sexta-feira, 30 de outubro de 2020


 

Por Telmo Verdelho



PREFÁCIO

 

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA

DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (5)

 

10. O estouro ‒  estalo, estalido, o rebentar, estourejar ou estralejar da castanha ‒ tem também frequentes alusões na literatura portuguesa, especialmente no século XIX, em autores como Almeida Garrett, Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, para citar apenas nomes do andar superior.

Na corrente do discurso vão citando, em adequado contexto, a simples "frase vulgar, estalou uma castanha na boca" (Serões na Província), ou, em evocação comparativa, "dava um estouro como uma castanha" (Amor de perdição); ou, como alusão poética, "crebro estalo / Da assaltante castanha" (Dona Branca); ou, ainda como cenário de ambiente, "estalido das castanhas" (Prosas Bárbaras).

Até ao início do século XX, os exemplos são abundantes em outros autores e sobretudo na escrita dos jornais. Em todo o caso, referência especial é devida a Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), o famoso Filinto Elísio, de seu nome arcádico, que dedicou às castanhas e à sua estoural estrepitância uma assinalável distinção poética, na ode que começa "Coberto o campo está". Nela se afirma a vitoriosa vantagem das castanhas e de um bom magusto quando se confronta em concorrência com a poesia.

O poeta encontrava-se em Versalhes (nos longos anos do seu exílio em França) num dia de aniversário, triste, cheio de neve sem sol. Pedia às Musas que lhe acudissem para celebrar o dia de anos, mas perdeu o tempo e o rogo: as Musas, Apolo, os poetas Horácio e Catulo, Lésbia, as Bacantes, toda a corte poética estava ocupada a festejar em grande braseiro um "folgaz magusto", alegrado pelas "castanhas bombardeiras". As Musas não quiseram saber do poeta, trocaram os seus "minguados versos" pela folia do magusto e das suas "estourais castanhas":

 

ODE

 

Coberto o campo está, coberta a altura

Do soberbo Palácio

Com deslumbrante alvíssimo regelo:

Tremem com o Austro irado

De negros troncos desfolhados cumes.

O pardal, sem abrigo

Na desprovida neve entra, e mergulha

O bico, que agra fome

Aguçou na penúria, o Céu negreja,

E esquiva ao sol passagem,

Por entre espessos toldos. Muda a Terra,

Mudos os ares, prende

Nas engelhadas gentes ímpio Tédio

Que as ideias ensossa.

Fui-me ter com as Musas que acudissem

A celebrar meus anos.

Dei com elas, e Apolo a fazer corte

A um rúbido brasido,

Contando estalos do folgaz magusto.

Horácio andava aos pulos

Apanhando as castanhas bombardeiras:

Catulo em calças largas

Tirava da algibeira o seu cachimbo;

Dava quatro fumaças,

Com que o pardal de Lésbia sacudia

O pipillante bico.

Lésbia ralhava, Apolo ria, as Musas

Castanhas esbrugadas

Davam na palma ao velho Anacreonte,

E as tígridas Bacantes

Nos taboleiros de xarão traziam

Carcavelos, Chamusca,

Com que empurrar a entaladora buxa.

Perdi o tempo, e o rogo :

E já, sem desmanchar o regabofe,

Talia, com descoco,

Zombando do convite, me responde:

«Não deixaremos (certo!)

Tão ricco fôgo, e as estourais castanhas,

Por teus minguados versos.»

 

(Obras completas de Filinto Elísio, ed. de Fernando Moreira, vol. I, Braga, 1998, pp. 232-233)

 

11. Os epítetos tão hiperbólicos das "bombardeiras" e "estourais" castanhas inculcam a sensação excitante de espetáculo e de espanto, associados àquela surpreendente mirabolância explosiva, festivamente fantasiada. Podemos imaginar o bombardeio e o estourejar na coreografia das campanhas napoleónicas com toda a vivência ativa das emoções guerreiras daquele tempo. As castanhas eram então um alimento comum e quotidiano, um suporte básico da sobrevivência das populações, entravam no curso dos trabalhos e dias, e no fluir da história, com os seus conflitos militares ‒ tinham lugar privilegiado na alimentação dos soldados.

Entretanto passaram mais de 200 anos, mudaram-se hábitos e costumes, mudaram-se os gostos e até os lugares do pensamento, e foi-se evaporando a reminiscência das pequenas histórias. Os textos que mencionam alusões literárias da castanha e do castanheiro dão conta de um tempo passado, ainda fácil de imaginar, mas já agora irrepetível. A lembrança do seu consumo e cultivo pode ainda recuperar-se no registo meritório dos etnologistas e historiadores como Jorge Lage, que resgatam do esquecimento as pequenas e saudosas memórias da mesa e do campo que tantas vezes fizeram o ar sorrir, e deram aos nossos pais o gosto de viver.

Fiel à herança da memória antiga, recebida ainda na juventude, e aos valores e tradições que instituíam as nossas comunidades rurais, Jorge Lage teve a inteligência de quanto era importante a preservação desse espólio antigo e quase perdido da nossa civilização. Dedicou-se com solicitude e esclarecida indagação à recolha da memória ainda viva ou ainda recuperável; coligiu toda a informação "scibile" abrangendo a produção, o trânsito comercial e alimentar, e ainda todo o enquadramento cultural e metassocial.

Prosseguindo a sua demanda de salvaguarda cultural, promove agora (feliz ideia!) a publicação desta antologia testemunhal de depoimentos pessoais, ouvidos, vividos e recontados para celebrar o legado e fazer prova de herança. Vai ilustrada por nomes prestigiados de escritores e intelectuais. Tem verdade, tem arte, tem emoção, alguma nostalgia, bastante saudade e um justificado louvor aos nossos pais e à terra onde começámos a ver o mundo. Honra lhe seja feita!

 FIM

1 comentário:

  1. Para quem como eu imaginava que pouco havia que dizer sobre CASTANHAS, com este belo, engenhoso e eloquente prefácio/romance , "estourou-me a castanha na boca", mesmo.
    Que maravilha...

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