Texto de Mafalda Miranda Barbosa
Em cinco dias, um não-caso de um beijo dado por um homem a uma mulher no contexto das comemorações de um campeonato do mundo de futebol transformou-se num drama mundial, com muitos a vaticinar que se trata de um episódio capaz de mudar o rumo da civilização.
O não-caso converte-se em caso e conta-se em poucas palavras. Uma das muitas jogadoras da seleção de futebol feminino espanhola, no momento em que cumprimentava diversas pessoas na tribuna, abraçou-se ao presidente da federação, levantou-o do chão, o que é demonstrativo da sua fragilidade corporal, e recebeu deste um beijo na boca, sem que o tivesse empurrado, sem que tivesse feito uma cara de perturbação, sem que o seu corpo se tivesse retraído. Pelo contrário, deu-lhe uma palmadinha nas costas, em jeito de camaradagem.
Seguidamente, foi para os balneários comer algo e beber champanhe, enquanto simulava um suposto casamento com o referido dirigente federativo, para gáudio das companheiras, que entraram em delírio no momento em que o sujeito anuncia, como prémio pelo feito alcançado, uma viagem a Ibiza. Neste cenário, a dita jogadora protagonista do agora-caso diz que não gostou do beijo, enquanto se ri a bom rir e brinca com a situação, alimentando o fingimento do suposto casamento simulado.
Posso ter uma visão muito cinzenta do mundo, mas o certo é que, no meu horizonte de referência, esta descrição está longe de poder ser assimilada a um caso de assédio sexual. Para este ocorrer, tem de existir um comportamento indesejado (admitamos, embora com dúvidas, que foi esse o caso) de caráter sexual, com o objetivo ou o efeito de violar a dignidade da pessoa, em particular pela criação de um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante e ofensivo. Nada ali teve como efeito intimidar, hostilizar, degradar, humilhar ou ofender. Muito pelo contrário, o dirigente, numa atitude de gosto duvidoso que poderia ter sido repelida pela jogadora, procurou acarinha-la depois da perda de oportunidade de marcar um golo na sequência de um penalty assinalado durante o jogo.
Do mesmo modo, não se preenchem os tipos legais de crime de coação sexual ou de importunação sexual. Quanto ao primeiro, a jogadora não foi constrangida a praticar ato sexual de relevo. Quanto ao segundo, não houve, pelo descrito, intenção de qualquer contacto de natureza sexual. Pelo contrário, resultou das imagens transmitidas ad nauseum que o dirigente federativo utilizou um tipo de cumprimento que, não sendo normal em termos de moralidade, não ultrapassa o limiar a mera imoralidade, até porque faz, pelo que se constata pelas redes sociais da jogadora, em relação a uma jogadora para quem é prática corrente cumprimentar pessoas próximas – como parece ser o caso, dada a brincadeira nos balneários – com beijos na boca. É, assim, por exemplo que cumprimenta o irmão e uma criança, sem que ninguém se levante contra ela por suspeitas de incesto ou pedofilia.
Parece, portanto, que o agora-caso não consegue, apesar do alarido, ultrapassar a barreira da relevância jurídico laboral e penal, não a tendo. Mas é claro que a juridicidade fica aquém da moralidade, e que ninguém duvida que há comportamentos desvaliosos que não são, até pela fragmentaridade que caracteriza o direito criminal, sancionados pelo ordenamento jurídico, pelo menos em termos específicos (podê-lo-ão ser do ponto de vista do direito civil, em geral, sem que, no caso concreto, haja possibilidade de se configurar qualquer dano que, pela sua gravidade, mereça a tutela do direito), sem que, contudo, do ponto de vista ético, profissional, social ou outro percam a sua importância.
O comportamento do presidente da federação espanhola de futebol foi o comportamento típico de um grunho apatetado e meio selvático. Contudo, não é, no contexto do futebol, um caso isolado. Mesmo se quisermos deixar de lado o célebre beijo que uniu Casillas e Carbonero no final de um campeonato do mundo de futebol, o qual curiosamente provocou na jovem jornalista um esgar mais incomodado do que o dado à jogadora de futebol feminino, são inúmeras as situações que ao longo da história se relatam de beijos “roubados” durante a êxtase irracional de uma comemoração. Em maio de 2014, no meio dos festejos do Sevilha pela conquista da Liga Europa frente ao Benfica, o português Daniel Carriço deu um beijo na boca de Rakitic. Quando a Croácia ganhou à República da Irlanda por 3-1, em 2012, o selecionador foi beijado por um adepto. Em nenhuma situação, se rasgaram vestes. Em piores situações não se rasgaram vestes: segundo me contaram, quando o Porto foi campeão europeu um dos jogadores festejou um golo esfregando os órgãos genitais de um colega de equipa. Na final do campeonato do mundo, em dezembro passado, o guarda-redes argentino comemorou a vitória com gestos de obscenidade evidente, ao ponto de eu o ter começado a tratar por assador de carnes, sem desprimor para a profissão. O mundo do futebol é caracterizado por isso mesmo, não por beijos e carinhos, mas pelo desvario irracional, pelo sentido mais básico da existência, pela vivência boçal, povoada por impropérios, gestos obscenos, formas de comemoração primárias. É um mundo de homens, no sentido de ser o último reduto de afirmação de uma virilidade que se vai esbatendo em muitos outros domínios. Não é à toa que se costuma dizer, em tom de brincadeira, que o futebol é um desporto de senhores jogado por rufias, enquanto o rugby é um desporto de rufias jogado por senhores.
As mulheres reivindicaram um lugar nesse mundo de homens. Advogando uma igualdade que tem mais de degradante do que de salvaguarda da ineliminável dignidade do modo de ser feminino, agem como homens, sentam-se de pernas abertas, lançam os mesmos impropérios que nos ensinaram a não ouvir, porque há coisas que uma senhora não ouve, comemoram com o mesmo jeito tosco e boçal que antes ficava reservado aos homens rudes ou aos homens que, não o sendo, experimentavam nesse tempo e espaço do futebol, com toda a poesia que pode encerrar, a libertação catártica que a vida atribulada por vezes exige. Mesmo jogando mal, porque objetivamente um jogo de futebol feminino é uma lástima, tiveram o direito a perder parte do ser senhoras para se transformarem nesses machos que correm atrás de uma bola. Sem que ninguém contestasse. Não podem é, quando assumem que o seu espaço desejado é esse, querer ser tratadas como umas donzelas. O puritanismo progressista fica-lhes mal e soa a oportunismo de quem, afinal, se vê refém de uma agenda feminista radical e de uma ideologia de género que resolve fazer de um não-caso a afirmação rasteira de uma política duvidosa. Que os comportamento de Rubialles são inconvenientes ninguém duvida. Muito mais duvidosa, porém, é a bondade das acusações de uma jogadora que, num primeiro momento, desvalorizou o sucedido, brincou com o ocorrido e lutou para ser tratada como uma igual num mundo particular que tem as suas idiossincrasias, onde a deixaram entrar, sem lhe prometerem um tratamento diferenciado, porque afinal queria ser igual.
O problema da igualdade mal compreendida é esse mesmo: a incapacidade de tratar de forma diferente o que é manifestamente diferente. Mas quem luta por essa igualdade igualitária deve estar preparado para lidar com as consequências, sob pena de incorrer num venire contra factum proprium, que, no agora-caso em apreço, mais parece um oportunismo mal disfarçado de puritanismo. Se o presidente da federação espanhola de futebol tivesse beijado não consentidamente (e a falta de consentimento no não-caso atual é muito duvidosa, atenta a existência de formas de consentimento tácito) um homem, o drama seria o mesmo? Não sendo, tudo isto não passa de uma novela montada pela agenda woke do momento, dominada pelo pensamento gramsciano e muito oportuna para desviar a atenção relativamente aos verdadeiros problemas do mundo: por falar nisso, o PSOE, em Espanha, continua a negociar com terroristas para conseguir formar governo?
E já
agora, têm noção que, sempre que afirmam que a jogadora espanhola é uma pobre
vítima, estão a ofender todas as reais vítimas de violência sexual, não têm?
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