Por BARROSO da FONTE
O naufrágio mais mortal da Guerra do Ultramar
Dia 21 de Junho de 1969 ocorreu na
travessia do Rio Zambeze, em Moçambique, o naufrágio mais mortífero dos treze
anos de guerra nos diferentes espaços de expressão Portuguesa.
Incomparavelmente foi o maior morticínio no espaço Lusófono. Deram muito pouco
relevo os meios de informação nacionais e internacionais, antes do golpe de
Estado. E, depois dele, os militares cuidaram de descalçar a bota, a pensar mais
neles, contra os milicianos, do que nos assuntos do país real. Por outro lado,
deu-se menos valor aos factos do passado, do que aos do futuro. E, aos do
presente, cada classe cuidava de si. Na classe militar, o poder político
reinante perdeu a pouca força que tinha. O que se passara nos territórios
ultramarinos era assunto libertário. E aqueles problemas que dependiam,
essencialmente, das Forças Armadas, entraram no reino do «deixa andar». E as
Forças Armadas, que estavam em causa, por terem provocado o golpe, terão posto
em prática aquele ditado: «em tempo de
guerra, antes de tudo, tratam-se os vivos». Por outro lado, os Quartéis
militares passaram a centralizar todos os poderes: político, militar e
religioso. E tudo o que tinha a ver com a realidade do país ficou ao deus dará.
A forma como foi planeada a
travessia do Rio Zambeze é hoje descrita pelo alferes miliciano José António
Carvalho de Moura, Comandante de dois pelotões da Companhia 1798, do Batalhão
1935, como pouco cuidado pelo Quartel General, em sintonia com o Comando do
Sector, «sediado em Marrupa, que
chamou a si a responsabilidade das operações de resgate dos militares e das
viaturas afundadas no desastre. O major de Infantaria, Manuel da Cunha
Sardinha, era o Comandante do Sector que tinha sede em Marrupa. Vi-o naqueles
dias tenebrosos umas duas ou três vezes. Foi esse Comando que chamou a si toda
a responsabilidade das operações de resgate, quer dos militares, quer dos
civis, quer ainda as viaturas e bens pessoais que foram arrastados para sempre.
Os militares vinham de Lourenço Marques e seguiam para o norte. Iam sob o
comando de um Alferes nativo, chamado Óscar Rosário, que morreu no acidente. As
responsabilidades do acidente recaíam, segundo a opinião do alferes miliciano,
no dono do batelão, Amâncio Pedreira, que foi um dos 108 cadáveres.
Possivelmente os comandos transitários não conheciam a gravidade da travessia.
E, à falta de comandos superiores, que com a sua autoridade hierárquica, com a
sua experiência do local e com a incapacidade própria de quem chega
fragilizado, deram esse diabólico resultado. Não é preciso ir à Academia
Militar para compreender que "a teoria sem prática é um carro sem
eixo"».
Pelas razões expostas conclui-se
que, para tamanho obstáculo, não deveria ter sido um oficial subalterno a
comandar a companhia que saíra de Lourenço Marques, com diversas viaturas, com
armamento diverso e víveres suficientes para uma comissão de serviço de dois
anos. Do mesmo modo não deveria ser destacado outro oficial subalterno, embora quase
em fins de comissão de serviço, para proceder à elaboração do relatório. Tanto
mais que esse oficial miliciano, em fins de comissão serviço, iria - como foi -
desligar-se das funções militares, para cumprir o dever cívico, como
profissional de outra actividade, obviamente que, quem o destacou para tão
complexa missão, coartou a liberdade a esse oficial miliciano que, dali a
poucos meses, poderia ficar desligado para posteriores diligências sobre o
caso.
Fernando
Madaíl, jornalista de longo curso, teve a coragem de, na Revista do Correio
da Manhã, edição de 16 de junho de 2019, reabrir as portas que haviam
sido fechadas, não se sabe bem se por ordens da Pide, se da censura, para não
envolver os militares de carreira que tiveram a ver com essa monstruosidade
operacional. No ano em que esta reportagem foi largamente difundida, completava
meio século aquela hecatombe nacional. O jornalista que deu voz à opinião
publica, perguntava nessa reportagem: «porque
carregou o batelão peso excessivo? Foram os camionistas que influenciaram o
dono do batelão? e também do comandante da companhia que vinha transferida e
que pretendeu carregar o batelão com as 30 viaturas e 160 pessoas (militares+
tripulação)? e também do comandante do pelotão que anuiu às exigências dos camionistas?».
«O oficial miliciano Carvalho de
Moura que nem sequer fora informado dessa passagem pela zona militar de que ele
era responsável, foi incumbido de proceder à elaboração do relatório. É claro
que mais do que um relatório exaustivo, deveria ter sido o ministério do
Exército a ordenar ao Quartel-General de Moçambique que desencadeasse, em
cadeia, todos os meios humanos hierarquizados para que, no mais curto espaço de
tempo, aprontasse as conclusões.
Toda essa cadeia teórica se
reduziu a esse alferes que nada tinha a ver com a rotina diária e que, além
suas funções de zelar pela segurança da zona de Mopeia, teve de arcar com esse
processo do resgate, mais a audição de testemunhos, numa zona árida, sem os
apoios técnicos e humanos que abundam nas sedes da restante hierarquia
superior.»
Carvalho de Moura, volvidos 50
anos, foi agradavelmente surpreendido com o suplemento do Correio da Manhã, de 16 de Junho de 2019. Nunca mais teve qualquer
contacto, privado ou público, acerca do acidente e muito menos a ser convidado
pelo «rei das selfies» para receber um louvor ou uma medalha, que bem merecia.
Mas os milicianos, como este exemplo bem o demonstra, serviram de burros de
carga dos oficiais do quadro. O apoio que deram aos seus camaradas profissionais
de função, levou-os a odiá-los. O golpe de Estado nasceu, essencialmente, dessa
reivindicação dos militares de carreira.
Para fundamentar este artigo,
perguntei ao referido Alferes Miliciano Carvalho de Moura quem eram os
Comandante de Batalhão e de Companhia:
- O Comandante do meu Batalhão (BAT 1935) era o Ten. Cor.
António Joaquim Gouveia e o nome do capitão da minha Companhia (C.a 1798) era o
Capitão (do quadro) Álvaro Teixeira Soares. Mas atenção, que tanto um como o
outro não tiveram qualquer interferência no caso do acidente. Porque? Porque
foi o Quartel General e o Comando de Sector, sediado em Marrupa, que chamou a
si a responsabilidade das operações de resgate dos militares e das viaturas
afundadas no desastre. Era do Comando do Sector, o Major de Inf.ª Manuel da
Cunha Sardinha, que eu vi por lá uma ou duas
vezes.
- Algum deles foi louvado em relação ao desastre?
Os militares
vinham de Lourenço Marques e seguiam para o norte. Iam sob o comando dum
Alferes miliciano, de cor, chamado Óscar Rosário, que morreu no acidente. As
responsabilidades (culpas) do acidente recaiem, segundo a minha opinião, no
dono do batelão, Amâncio Pedreira, que morreu no acidente porque carregou o
batelão com carga excessiva, dos camionistas que influenciaram o dono do
batelão e o comandante da companhia a carregar o batelão com as 30 viaturas e
160 pessoas (militares + tripulação) e ainda do comandante do pelotão que anuiu
às exigências dos camionistas.
- Algum deles
foi louvado ou condecorado?
- «Nesses
dias agitados do resgate apenas vi por lá, duas ou três vezes, o Major Manuel
Sardinha. Pouco tempo depois de eu entregar o relatório acabámos a Comissão e
regressámos à Metrópole. Constou-me que o Major Sardinha foi o único louvado.
Quem por lá
andou, de visita, nessa altura, em que eu andava ocupado com o relatório, foi o
Governador Geral de Moçambique, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, Pai do Doutor
Marcelo Rebelo de Sousa. Faz, agora,53 anos, que esta triste odisseia ocorreu.»
Barroso da
Fonte
(Jornalista, outorgante do Movimento10 de Junho, ex-presidente da Associação de Combatentes do Ultramar)
Sem comentários:
Enviar um comentário