António Magalhães
Técnico aeroespacial, Sheffield
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O percurso da sua vida fantástica não poderia ter começado de maneira mais humilde, mas quando o humilde desbrava com a coragem e a bravura de um herói, as dificuldades do dia a dia, e transforma as fraquezas em força, mas acima de tudo, não se deixa absorver pela ignorância, a humildade é por vezes a fundação dos seus valores humanos que à medida com que vai edificando a sua vida, fazem dele uma pessoa com um valor inestimável.
Foram esses princípios
humildes que herdou dos seus avós, os alicerces que soube depois, à medida que
construi a sua vida, provar o quão forte e sólido os mais básicos valores da
educação e respeito pelos outros seres humanos, como sendo o caminho para a
construção de um grande homem, um grande ser humano, ao serviço da literatura e
das causas nobríssimas que através dela, de maneira sublime e única,
provocativa e inteligente, soube criar histórias que absorveram os seus
leitores, ao mesmo tempo que, em alguns casos foram acordando consciências e
noutros avivando.
Passou uma década desde o
dia em que deixou definitivamente o corpo que lhe serviu de habitação durante
oitenta e sete anos, no entendimento que o comum do mortal tem em relação ao
tempo e à sua extensão. E partiu. Sabemos que partiu porque aquele corpo que
outrora se movera em gestos e ações das mais variadas moções ficou ali
estendido, inerte, gélido, assustadoramente parado. Que outra coisa poderia ter
acontecido se não, o seu verdadeiro ser ter partido para uma viagem numa outra
dimensão, uma outra vida.
E depois, da parte que me toca, cheguei a
pensar que o Mestre seria eterno. E não falo isto da maneira que normalmente se
fala. De maneira figurativa, como que não tendo outra alternativa do que
aceitar os factos que pela sua natureza não podem ser mudados, e por isso se
arranjam estas frases de consolação, que afinal não são se não uma outra
maneira de atenuar a dor da realidade.
Movido talvez pela
sensação de um prazer imensurável, aquando da leitura do Memorial do Convento,
e logo de seguida a Jangada de Pedra, a satisfação da qual continuo a ter
dificuldades de descrever por não encontrar no vocabulário as palavras que
talvez não existam ainda, e que as que me estão ao dispor não fazem justiça a
essa sensação que, nos momentos de autêntico mergulho nessa mesma leitura,
quase como que numa espécie de transe, me fazem abandonar o corpo à cadeira ou
ao sofá onde me sento, para que o verdadeiro “eu” embarque no mundo que o
Mestre criou e descreve com tanta destreza, com tanta magia, foram sempre o
motivo de quase de maneira inconsciente tomar como garantido a eternidade
física do Mestre.
E, o dia de enfrentar a
dura realidade chegou a 18 de junho de 2010.
Aos 87 anos de uma vida
intensa e rica de uma grandeza intelectual, o Mestre fechou os olhos para nunca
mais os abrir.
Nas semanas que se
seguiram à sua partida mergulhei numa espécie de fúria que alimentei com a
leitura dos seus livros, alguns, dois para ser exato, que eram releitura.
Precisamente o Memorial do Convento e a Jangada de Pedra. Depois deliciei-me
com o Homem Duplicado, As Intermitências da Morte, o Ensaio Sobre a Cegueira e
o Ensaio sobre a Lucidez, o Evangelho segundo Jesus Cristo, Todos os Nomes,
Levantado de Chão, Caim, A Caverna.
Foram meses
exclusivamente dedicados à leitura do grande Mestre, como se, através dessa
fúria e fome de devorar as suas obras o pudesse trazer de volta à vida. E
consegui-o, mas tal como muitos outros que com o tempo se vão rendendo às duras
realidades da vida, apenas o fiz de maneira figurativa.
Depois à medida que me
fui conformando com essa realidade da sua partida definitiva, fui dando
oportunidade a outros grandes autores, entre eles, António Lobo Antunes,
Vergílio Ferreira e Gabriel Garcia Márquez.
Mas a verdade é que não
consigo ficar muito tempo longe daquilo que me continua a dar a ilusão de que o
Mestre continua vivo. Os seus livros. Por isso, entre as intermitências da
leitura lá fui encaixando, Claraboia, Cadernos de Lanzarote, e Alabardas,
alabardas.
Não sou nenhum expert da
obra de Saramago. Sou sim um apaixonado pela sua escrita e pela magia que ela
provoca em mim quando a leio. E isso basta-me, porque é a única maneira que eu
tenho de, não compreendendo na sua verdadeira totalidade, pelo menos aceitar
este mistério de quem está, e depois deixa simplesmente de estar.
Era essa também uma das
mágoas do Mestre em relação à morte.
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