JÚLIA SERRA
Sacromomentos - Flávio Vara
surpreende o leitor com este livro
Sacramomentos porque, ao contrário do homem revolucionário, sempre pronto
para “serrar” aqueles que se julgam impolutos na sociedade, agora, surge uma
escrita voltada para o próprio sujeito poético que, numa espécie de autognose,
se redime perante o leitor e Deus. O jogo do próprio título Sacramomentos sugere momentos sagrados e
a utilização da consoante sibilante [S] parece anunciar os sete sacramentos (o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos
Enfermos, a Ordem e o Matrimónio).
Sete, pelo seu simbolismo, também se
enquadra no carácter epistémico destes versos, anunciando a perfeição, um ciclo
de mudança, um número dos Céus e a passagem de um mundo conhecido para o
desconhecido “Eu creio em Deus, mas não sei// se é porque estou sempre a vê-LO//
ou se é porque não O vi” (p.21). O sujeito poético assemelha-se a um
Antero de Quental, o poeta revolucionário das Ideias e da Razão que, inchado de
empáfia, ofendia Castilho e Deus, mas, em contraponto, também o ser arrependido
que, num pungimento doloroso, se entrega a Deus “Na mão de Deus, na sua mão
direita, // Descansou afinal meu coração.// Do palácio encantado da Ilusão// Desci
a passo e passo a escada estreita.” O permanente conflito interior, o vazio
existencial, as desilusões martirizaram Antero; não creio que Flávio Vara
busque essa condição próxima do não-ser (influência do Budismo e do Nirvana em
Antero), mas apenas adiou o “serrar” para revelar a outra face de si mesmo e a
sua atitude religiosa. Temos um poeta semelhante a Caeiro, em contacto com o
próximo e com a Natureza; um ser preocupado com o Inferno deste mundo e que
luta para apagar as “labaredas” do mal, nunca esmorecendo, graças à ajuda de
Deus. E a comprovar que se apropinquou de Deus o sujeito de enunciação, além de
confessar a sua Fé, verseja as orações da manhã e da noite, para agradecer ao
divino cada momento do dia. Ele autoproclama-se um peregrino “cá vou
peregrinando no meu trilho (…) eu caminho sedento para Ti// é em Ti que me vou
dessedentar” (p.7). A alusão ao Natal, ao Deus Menino, ao Jubileu também
são temas e momentos da Igreja que não esquece: “Fiz um berço de toda a
minha vida/” e, nesta oração da Noite de Natal, suplica ao Senhor: “quero
nele esta noite reclinar-Te” (p. 27). Vagueando pelo mundo e pela
sociedade, relembra os mais frágeis que padeceram neste inferno da vida: a
criança Valentina que foi vítima do pai e da madrasta, o coronavírus ”impante
de ciência// e de tecnologia empanturrado” (p.43) que atingiu e cercou o
mundo de miséria, as crianças que poderiam nascer e não chegam a florir
(crítica ao aborto); os velhos que necessitam de ajuda, de humanismo e são
abandonados à sua sorte (crítica à eutanásia).Outras críticas desfilam nesta passadeira, partindo
da temática central da obra – a religião
católica – e marcando a sua posição, por exemplo, nos poemas: “católicos
socialistas” e “porque não sou socialista.” Os “católicos ortodoxos”, os
“católicos de raça” e “a mulher na Igreja” são outras achegas que Vara
aproveitou para mostrar as suas discordâncias/convicções. Esta obra
apresenta-nos um ser contemplativo, que aprecia a Natureza e a Arte (poema
Angelus de Millet), nunca afastando Deus como criador destas maravilhas
encantatórias que deslumbram o humano. A
propósito do poema citado, relembra-se que Angelus é uma pintura do artista
francês Millet do século XIX (1857-1859) e o que sobressai na tela é uma cena
campestre que o artista faz do seu país e o nosso poeta verseja assim: “E em
primeiro plano// um casal aldeão, // que largou as alfaias do trabalho, // está
de pé, recolhido em oração”. É um
quadro que evoca as Avé-Marias, o anoitecer e as badaladas do sino, portanto, é
uma pintura que ajuda a repousar o corpo e a alma e que o poeta confessa “gosto
de contemplá-la” (p.39). O livro é composto por quatro capítulos, intitulados:
Moção de Confiança; Natalícias, A Luz e as Sombras e, finalmente, Fidelidade,
totalizando vinte e sete (27 poemas). O “eu” aqui encontrado revela mansuetude
e munificência, características praticamente impensáveis, no mesmo autor de
“serrar a velha”. Afinal, o poeta do serrote tem outra face oposta, como
simbolizada no mal/bem: aquele que parecia ser difícil e contundente consegue
embotar a sua pena e transformar a sua escrituralidade num remanso de paz. Pode
dizer-se que ao sarcasmo se opõe a seriedade – as duas faces da mesma moeda.
Júlia Serra
Nota: A recensão acima, ao livro, «Sacromomentos»
(ed. Poesia Impossível, 2024), do poeta bragançano (Rio Frio), Flávio Vara, foi
lavrado pela crítica literária, Professora Júlia Serra (de Sto. Tirso). Na foto
acima reproduz-se a contracapa com dois poemas. Parabéns ao Flávio Vara e a
Júlia Serra. Pedidos a: flavio.vara@gmail.com
.


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A contradição em vários dos nossos melhores poetas ( ateus e depois crentes repesos) também estará aqui presente? Outros, serão como o nosso grande filósofo Bento Spinosa que acredita num Deus, mas para não lhe chamar Deus, chamou-lhe NATUREZA...
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