Patrícia Pacheco - OBSERVADOR
Directora do Serviço de
Infecciologia do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca
A mensagem que o Governo,
a DGS e a comunicação social estão a passar é falaciosa e pode conduzir-nos a
um desastre de saúde pública.
A economia do país falou
mais alto. E eu acho bem. O país não pode morrer em confinamento. Posto isto,
há que dizer, muito claramente, que a epidemia não está controlada. Há que
assumir que temos gravíssimos problemas na região de Lisboa e Vale do Tejo e
que outras regiões se seguirão se não atuarmos todos, entidades e
individualmente, de forma assertiva e responsável.
A mensagem que o Governo,
a DGS e a comunicação social estão a passar é falaciosa e pode conduzir-nos a
um desastre de saúde pública. Os números publicados são acompanhados de um
discurso de desvalorização dos mesmos. São números crescentes porque “estamos a
testar mais” e a “maioria das pessoas são assintomáticas e sem gravidade”. Os
internamentos nos hospitais mantêm-se estáveis e os cuidados intensivos têm
apenas “65% da ocupação”. Tudo aparentemente tranquilo. Chama-se a isto “com a
verdade me enganas”.
E qual é a verdade de
quem não está sentado num gabinete fresquinho a analisar indicadores? E qual é
a verdade de quem está na linha da frente num hospital fustigado com esta
epidemia? A minha verdade enquanto médica infeciologista no Hospital Fernando
Fonseca, vulgo Amadora-Sintra? A minha verdade que é bastante mais cinzenta do
que as cores do arco-íris “tudo vai ficar bem”.
Ora vejamos:
1 - “Estamos a testar
mais” – verdade, corretíssimo. Falta dizer que não testaram o suficiente
durante os meses da Março e Abril quando a epidemia nesta área era controlável.
Os centros da comunidade abriram praticamente sem testes. Os contactos ou casos
suspeitos não eram testados de forma atempada e perdeu-se uma oportunidade de
ouro para controlar a epidemia. Estamos a testar mais, sim, porque o acesso aos
testes na comunidade deixou de ser condicionado e porque se deu também aos
médicos de família a possibilidade de o fazerem e com critérios clínicos muito
menos estanques dos que existiam inicialmente.
2 - “A maioria das
pessoas são assintomáticas ou têm sintomas ligeiros” – verdade, corretíssimo. O
que não se diz é que muitas destas pessoas vivem em condições sociais e de
habitabilidade muito difíceis: transcrevo uma das anotações destes doentes que
recorrem ao Serviço de Urgência do hospital com sintomas ligeiros, que fazem o
teste, têm alta e aos quais damos posteriormente o resultado por via telefónica
– “Informada do resultado do teste. Refere melhoria da sintomatologia e sem
sinais de alarme. Reside com mais 6 pessoas em casa de 3 divisões. Num dos
quartos está a utente com mais duas pessoas. Sem condições de habitabilidade
para cumprir isolamento até nova indicação do Centro de Saúde/Delegado de
Saúde. Realizados ensinos sobre medidas de prevenção e controlo de infeção.
Explicados sinais de alarme e contacto em S.O.S.” Transcrevo o que se passa
diariamente, dezenas de vezes. E qual a resposta atempada das autoridades de
Saúde ou das estruturas da comunidade? Qual a resposta social de alojamento
para estas pessoas? Raramente as temos. Entretanto, ficaremos com mais pessoas
infetadas nestes núcleos habitacionais. E assim sucessivamente. Algumas pessoas
serão idosas ou com comorbilidades e serão internadas no hospital, onde algumas
virão a falecer. Outras irão continuar a propagar a infeção na comunidade,
porque não vão cumprir o isolamento e nem sequer a isso serão obrigadas. Ainda
hoje, a resposta da Saúde 24 para pessoas que tenham contacto próximo com
outros infetados é apenas, “caso não tenha sintomas não tem de fazer o teste e
pode continuar a trabalhar”, ignorando o papel de transmissão dos
assintomáticos.
3 - “Os internamentos nos
hospitais mantêm-se estáveis” – verdade, certíssimo. Não dizem, contudo, que
foram ativadas nos últimos dias inúmeras camas adicionais nesta região,
nomeadamente pela transferência de doentes para outros hospitais, como o
Hospital de Abrantes, o Hospital Militar, o Hospital Ortopédico de Santa Ana,
entre outros, drenando casos COVID-19 dos hospitais da Grande Lisboa, para que
os hospitais centrais possam continuar a dar resposta. Os hospitais da Grande
Lisboa foram colocados novamente em estado de resposta emergente a COVID-19,
com suspensão de atividade cirúrgica programada não urgente. Isto reflete a
severidade da situação ao momento atual e que compromete desde já a resposta
hospitalar de cuidados a doentes não COVID-19. Contudo, na comunicação social
tudo se encontra tranquilo, os internamentos continuam estáveis.
4 - Os cuidados
intensivos estão a 65% da sua capacidade – verdade, certíssimo. Se
contabilizarmos apenas o número de ventiladores e de camas. Aumentou-se muito,
fez-se um enorme investimento em equipamentos. Mas os ventiladores não
funcionam sozinhos e não há, de forma crónica, recursos humanos suficientes nos
hospitais e muito menos com a formação adequada. Assim, de cada vez que, aos
dias de hoje, tentamos transferir um doente ventilado, é o cabo dos trabalhos –
nenhum hospital desta região tem vagas.
A formação de médicos e enfermeiros nesta área é morosa e não se resolve
com aquisições de ventiladores. Ignorar esta premissa é o mesmo que me colocar
a mim, médica infeciologista, a fazer uma neurocirurgia. Posso ter os
instrumentos, mas não saberei o que fazer com eles.
Falta nesta fase, e de
uma forma muito clara, que o poder político assuma o problema e evite as
mensagens dúbias: temos uma epidemia descontrolada nesta região e outras
regiões do país poderão igualmente vir a estar em perigo. Todos somos capazes
de o entender, se assim for enunciado.
Explique-se que a decisão
de reabrir os centros comerciais, as ligações aéreas, os jogos de futebol e o
turismo nesta área do país foi apenas e somente porque a economia está em
risco. Explique-se que apesar de existirem medidas que visam minimizar a
transmissão de infeção esta opção de abertura é arriscada à luz dos números e
do índice de transmissibilidade nesta região. Torne-se pública a estratégia de
resposta de saúde (comunidade e hospitalar) que está efetivamente a ser
desenvolvida na Grande Lisboa.
A negação da evidência
tem tido cada vez mais adeptos que publicamente vêm defender que tudo isto foi
um exagero e um engano e assistimos, diariamente, a comportamentos da população
que refletem esta sensação de segurança.
Na nossa frente não está o arco-íris por mais coloridas e sorridentes
que sejam as conferências de imprensa da DGS e Ministério da Saúde.
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