ANTÓNIO MAGALHÃES |
A lembrança tinha saído
da cabeça do próprio ministro. Era, por qualquer lado que se examinasse, uma
ideia feliz, senão perfeita, tanto no que se referia aos aspetos meramente
sanitários do caso como às suas implicações sociais e aos seus derivados
políticos. Enquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem
adequada, a etologia do mal-branco, como, graças à imaginação de um assessor
imaginativo, a mal sonante cegueira passaria a ser designada, enquanto para ele
não fosse encontrado o tratamento e a cura, e quiçá uma vacina que prevenisse o
aparecimento de casos futuros, todas as pessoas que cegaram, e também as que
com elas tivessem estado em contacto físico ou em proximidade direta, seriam
recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios, os quais a
verificarem-se, se multiplicariam mais ou menos segundo o que matematicamente é
costume denominar-se progressão por quociente.
José Saramago – Ensaio
Sobre a Cegueira – página 57
Não foi por acaso que
José Saramago recebeu, em 1998, o prémio Nobel da literatura, muito embora,
para meu grande espanto, algumas bocas da constante discórdia, poucas apesar de
tudo há que o admitir, viessem dizer que a academia só atribuíra o prémio ao
grande Mestre, para cumprir calendário, pois nesse ano, por motivos que nem
merecem a pena serem uma vez mais descritos por soarem a uma espessa, forte e
infundada teoria de conspiração, nesse ano não tinha a quem mais atribuir o
prestigiado prémio. Como se, no planeta a quem chamamos terra não houvesse
excelentes candidatos ao prémio, alguns deles inclusive em Portugal.
Mas, livros como O Ano da
Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, O Homem Duplicado, O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, Memorial do Convento, Ensaio sobre a Lucidez, e o mais
apropriado à situação que o mundo vive no momento, a pandemia provocada pelo
chamado Covid 19, Ensaio Sobre a Cegueira, são obras que revelam um profundo e
inteligente conhecimento que o autor tinha daquilo que é a condição humana, na
sua maneira de reagir e agir nas mais diversas situações para as quais, em
comunidade ou individualmente é constantemente posta à prova.
O Mestre sabia como
ninguém, na sua infindável inteligência, astuta, criativa, imaginativa, por
vezes sarcástica e afiada imaginação, descrever aquilo que nos define como
humanos nos nossos comportamentos e ações.
Quando a cegueira,
branca, como um mar de leite, se foi propagando de pessoa para pessoa sobre a
forma de contágio, rapidamente se instalou o caos entre a população, e até
mesmo o governo, que, malgrado a designação, não é senão um tentáculo dessa
mesma população, com poderes dominadores e por vezes subjugadores sobre a
mesma, mas que em termos de epidemia, não está imune ao contágio, e nisso, nos
tempos que correm temos que admitir que por parte do agente contaminador
demonstra uma das duas considerações. A primeira, que, ou é muito estúpido e
não sabe fazer distinções, sobretudo as que ao poder dizem respeito, ou se
regra por princípios inabaláveis de igualdade e sem qualquer tipo de
discriminações e vai como que desenfreado a saltar de pessoa para pessoa
contaminando o maior número que lhe é possível. Não importa o tipo de epidemia,
ou pandemia que ameaça a população, se branca, como que um mar de leite que nos
entrasse olhos adentro, se, da mesma invisível maneira se instala nos canais
respiratórios para a partir daí começar a fazer os estragos a que se propôs
fazer desde o princípio.
Em o Ensaio Sobre a
Cegueira, à medida que a epidemia se propaga depressa o caos se instala entre
afetados e não afetados e muito depressa também, começam a surgir e a serem
expostos os instintos mais animalescos do ser humano, vindo ao de cima
características como a ganância, crueldade, maldade, pânico, vergonha,
dominação, subjugação etc. mas também carinho, compaixão, coragem,
persistência, e acima de tudo esperança, estes sentimentos tão bem
representados na personagem da mulher do médico no romance de José Saramago.
Não é só porque eu sou um
apaixonado pela escrita do grande Mestre, mas porque como ninguém ele sabia pôr
em palavras tão reais aquilo que somos como raça-humana.
Na corrente pandemia que
está a assolar o mundo, temos muito a aprender com o romance que o Mestre nos
escreveu, sobretudo na personagem da mulher do médico, onde, apesar do caos
instalado reside a única réstia de esperança.
No fundo, o que José
Saramago nos quis mostrar, é que apesar das nossas vicissitudes e
incongruências, apenas sobreviremos como espécie, se trabalharmos em grupo, num
todo, onde todos somos um e um somos todos.
Não será com toda a
certeza nada diferente nesta crise do corona vírus.
Nas palavras do grande
poeta Luís de Camões, mudam-se os tempos mudam-se as vontades, e nessa
perspetiva não nos será apropriado dizer que é tempo de darmos as mãos, mas,
aparte do que o gesto em termos físicos representa na corrente situação que
assola o mundo, o conceito que ele representa mantem-se o mesmo, é tempo de nos
unirmos e de pensarmos que (tenha calma, disse o médico, numa epidemia não há
culpados, todos são vítimas. – Ensaio Sobre a Cegueira, página 69) das nossas
ações pode depender a vida de milhares, se não milhões de pessoas, muitas delas
em situações vulneráveis.
Chegou o momento de agir
com responsabilidade.
Chegou o momento em que
deixo de ser eu, para passarmos a ser…” Nós”
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