e aldeias vizinhas, depois do 25 de Abril tem sido votada ao desleixo. Para o troço da Estrada de Chelas ao cruzamento da EN 315 o alcatrão e a gravilha esgotam-se, há 50 anos. Há dinheiro para foguetórios, comezainas na Praça Nova, feiras e festas e não se consegue uma pequena verba para alcatroar a Estrada de Vale das Mós a Chelas? Percorre-se o Município de Valpaços e nos mais recônditos lugares e lugarejos lá está o alcatrão a convidar à visita. Cada vez que vou visitar a minha irmã, pago a taxa de 17 euros para lavar o carro (fica coberto de uma camada de poeira). Voltando à Ladeira das Hortas, há outros locais que eram de respeito, mas passava-se lá de quando em vez e um ou outro lavrador trilhava as Ladeiras: a de Vale de Esgueife, a de Vale de Freixinho ou a do Calvário. Nestas passava-se menos vezes ou por festa. Na Ladeira das Hortas era quase todos os dias, de manhã, à tarde e à noute. Quem ia para a Ribeira do Rabaçal, na margem esquerda, tinha os principais pontos de referência, do mais longe ao mais perto: A Molinheira, o Açude dos Leirós, a Tapada Ribeira, o Açude do Trovoadas (Azenha dos Eixes ou do Casal Sá Lima, de Matozinhos), a Azenha de Chelas (do Capitão Ilídio Esteves) e a Ladeira das Hortas. As hortas ribeirinhas do Rabaçal sustentavam, no dia-a-dia, a maioria das famílias e os animais de trabalho de Chelas. Todos os lavradores sabiam que carro carregado que ali passasse, na acarreja com o pão ou o trigo, na arranca das batatas, ou carregado de lenha, com as cantadeiras em festa e a anunciarem a toda a aldeia e aos Eixes, tinha que fazer uma pequena pausa no fundo, para os «beis» mijarem e descansarem. E, no Verão, que mijadelas faziam!... Até a espuma fazia e deixavam umas pequenas buracas na poeira dos caminhos. As jugadas, muitas vezes com a língua de fora e os vazios a fazerem de foles, aconselhavam três ou quatro minutos de descanso. Um bom lavrador aproveitava esse momento para acariciar o focinho dos animais, para lhe dar mais confiança, para lhes agradecer a generosidade de se não negarem ao trabalho. Havia muito pragmatismo no lidar com os animais e cada um no seu lugar. Eram momentos de ternura que hoje demagogos «protectores» de animais nunca perceberão. Sem animais sãos, leais e generosos nunca o ano correria bem aos lavradores e seriam motivo de chacota, de zombaria e desprestígio no areópago da aldeia, podendo até estar em causa um farto ano agrícola para o lavrador que não soubesse lidar com os animais de sela ou de jugo. Portanto, o sopé da Ladeira das Hortas era uma pequena estação de pausa, para os animais estacarem por bons momentos, mijarem e o lavrador de olhos nos alhos lhes dizer no mais profundo silêncio: - Tendes que dar tudo! Não me podeis deixar mal... Se o Lavrador da casa visse que os bois estavam assustados ordenava: - fala aos beis!... Aliás, quando os animais eram generosos, o lavrador também os mimava mais com erva tenra, com batata miúda e com baldes de enfarnada afidalgada e se doentes não faltava a farinha fina. Muitas vezes era o ancião da família a dizer ao lavrador: - bota-lhe uma cesta de batatas ou uma enfarnada que eles bem merecem. Mas, no fundo da ladeira das Hortas, com os animais aliviados na bexiga e já menos afogueados, quando o lavrador gritava: - EiH!... - sentiam a aguilhada por cima da cabeça e do lombo, era para treparem ladeira íngreme acima. Por vezes, um animal menos afouto ou possante, depois de meia dúzia de passos, perante a ameaça e os estrépitos da aguilhada no varal e a voz incitadora do lavrador, lançava um urro cavernoso afiado que ecoava no povoado: - Uarrr!... Então o lavrador recebia-o com um arrepio que lhe gelava a alma. O lavrador não podia dar parte de fraco e com a alma apertada pedia ao paquete para pôr uma pedra de calço numa roda e paravam a meio da ladeira. Os beis voltavam a parar e a ganhar maior fôlego. O lavrador acariciava-os e deixava-os descansar um pouco. Frequente um deles esfourava-se todo, pernas e rabo abaixo.Examinava a rodeira puída e nalgum buraco mais fundo metia uma ou outra pedra por onde a roda do carro fosse melhor, arroussando por aí o carro e a jugada. Pedia ao paquete que fosse para a frente dos «beis». Com o lavrador à ilharga dos beis, disparava, afoutando-os: - Eih Preto! Eih Garrancho!... Utah!... Ah! balentes!... Utah!... A aguilhada batia estrepitosamente nas baras, nas engarelas e os beis recebiam umas picadelas nas ilhargas das mãos (as patas da frente eram mãos para o lavrador, humanizando-os e vendo-os como indispensável a uma casa de lavoura – ainda não havia tractores). O lavrador e quem estivesse por perto metiam os ombros ao carro e todos, animais e homens, puxavam ladeira acima para que a Ladeira das Hortas fosse vencida. Quando se atingia o cimo e o trilho puído e poeirento fosse sulcado era como se caminhasse no Céu. Estava vencido o perigo. Porém, embora raramente, o mais fraco dos animais, quando ia ladeira acima, ao soltar um «uarr!...» de clamor lancinante e ajoelhava, era indicação que estava no limite e que não podia dar mais. Então o lavrador gritava: - óh!... Calçava-se o carro e todos os que estivessem por perto metiam ombros ao carro e puxavam tanto quanto podiam para ajudar. Se não conseguiam tinham que chamar uma jugada para acamboar. Alguns lavradores, com «beis» mais possantes, avançavam e pediam para tirar os animais que estavam ao carro e punha lá os seus. Era a suprema humilhação para o lavrador em apuros. E Caminho das Hortas acima, levavam carro e carga, como se fossem um potente rebocador. No dia seguinte e até nessa «neite» a notícia corria de casa em casa e o labrador ficava-se por casa para não enfrentar a chacota da desonra e poder ser confrontado com a sua burrice, por não ter beis capazes ou por ser brutote e não saber a força dos seus animais, carregando-os demais. Por isso, ter beis bem tratados era fundamental. Beis escanzelados era sinal de que na casa desse labrador se passava mal ou era fraco para a cria, o que ainda era pior, descendo na hierarquia social. O bom lavrador acomodava primeiro a jugada e só depois comia ele. A manjedoura devia andar limpa e o retraço atirado para a manjedoura da cria menos importante, machos ou burros. Havia uma escala hierárquica na alimentação dos: beis, cabalos, machos/mulas, burros, cães e gatos. Hoje, em vez de cidades temos canidades (cidades de cães), estando, muitas vezes, os cães e os gatos à frente das pessoas. Mas, na minha aldeia, os que não eram bons labradores, podiam-se contar por metade dos dedos duma mão. Eram inábeis na vida de laboura, sem jeito para os animais e a cuidarem dos campos. O meu primo António, o meu irmão Manuel, o Arnaldo Falcão e o António (o que amarrado na bicicleta, nas Curbas do Bale, parecia um lebrato – embora inábil ciclista) eram dos melhores labradores. O meu primo António tinha uma vaidade desmesurada, que exteriorizava. Mais nas lavras, decrua e entravessa, cantava ou assobiava, exteriorizando a alegria pelos regos traçados, pelo roço revirado, por uma lavoura de mestre e fundamental no afolhamento, haver mais pão no ano seguinte. Os lavradores da aldeia eram uns bons, outros menos, todos lutadores, garantindo a subsistência das famílias, fossem labradores de beis, de machos ou de burros.

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