Por Telmo Verdelho
CELEBRANDO
A MEMÓRIA LITERÁRIA
DO
CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (5)
10. O estouro ‒ estalo, estalido, o rebentar, estourejar ou
estralejar da castanha ‒ tem também frequentes alusões na literatura
portuguesa, especialmente no século XIX, em autores como Almeida Garrett, Júlio
Dinis, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, para citar apenas nomes do andar
superior.
Na corrente do discurso
vão citando, em adequado contexto, a simples "frase vulgar, estalou uma
castanha na boca" (Serões na Província), ou, em evocação comparativa,
"dava um estouro como uma castanha" (Amor de perdição); ou, como
alusão poética, "crebro estalo / Da assaltante castanha" (Dona
Branca); ou, ainda como cenário de ambiente, "estalido das castanhas"
(Prosas Bárbaras).
Até ao início do século
XX, os exemplos são abundantes em outros autores e sobretudo na escrita dos
jornais. Em todo o caso, referência especial é devida a Francisco Manuel do
Nascimento (1734-1819), o famoso Filinto Elísio, de seu nome arcádico, que
dedicou às castanhas e à sua estoural estrepitância uma assinalável distinção
poética, na ode que começa "Coberto o campo está". Nela se afirma a
vitoriosa vantagem das castanhas e de um bom magusto quando se confronta em
concorrência com a poesia.
O poeta encontrava-se em
Versalhes (nos longos anos do seu exílio em França) num dia de aniversário,
triste, cheio de neve sem sol. Pedia às Musas que lhe acudissem para celebrar o
dia de anos, mas perdeu o tempo e o rogo: as Musas, Apolo, os poetas Horácio e
Catulo, Lésbia, as Bacantes, toda a corte poética estava ocupada a festejar em
grande braseiro um "folgaz magusto", alegrado pelas "castanhas
bombardeiras". As Musas não quiseram saber do poeta, trocaram os seus
"minguados versos" pela folia do magusto e das suas "estourais
castanhas":
ODE
Coberto o campo está,
coberta a altura
Do soberbo Palácio
Com deslumbrante
alvíssimo regelo:
Tremem com o Austro irado
De negros troncos
desfolhados cumes.
O pardal, sem abrigo
Na desprovida neve entra,
e mergulha
O bico, que agra fome
Aguçou na penúria, o Céu
negreja,
E esquiva ao sol
passagem,
Por entre espessos
toldos. Muda a Terra,
Mudos os ares, prende
Nas engelhadas gentes
ímpio Tédio
Que as ideias ensossa.
Fui-me ter com as Musas
que acudissem
A celebrar meus anos.
Dei com elas, e Apolo a
fazer corte
A um rúbido brasido,
Contando estalos do
folgaz magusto.
Horácio andava aos pulos
Apanhando as castanhas
bombardeiras:
Catulo em calças largas
Tirava da algibeira o seu
cachimbo;
Dava quatro fumaças,
Com que o pardal de
Lésbia sacudia
O pipillante bico.
Lésbia ralhava, Apolo
ria, as Musas
Castanhas esbrugadas
Davam na palma ao velho
Anacreonte,
E as tígridas Bacantes
Nos taboleiros de xarão
traziam
Carcavelos, Chamusca,
Com que empurrar a
entaladora buxa.
Perdi o tempo, e o rogo :
E já, sem desmanchar o
regabofe,
Talia, com descoco,
Zombando do convite, me
responde:
«Não deixaremos (certo!)
Tão ricco fôgo, e as
estourais castanhas,
Por teus minguados
versos.»
(Obras completas de
Filinto Elísio, ed. de Fernando Moreira, vol. I, Braga, 1998, pp. 232-233)
11. Os epítetos tão
hiperbólicos das "bombardeiras" e "estourais" castanhas
inculcam a sensação excitante de espetáculo e de espanto, associados àquela
surpreendente mirabolância explosiva, festivamente fantasiada. Podemos imaginar
o bombardeio e o estourejar na coreografia das campanhas napoleónicas com toda
a vivência ativa das emoções guerreiras daquele tempo. As castanhas eram então
um alimento comum e quotidiano, um suporte básico da sobrevivência das
populações, entravam no curso dos trabalhos e dias, e no fluir da história, com
os seus conflitos militares ‒ tinham lugar privilegiado na alimentação dos soldados.
Entretanto passaram mais
de 200 anos, mudaram-se hábitos e costumes, mudaram-se os gostos e até os
lugares do pensamento, e foi-se evaporando a reminiscência das pequenas
histórias. Os textos que mencionam alusões literárias da castanha e do castanheiro
dão conta de um tempo passado, ainda fácil de imaginar, mas já agora
irrepetível. A lembrança do seu consumo e cultivo pode ainda recuperar-se no
registo meritório dos etnologistas e historiadores como Jorge Lage, que
resgatam do esquecimento as pequenas e saudosas memórias da mesa e do campo que
tantas vezes fizeram o ar sorrir, e deram aos nossos pais o gosto de viver.
Fiel à herança da memória
antiga, recebida ainda na juventude, e aos valores e tradições que instituíam
as nossas comunidades rurais, Jorge Lage teve a inteligência de quanto era
importante a preservação desse espólio antigo e quase perdido da nossa
civilização. Dedicou-se com solicitude e esclarecida indagação à recolha da
memória ainda viva ou ainda recuperável; coligiu toda a informação
"scibile" abrangendo a produção, o trânsito comercial e alimentar, e
ainda todo o enquadramento cultural e metassocial.
Prosseguindo a sua
demanda de salvaguarda cultural, promove agora (feliz ideia!) a publicação
desta antologia testemunhal de depoimentos pessoais, ouvidos, vividos e
recontados para celebrar o legado e fazer prova de herança. Vai ilustrada por
nomes prestigiados de escritores e intelectuais. Tem verdade, tem arte, tem
emoção, alguma nostalgia, bastante saudade e um justificado louvor aos nossos
pais e à terra onde começámos a ver o mundo. Honra lhe seja feita!
Para quem como eu imaginava que pouco havia que dizer sobre CASTANHAS, com este belo, engenhoso e eloquente prefácio/romance , "estourou-me a castanha na boca", mesmo.
ResponderEliminarQue maravilha...