Este
texto, um dos mais bem fundamentados sobre este volume de Torga, passou-nos ao
lado. Não é para admirar. À época o país andava a pagar tranches mensais à Troyka, para cumprir com a dívida (78 mil
milhões!) que contraíra para pagar a BANCARROTA socialista, provocada pelos
bandos socráticos que se passeavam impunes pela geografia lusitana, no regabofe
da roubalheira nas empresas do Estado.
Só
hoje o vimos numa pesquisa online. Aqui vai:
28
de Dezembro de 2014
António
Valdemar- Ípsilon- jornal Público
Miguel
Torga tem o livro com o título Portugal, mas quase toda a sua obra refere-se
página a página, a Portugal. Na poesia, na prosa, no teatro, nos sucessivos
volumes do Diário.
No
entanto, Jacinto do Prado Coelho (fazendo uma analogia com Unamuno) emitiu a opinião
de que o Portugal de Torga é um Portugal inventado e que na obra de Torga há um
contínuo sentimento contra os portugueses. Será melhor citar: “A sua obra é ele
e a Natureza, ele e Portugal, um Portugal que, em parte, o fez, mas que, em
parte, ele inventou” (...) Mais: “a sua obra é ele contra a natureza; ele
contra os portugueses, numa luta incessante que resulta dum invencível amor a
Portugal”. (Ao Contrário de Penélope - pág. 272).
Ed. Dom Quixote |
Discordo
de ambas as opiniões. O Portugal de Torga é um Portugal percorrido e vivido
palmo a palmo. Desde Trás-os-Montes ao Alentejo, desde o Minho ao Algarve.
Desde os Açores à Madeira. Também inclui as antigas colónias de África, o
território de Macau e, sobretudo, o Brasil onde passou alguns anos da
adolescência e nunca mais esqueceu Minas Gerais e os sinais luminosos do
Cruzeiro do Sul.
A
posição crítica de Torga em relação a Portugal e a que não falta, por vezes, a
contundência polémica, é, em relação, a um outro Portugal para uso caseiro e
para lançar no estrangeiro. Era o Portugal do salazarismo, confecionado a
partir de António Ferro, no Secretariado da Propaganda Nacional. Torga
orienta-se pelo Guia de Raul Proença, uma notável obra coletiva que Luís da
Câmara Reys considerou “o maior livro de amor e devoção a Portugal depois de Os
Lusíadas.”
São Martinho da Anta, onde Miguel Torga
nasceu, que se manteve sempre ligado e em cujo cemitério quis ficar sepultado
surge, na maior parte das vezes, como referência. Dir-se-ia um paraíso
original, marcado pelas energias cósmicas e os fortes vínculos ancestrais. Da
terra e dos homens.
Torga
nunca se afastou das raízes do coração agreste de Trás-os-Montes, “léguas e
léguas de chão raivoso, eriçado, queimado por um sol de fogo ou por um frio de
neve”. Mais ainda: “o reino maravilhoso (...) dos homens inteiros, saibrosos,
altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra.
Edição Francesa |
Permaneceu
quase sempre neste universo envolvido pela luz das serras do Larouco, do
Barroso e da Padrela, agarrado aos penhascos alterosos, aos fustes imponentes
dos carvalhos, aos cumes das montanhas cobertas de neve, aos dourados outonais
dos castanheiros, à púrpura escaldante dos vinhedos nas encostas.
Mas
não se fixou apenas, no Reino Maravilhoso, percorreu o País de Norte a Sul.
Interrogou, no Minho e nas Beiras, muralhas medievais e torres carregadas de
história e de lenda. Caminhou através da lezíria ribatejana inundada de sol ou
envolvida de névoa e de chuva, com touros, cavalos e campinhos; avançou até às
vilas brancas do Alentejo, de ruas empedradas e janelas com grades, pequenos
mundos na extensão da planície em que o vermelho em brasa dos fins de tarde
enche de espanto as copas dos sobreiros recortadas na distância.
Prendeu-se,
ao litoral para nos embrenhar na faina da pesca e na agitação das lotas.
Demorou-se, nas praias selvagens, perante um mar transparente, por vezes viril,
e o apelo dos largos horizontes. “Mar! Enganosa sereia rouca e triste!? Foste
tu quem nos veio namorar. E foste tu depois que nos traíste”. Sagres constituiu
para Miguel Torga um diálogo com os navegadores e as descobertas, a aventura e
a coragem, a apoteose e a fatalidade.
Miguel
Torga sobretudo no livro Portugal e nos sucessivos tomos do Diário estabelece
comparações, dilucida influências, observa e analisa o que escreveram
portugueses e estrangeiros. Caracteriza as diferenças que singularizam as
regiões: a montanha, a planície e a presença do mar. Detém-se no litoral e no
interior, na cidade e no campo; em pormenores relativos à alimentação, ao
vestuário, aos divertimentos, a tudo quanto reflete o meio, o clima, os
interesses e necessidades nas várias zonas do País. Examina as tradições
universitárias e as práticas religiosas, em que se concilia o sagrado e o
profano.
Miguel
Torga identifica e reencontra o povo mais enamorado da Europa. Povo que
inventou o puro amor e consagrou, na literatura e na arte, o que morre de amor.
Outro sentimento primordial é a saudade. Coexiste com a tendência para o
sebastianismo, o mito do encoberto. Buscar a esperança por entre nevoeiros
cerrados.
Tudo
isto se traduz na melancolia, na angústia latente, na bondade resignada e,
paradoxalmente, em surtos de alegria, que no entusiasmo da dança se converte na
vertigem em movimento, em canto orgíaco. Miguel Torga aborda o complexo de
inferioridade, muitas vezes, notório, entre os portugueses: a atitude de
submissão e imitação de tudo o que vem de fora, enquanto se desdenham as
iniciativas e realizações dos próprios portugueses. Daí, também, as insólitas
manifestações de orgulho nacional, as rivalidades locais, a maledicência
insensata e devastadora.
Estes
e outros defeitos não anulam muitas qualidades demonstradas, por exemplo, no
comportamento assumido na diáspora. Também aprofunda as razões que determinaram
a expansão na África, no Brasil e no Oriente; o sentimento de solidariedade
humana, para com indivíduos radicados nas mais diferentes partes do mundo.
Destaca a componente afetiva, a cordialidade e simpatia do português no mundo,
que permitiram o encontro de padrões de vida, de civilização e de cultura, a
fraternidade entre os povos um conjunto de fatores de identidade que merecem
ser propostos ao conhecimento e reflexão dos próprios portugueses.
Miguel
Torga galga os limites físicos do território:” A minha pátria cívica acaba em
Barca de Alva: mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirenéus”. “Há no meu
peito, observa noutro passo do Diário, angústias que necessitam da avidez de
Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do levante e do luar andaluz. Sou, pela
graça da vida, peninsular”.
Mas
não é só peninsular, insere no contexto da Ibéria, Fernão de Magalhães, com
quem se identifica na ansiedade perscrutadora dos oceanos, sob o signo das
terras achadas: “Ter um destino é não caber no berço / onde o corpo nasceu / É
transpor as fronteiras uma a uma / E morrer sem nenhuma, / às lançadas à bruma
/ a cuidar que a ilusão é que venceu”.
Trasmontano,
português, ibérico e cidadão do mundo, Miguel Torga atingiu a dimensão
universal através do confronto com a terra, a aliança da Geografia com a
História e a Antropologia. De tudo o que faz parte do ar que se respira, entra
no sangue que circula nas veias e trás o plasma da herança rural, das tradições
ancestrais e outros vínculos da memória coletiva.
Jornalista,
membro da Academia das Ciências
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