quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sacromomentos

 

JÚLIA  SERRA



Sacromomentos - Flávio Vara surpreende o leitor com este livro Sacramomentos porque, ao contrário do homem revolucionário, sempre pronto para “serrar” aqueles que se julgam impolutos na sociedade, agora, surge uma escrita voltada para o próprio sujeito poético que, numa espécie de autognose, se redime perante o leitor e Deus. O jogo do próprio título Sacramomentos sugere momentos sagrados e a utilização da consoante sibilante [S] parece anunciar os sete sacramentos (o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimónio). 

Sete, pelo seu simbolismo, também se enquadra no carácter epistémico destes versos, anunciando a perfeição, um ciclo de mudança, um número dos Céus e a passagem de um mundo conhecido para o desconhecido “Eu creio em Deus, mas não sei// se é porque estou sempre a vê-LO// ou se é porque não O vi” (p.21). O sujeito poético assemelha-se a um Antero de Quental, o poeta revolucionário das Ideias e da Razão que, inchado de empáfia, ofendia Castilho e Deus, mas, em contraponto, também o ser arrependido que, num pungimento doloroso, se entrega a Deus “Na mão de Deus, na sua mão direita, // Descansou afinal meu coração.// Do palácio encantado da Ilusão// Desci a passo e passo a escada estreita.” O permanente conflito interior, o vazio existencial, as desilusões martirizaram Antero; não creio que Flávio Vara busque essa condição próxima do não-ser (influência do Budismo e do Nirvana em Antero), mas apenas adiou o “serrar” para revelar a outra face de si mesmo e a sua atitude religiosa. Temos um poeta semelhante a Caeiro, em contacto com o próximo e com a Natureza; um ser preocupado com o Inferno deste mundo e que luta para apagar as “labaredas” do mal, nunca esmorecendo, graças à ajuda de Deus. E a comprovar que se apropinquou de Deus o sujeito de enunciação, além de confessar a sua Fé, verseja as orações da manhã e da noite, para agradecer ao divino cada momento do dia. Ele autoproclama-se um peregrino “cá vou peregrinando no meu trilho (…) eu caminho sedento para Ti// é em Ti que me vou dessedentar” (p.7). A alusão ao Natal, ao Deus Menino, ao Jubileu também são temas e momentos da Igreja que não esquece: “Fiz um berço de toda a minha vida/” e, nesta oração da Noite de Natal, suplica ao Senhor: “quero nele esta noite reclinar-Te” (p. 27). Vagueando pelo mundo e pela sociedade, relembra os mais frágeis que padeceram neste inferno da vida: a criança Valentina que foi vítima do pai e da madrasta, o coronavírus ”impante de ciência// e de tecnologia empanturrado” (p.43) que atingiu e cercou o mundo de miséria, as crianças que poderiam nascer e não chegam a florir (crítica ao aborto); os velhos que necessitam de ajuda, de humanismo e são abandonados à sua sorte (crítica à eutanásia).Outras  críticas desfilam nesta passadeira, partindo da temática central da obra – a religião  católica – e marcando a sua posição, por exemplo, nos poemas: “católicos socialistas” e “porque não sou socialista.” Os “católicos ortodoxos”, os “católicos de raça” e “a mulher na Igreja” são outras achegas que Vara aproveitou para mostrar as suas discordâncias/convicções. Esta obra apresenta-nos um ser contemplativo, que aprecia a Natureza e a Arte (poema Angelus de Millet), nunca afastando Deus como criador destas maravilhas encantatórias que deslumbram o humano.  A propósito do poema citado, relembra-se que Angelus é uma pintura do artista francês Millet do século XIX (1857-1859) e o que sobressai na tela é uma cena campestre que o artista faz do seu país e o nosso poeta verseja assim: “E em primeiro plano// um casal aldeão, // que largou as alfaias do trabalho, // está de pé, recolhido em oração”.  É um quadro que evoca as Avé-Marias, o anoitecer e as badaladas do sino, portanto, é uma pintura que ajuda a repousar o corpo e a alma e que o poeta confessa “gosto de contemplá-la” (p.39). O livro é composto por quatro capítulos, intitulados: Moção de Confiança; Natalícias, A Luz e as Sombras e, finalmente, Fidelidade, totalizando vinte e sete (27 poemas). O “eu” aqui encontrado revela mansuetude e munificência, características praticamente impensáveis, no mesmo autor de “serrar a velha”. Afinal, o poeta do serrote tem outra face oposta, como simbolizada no mal/bem: aquele que parecia ser difícil e contundente consegue embotar a sua pena e transformar a sua escrituralidade num remanso de paz. Pode dizer-se que ao sarcasmo se opõe a seriedade – as duas faces da mesma moeda. 

Júlia Serra


 JORGE  LAGE

Nota: A recensão acima, ao livro, «Sacromomentos» (ed. Poesia Impossível, 2024), do poeta bragançano (Rio Frio), Flávio Vara, foi lavrado pela crítica literária, Professora Júlia Serra (de Sto. Tirso). Na foto acima reproduz-se a contracapa com dois poemas. Parabéns ao Flávio Vara e a Júlia Serra. Pedidos a: flavio.vara@gmail.com .

1 comentário:

  1. A contradição em vários dos nossos melhores poetas ( ateus e depois crentes repesos) também estará aqui presente? Outros, serão como o nosso grande filósofo Bento Spinosa que acredita num Deus, mas para não lhe chamar Deus, chamou-lhe NATUREZA...

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