terça-feira, 17 de junho de 2025

O NOSSO 10 DE JUNHO

Porque muitos milhares de portugueses muçulmanos se bateram por Portugal em África, o xeique Munir tem todo o direito de ali estar, e fá-lo como convidado de longa data dos antigos combatentes.

 

Jaime Nogueira Pinto, in Observador

 

Em regra, a comunicação social ignora o 10 de Junho dos Combatentes, aquele que os que estivemos no então Ultramar português todos os anos comemoramos no Monumento aos Combatentes do Ultramar, junto ao Forte do Bom Sucesso. Fiz parte do núcleo inicial que lançou a ideia do monumento. Reuníamos na Associação de Comandos, num tempo em que, no refluxo do 25 de Abril e dos discursos “antifascistas” e “anticoloniais”, não era fácil levar por diante semelhante iniciativa. Mas em 1994 lá se conseguiu inaugurar o monumento. E todos os 10 de Junho as sucessivas comissões executivas ali foram realizando o encontro dos combatentes, com o concurso das “associações de combatentes”, especialmente as dos corpos de tropas especiais – Comandos, Fuzileiros, Paraquedistas – e da Liga dos Combatentes. Depois, em 2000, seguindo um desejo que vinha da fundação, puseram-se as placas nas paredes do vizinho Forte do Bom Sucesso com os nomes de todos os que morreram na guerra de África, a última guerra de Portugal. Nunca foi notícia de destaque. 

Quem senão colonialistas, racistas, saudosistas do Império, potenciais fascistas, marginalizados pelo Progresso quereria semelhante homenagem? Assim, tirando casos muito especiais e polémicos – como quando, na inauguração do monumento a 15 de Janeiro de 1994, o Dr. Mário Soares, então Presidente da República, foi vaiado por parte da assistência durante o seu discurso –, era como se aquele 10 de Junho não existisse, como se os antigos combatentes, varridos para debaixo do tapete da História, ali devessem ficar. Todos os que morreram pela pátria, à semelhança do que se passou nas Forças Armadas e na guerra, a cerimónia teve sempre portugueses de todas as cores, raças e credos religiosos. O que nos unia, aos que fomos para a guerra, era a defesa do que então considerávamos território nacional. Dizer-se que “muitos dos que lá morreram não concordavam com aquela política de defesa do Ultramar” é esquecer que os que não concordavam podiam sempre ser refractários e evitar o serviço militar – e houve bastantes que o fizeram – ou, depois de lá estarem, desertar – e também houve alguns. Mas a maioria, à volta de um milhão em 14 anos, foi, serviu e voltou. Morreram mais de nove milhares, cujos nomes estão inscritos nas paredes do Forte do Bom Sucesso que rodeiam o lago. Em 1975, já no caos do PREC, ainda lá ficaram umas dezenas. Também nas fileiras, em Angola, na Guiné e em Moçambique, serviram muitos jovens do recrutamento local, na sua maioria negros. Em 1974, nas vésperas do 25 de Abril, dos cerca de oitenta mil militares portugueses em Angola, metade era desse recrutamento local; em Moçambique, em cerca de setenta mil, eram mais de metade; e na Guiné eram um terço dos 36 mil que compunham as forças portugueses. Ora em Moçambique e na Guiné, muitos destes combatentes eram muçulmanos, e as suas convicções religiosas não os impediram de combater por Portugal. E muitos morreram. Por isso, a partir de 2005 e por sugestão do presidente da Associação de Comandos, José Lobo do Amaral, nos encontros do 10 de Junho dos Combatentes passou-se a realizar uma cerimónia religiosa mista, em que o xeique Munir, imã da Mesquita de Lisboa, juntamente com um sacerdote católico, rezavam em memória dos caídos. É, portanto, uma cerimónia inter-religiosa que se realiza há mais de 20 anos, decorrendo sempre no maior respeito e unidade. Foi, por isso, com grande surpresa e indignação que, na terça-feira, 10 de Junho, depois da oração conjunta do xeique Munir e do capelão militar católico, se ouviram de dois intrusos uma série de impropérios insultuosos contra o Xeique. Houve surpresa e houve indignação. Os provocadores foram mandados calar pela assistência e foram depois retirados pela PSP. A este incidente juntaram-se outros insultos dispersos contra o almirante Gouveia e Melo, estes vindos, aparentemente, de alguns “negacionistas” presentes, acusando-o de, com as vacinas, ter contribuído para a morte de muitos portugueses. Foi o que bastou para que as cadeias de televisão entrassem em excitação e se precipitassem para “cobrir” o acontecimento. Ignorando, tanto como os arruaceiros, que a cerimónia inter-religiosa era ali uma tradição de há mais de vinte anos, os insultos e o par de provocadores que os proferira foram redimensionados, amplificados e generalizados, dando a entender que, entre os antigos combatentes, havia um grupo racista e fundamentalista que queria correr com o Islão entre saudações nazis. E que confundia o Islão com o jihadismo, que, como é sabido, tem feito mais vítimas entre muçulmanos do que entre cristãos. Nações há muitas. A nação portuguesa, como todas, tem características singulares, e talvez haja dois pioneirismos fundamentais que ajudem a defini-la: o protonacionalismo da revolução de Aviz dos finais do século XIV, desenhado na crise 1383-1385, em que, na Europa feudal da Guerra dos Cem Anos, um povo, guiado por uma elite alternativa e rebelde, recusa um rei “estrangeiro”, D. João de Castela, que pelo direito vigente seria o rei legal; e o pioneirismo das navegações. O pioneirismo das navegações permitiu ao Estado português ganhar massa crítica antes da unificação do resto da península pelos reis católicos. Nessa grande aventura, que durou até à perda da independência com a conquista por Filipe II e pelo duque de Alba e Sancho Dávila em 1580, um povo de pouco mais de um milhão de habitantes controlava o Índico até ao estreito de Malaca, enquanto estava a colonizar o Brasil, com famílias do Reino, e mantinha fortalezas em Marrocos e feitorias ao longo da costa de África. É uma História de que só nos devemos orgulhar, embora, como toda a História e como toda a acção humana, tenha as suas tragédias e sombras, que deverão sempre ser consideradas. O que não podemos nem devemos fazer é julgar o passado com os critérios do presente ou medir esse “outro país”, esse “lugar estranho”, pela bitola de hoje. É verdade que os programas de ensino do Estado Novo apresentavam a expansão, as navegações, as descobertas e as conquistas, como fruto quase exclusivo da vontade de dilatar a Fé e o Império; como se não houvesse comércio, interesses, negócios, tráficos. Ou como se, nesse mesmo tempo, não estivesse a ser estudada, escrita e publicada por historiadores como Luís Albuquerque e Vitorino Magalhães Godinho toda uma outra História Económica. Porém, depois do 25 de Abril, o que antes era quase só Cruz e Espada, passou a ser quase só “glória de mandar e vã cobiça”, só pilhagens e tráfico de escravos. Um maniqueísmo substituiu outro, sendo que este novo maniqueísmo se apresenta como não-sectário, como livre e plural. Temos de assumir o passado com realismo e com rigor, sem deixar que as correcções políticas várias distorçam a verdade. E mesmo quando as nossas convicções políticas estão em jogo, temos de ser capazes de nos pormos na pele do outro, do nosso inimigo e adversário e tentar perceber as suas razões – sem que isso nos impeça de defendermos as nossas. 

O 10 de Junho dos combatentes acontece há mais de três décadas e o xeique Munir, como representante da comunidade muçulmana, e porque na guerra de África muitos milhares de portugueses muçulmanos se bateram por Portugal, tem todo o direito de ali estar. E fá-lo como convidado de longa data da comissão executiva dos encontros dos combatentes. Para memória futura é bom que se saiba que continuará a ser bem-vindo e a estar presente; quem não será bem-vindo serão aqueles que, não percebendo a essência e a tradição da nossa “nação pluricontinental e plurirracial”, dão lugar a incidentes e perturbações – e pasto às feras da desinformação. A ignorância e a estupidez, tanto dos que arruaçam como dos que informam, procuram sempre estas amálgamas fáceis entre racismo e nacionalismo, entre terrorismo e Islão, entre homofobia e valores de família. Os valores da nação portuguesa não têm nada que ver com identitarismos religiosos ou raciais; e muito menos com discriminações em seu nome em homenagens que sempre se caracterizaram pelo respeito pelos mortos em combate.

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