sábado, 4 de janeiro de 2020

Um vinho de se tirar o chapéu




Jorge Lage
Logo de manhã encontrar no Facebook um naco de prosa soberba é como beber um cálice de vinho generoso do que já se não encontra.
Tive o privilégio de ser aluno de Lituratura Portuguesa no Colégio da Boavista, em Vila Real, nos idos da segunda metade da década de sessenta do século passado.
Bom professor?
Um professor de se lhe tirar o chapéu, como o vinho fino enmelaçado nas aduelas de uma velha pipa abandonada. Qual livro, qual quê! Sentava-se em cima da secretária e escorria a sabedoria literária que o embebia como melaço dos favos depois de crestada a colmeia. E nós escrevíamos nos cadernos, páginas mais páginas destes copos de saber do grande mestre.
Aquilo é que era um Professor! Um Professor e um Escritor que até despertava uma pontinha de inveja do seu amigo, Miguel Torga.
Porque o António Cabral escrevia e pronto, já está. Nada de insónias no põe vírgula ou tira vírgula numa frase ou num verso.
Isto saltou-me da tampa do sarrão por a nossa amiga, Maria da Graça, de Mondim e a mourejar em Lisboa, fazer hoje anos, ao que sei. Desejar-lhe feliz aniversário e agradecer-lhe por todas as suas ajudas e a muitos escritores transmontanos.
Com a vossa licença e Fernando Vilela, cunhado do António Cabral, deixo-vos aqui esta pérola literária de António Cabral.



Benditas aduelas

Na Consoada bebi um vinho esplêndido em casa do meu cunhado. Vinho de uma pipa encontrada num cardenho esbarrondado e ensilveirado do Rio Torto. O vinho da pipa estava quase no fundo, mas as borras do bom vinho do Porto são milagrosas. A pipa encheram-na com vinho novo e, passado um ano, deu esta maravilha (...).

António Cabral

Uvas do vale do rio Torto, afluente do rio Douro, na sua margem sul, bem próximo do Pinhão - coração do Douro. Quando cheias chegam as dornas, os sentires afloram pelos mais distintos comentários:

- Este sim!
- Cheira-se-lhe a alma!
- Boa pomada há-de dar, digo-vos eu!

Ali permaneceu a pipa, por muitos anos, no canto da antiga adega. Esgotou-se no tempo, definhando-se o vinho na quantidade, encorpando-se e enaltecendo-se, contudo, de sabores cada vez mais intensos. Humilhada no desprezo a que foi votada, a pipa desembebedada deixou vencer-se pela idade e esbarrondou-se. Mesmo assim, ali se ficou a borra velha, encantada, protegida por meia dúzia de aduelas.
Benditas aduelas pelo esforço e dedicação!
Reconhecidos os herdeiros, deitaram em casamento novos sabores, mais jovens e claros, sucedendo-se festas, brindes e renovados encantamentos. Tentações irresistíveis por sucessivas gerações, conversas intensas, demoradas, às vezes desmedidas e a generosidade do vinho ali se retém, acrescentada!

Na foto, pipas em miniatura efetuadas pelo saudoso Sr. Manuel Dias da Silva, tanoeiro, de Vilarinho de S. Romão, concelho de Sabrosa.

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