O QUE É AMAR UM PAÍS
Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à
Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades. Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro
formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro
intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido, recorda
justamente «como pesa na água (...) a raiz de uma ilha». Gostaria de iniciar
este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar a raiz
dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se tornou
uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É uma bela tradição da nossa República esta de convidar
um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a
comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os
dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu
país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que
dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território
continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico
nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que
está apenas a cuidar da sua parte - a tratar do seu trabalho, da sua família; a
cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança - mas é importante
que se recorde que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o
todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se
responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer
que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar
a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro
oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela
não viveria sem as raízes.
Camões e a arte do desconfinamento
Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o
poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à
distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o
seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário
mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo
nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é
um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência
oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo,
que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva
por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos
a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos
definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da
grande literatura - àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão
daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra,
não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites
da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A
quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do
pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou
Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre
da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a
ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder
modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício
deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e
participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz
respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos
modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma
inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época
que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca
no interior turbulento de uma mudança de época.
Que a crise nos encontre unidos
Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os
Lusíadas, que celebra a chegada da expedição portuguesa à Índia. Os
marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e
passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia vibrante a Vasco da Gama.
O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente
composição em antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do
sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise,
provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em
descrever, com impressiva força plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem
sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem a sua própria
complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os
Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de
Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de
Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver
tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio,
horas de calmaria e travessias borrascosas. A história não é um continuum,
mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a
salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à
atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.
Mas à observação realística que Camões faz da tempestade,
gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que
proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores
do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as
fúrias indignadas!/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem
viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas
ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu
aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões recorda-nos,
assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes,
que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência
da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos
chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar
com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está
sobre este mundo.
O que é amar um país
O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em
concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar
um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a
inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de
cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte:
um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois
amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que
permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais.
Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro
da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São
dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas,
explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o
nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos
em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre - e que essa seja vivida
como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores
ocasionais. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de
que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas
também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que
precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista
tempestade global que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas
consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como
uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo
todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto
em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que,
como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os
Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a
oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.
Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar
numa parábola. Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a
seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o
primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por
exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os
ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos,
identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e
cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à
morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder
alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido
documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma
pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua
fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo
a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a
comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos
capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração
histórica, espiritual e ética.
É interessante escutar o que diz a etimologia latina da
palavra comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus,
ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade
nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim
por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa
é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há
missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto,
reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns
dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum,
ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade
desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa
humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social,
quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando,
com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece
daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a multidão dos nossos
concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de desemprego, de
diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome.
Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto pandémico, foi,
por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização dos imigrantes com
pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos, imenso, porque se
trata de ajudar a construir raízes. E essas não se improvisam: são lentas,
requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da
sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do cineasta Pedro Costa, «Vitalina
Varela», onde se diz a alguém que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui
em Portugal não há nada para ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se
apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes.
Fortalecer o pacto intergeracional
Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre
nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos
a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e
desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e
jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos,
crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de
uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar
ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os
outros.
A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como
comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa
da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais vítimas da
pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas lágrimas uma
dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois o luto de
uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar firmemente
a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma diminuição do seu
valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será,
pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e
a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse
como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis
evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que
foi para mim a primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as
histórias que ela contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram
coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte
do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta
estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o
soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto intergeracional é também olhar
seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens
adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa década, vê
abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens
adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma
experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os
obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de
lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem.
Implementar um novo pacto ambiental
A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo
pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e
climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar
progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência
dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão. Num dos textos
centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Sii’, o Papa
Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa
humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está
tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de
senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética
da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais,
mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas
do nosso quotidiano.
Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou
um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem.
Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior
tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa
apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de
mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem - e
efetivamente são - corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a
multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal
é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como
um grande amor. Uma viagem assim - explica Maria Gabriela Llansol, uma das
vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na
fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor»
que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.
Intervenção do Presidente da
Comissão Organizadora das
Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades Portuguesas 2020, Cardeal D. José
Tolentino de Mendonça
Mosteiro dos Jerónimos,
Lisboa, 10 de junho de 2020
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