Porque muitos milhares de portugueses muçulmanos se
bateram por Portugal em África, o xeique Munir tem todo o direito de ali estar,
e fá-lo como convidado de longa data dos antigos combatentes.
Jaime Nogueira Pinto, in Observador
Em regra, a comunicação social ignora o 10 de Junho
dos Combatentes, aquele que os que estivemos no então Ultramar português todos
os anos comemoramos no Monumento aos Combatentes do Ultramar, junto ao Forte do
Bom Sucesso. Fiz parte do núcleo inicial que lançou a ideia do monumento.
Reuníamos na Associação de Comandos, num tempo em que, no refluxo do 25 de
Abril e dos discursos “antifascistas” e “anticoloniais”, não era fácil levar
por diante semelhante iniciativa. Mas em 1994 lá se conseguiu inaugurar o
monumento. E todos os 10 de Junho as sucessivas comissões executivas ali foram
realizando o encontro dos combatentes, com o concurso das “associações de
combatentes”, especialmente as dos corpos de tropas especiais – Comandos,
Fuzileiros, Paraquedistas – e da Liga dos Combatentes. Depois, em 2000,
seguindo um desejo que vinha da fundação, puseram-se as placas nas paredes do vizinho
Forte do Bom Sucesso com os nomes de todos os que morreram na guerra de África,
a última guerra de Portugal. Nunca foi notícia de destaque.

Quem senão
colonialistas, racistas, saudosistas do Império, potenciais fascistas,
marginalizados pelo Progresso quereria semelhante homenagem? Assim, tirando
casos muito especiais e polémicos – como quando, na inauguração do monumento a
15 de Janeiro de 1994, o Dr. Mário Soares, então Presidente da República, foi
vaiado por parte da assistência durante o seu discurso –, era como se aquele 10
de Junho não existisse, como se os antigos combatentes, varridos para debaixo
do tapete da História, ali devessem ficar. Todos os que morreram pela pátria, à
semelhança do que se passou nas Forças Armadas e na guerra, a cerimónia teve
sempre portugueses de todas as cores, raças e credos religiosos. O que nos
unia, aos que fomos para a guerra, era a defesa do que então considerávamos
território nacional. Dizer-se que “muitos dos que lá morreram não concordavam
com aquela política de defesa do Ultramar” é esquecer que os que não
concordavam podiam sempre ser refractários e evitar o serviço militar – e houve
bastantes que o fizeram – ou, depois de lá estarem, desertar – e também houve
alguns. Mas a maioria, à volta de um milhão em 14 anos, foi, serviu e voltou.
Morreram mais de nove milhares, cujos nomes estão inscritos nas paredes do
Forte do Bom Sucesso que rodeiam o lago. Em 1975, já no caos do PREC, ainda lá
ficaram umas dezenas. Também nas fileiras, em Angola, na Guiné e em Moçambique,
serviram muitos jovens do recrutamento local, na sua maioria negros. Em 1974,
nas vésperas do 25 de Abril, dos cerca de oitenta mil militares portugueses em
Angola, metade era desse recrutamento local; em Moçambique, em cerca de setenta
mil, eram mais de metade; e na Guiné eram um terço dos 36 mil que compunham as
forças portugueses. Ora em Moçambique e na Guiné, muitos destes combatentes
eram muçulmanos, e as suas convicções religiosas não os impediram de combater
por Portugal. E muitos morreram. Por isso, a partir de 2005 e por sugestão do
presidente da Associação de Comandos, José Lobo do Amaral, nos encontros do 10
de Junho dos Combatentes passou-se a realizar uma cerimónia religiosa mista, em
que o xeique Munir, imã da Mesquita de Lisboa, juntamente com um sacerdote
católico, rezavam em memória dos caídos. É, portanto, uma cerimónia
inter-religiosa que se realiza há mais de 20 anos, decorrendo sempre no maior
respeito e unidade. Foi, por isso, com grande surpresa e indignação que, na
terça-feira, 10 de Junho, depois da oração conjunta do xeique Munir e do
capelão militar católico, se ouviram de dois intrusos uma série de impropérios
insultuosos contra o Xeique. Houve surpresa e houve indignação. Os provocadores
foram mandados calar pela assistência e foram depois retirados pela PSP. A este
incidente juntaram-se outros insultos dispersos contra o almirante Gouveia e
Melo, estes vindos, aparentemente, de alguns “negacionistas” presentes,
acusando-o de, com as vacinas, ter contribuído para a morte de muitos
portugueses. Foi o que bastou para que as cadeias de televisão entrassem em
excitação e se precipitassem para “cobrir” o acontecimento. Ignorando, tanto
como os arruaceiros, que a cerimónia inter-religiosa era ali uma tradição de há
mais de vinte anos, os insultos e o par de provocadores que os proferira foram
redimensionados, amplificados e generalizados, dando a entender que, entre os
antigos combatentes, havia um grupo racista e fundamentalista que queria correr
com o Islão entre saudações nazis. E que confundia o Islão com o jihadismo,
que, como é sabido, tem feito mais vítimas entre muçulmanos do que entre
cristãos. Nações há muitas. A nação portuguesa, como todas, tem características
singulares, e talvez haja dois pioneirismos fundamentais que ajudem a
defini-la: o protonacionalismo da revolução de Aviz dos finais do século XIV,
desenhado na crise 1383-1385, em que, na Europa feudal da Guerra dos Cem Anos,
um povo, guiado por uma elite alternativa e rebelde, recusa um rei
“estrangeiro”, D. João de Castela, que pelo direito vigente seria o rei legal;
e o pioneirismo das navegações. O pioneirismo das navegações permitiu ao Estado
português ganhar massa crítica antes da unificação do resto da península pelos
reis católicos. Nessa grande aventura, que durou até à perda da independência
com a conquista por Filipe II e pelo duque de Alba e Sancho Dávila em 1580, um
povo de pouco mais de um milhão de habitantes controlava o Índico até ao
estreito de Malaca, enquanto estava a colonizar o Brasil, com famílias do
Reino, e mantinha fortalezas em Marrocos e feitorias ao longo da costa de
África. É uma História de que só nos devemos orgulhar, embora, como toda a
História e como toda a acção humana, tenha as suas tragédias e sombras, que
deverão sempre ser consideradas. O que não podemos nem devemos fazer é julgar o
passado com os critérios do presente ou medir esse “outro país”, esse “lugar
estranho”, pela bitola de hoje. É verdade que os programas de ensino do Estado
Novo apresentavam a expansão, as navegações, as descobertas e as conquistas,
como fruto quase exclusivo da vontade de dilatar a Fé e o Império; como se não
houvesse comércio, interesses, negócios, tráficos. Ou como se, nesse mesmo
tempo, não estivesse a ser estudada, escrita e publicada por historiadores como
Luís Albuquerque e Vitorino Magalhães Godinho toda uma outra História
Económica. Porém, depois do 25 de Abril, o que antes era quase só Cruz e
Espada, passou a ser quase só “glória de mandar e vã cobiça”, só pilhagens e
tráfico de escravos. Um maniqueísmo substituiu outro, sendo que este novo
maniqueísmo se apresenta como não-sectário, como livre e plural. Temos de
assumir o passado com realismo e com rigor, sem deixar que as correcções
políticas várias distorçam a verdade. E mesmo quando as nossas convicções
políticas estão em jogo, temos de ser capazes de nos pormos na pele do outro,
do nosso inimigo e adversário e tentar perceber as suas razões – sem que isso
nos impeça de defendermos as nossas.
O 10 de Junho dos combatentes acontece há
mais de três décadas e o xeique Munir, como representante da comunidade
muçulmana, e porque na guerra de África muitos milhares de portugueses
muçulmanos se bateram por Portugal, tem todo o direito de ali estar. E fá-lo
como convidado de longa data da comissão executiva dos encontros dos
combatentes. Para memória futura é bom que se saiba que continuará a ser
bem-vindo e a estar presente; quem não será bem-vindo serão aqueles que, não
percebendo a essência e a tradição da nossa “nação pluricontinental e
plurirracial”, dão lugar a incidentes e perturbações – e pasto às feras da
desinformação. A ignorância e a estupidez, tanto dos que arruaçam como dos que
informam, procuram sempre estas amálgamas fáceis entre racismo e nacionalismo,
entre terrorismo e Islão, entre homofobia e valores de família. Os valores da
nação portuguesa não têm nada que ver com identitarismos religiosos ou raciais;
e muito menos com discriminações em seu nome em homenagens que sempre se
caracterizaram pelo respeito pelos mortos em combate.
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