sábado, 23 de novembro de 2019

Vemo-nos na Face Oculta da Lua


António Magalhães

(colunista  no Bom Dia Luxemburgo)

Não venho para dizer adeus. Venho apenas dizer que se de mim não mais se ouvir falar, não há razões para apoquentação, é porque fui andando, e quem sabe…com essa esperança me vou de que nos reencontraremos na Face Oculta da Lua (…)

Grande parte do texto já estava escrito. Mais ou menos com estas palavras, mas certamente numa outra ordem. Mesmo assim, talvez de uma ou outra maneira viesse desaguar à mesma intenção de que, ao escrever nos papelinhos que à socapa vou usando para registar as ideias, muitas delas que não chegam nunca a ter o desenvolvimento prometido, o conteúdo seja o mesmo.
No entanto, os papelinhos ficaram no bolso das calças, e essas eu meti-as para lavar deixando-os lá dentro. Voltaram em pedacinhos húmidos e as letras foram lavadas com a sujidade que as calças ganharam para que precisassem de ir à máquina de lavar.
Evito de me queixar, de manifestar a minha raiva quando estas coisas me acontecem pois se até aqui ouvia dizerem-me que sou um cabeça no ar, agora, que a idade vai galopando mais depressa do que eu mesmo esperaria, dizem que estou a ficar velho. Por isso, depois de me certificar de que não tinha ninguém à volta que pudesse testemunhar a minha raiva, dei uns pontapés na máquina, mesmo assim com pouca força, porque se até aqui era um leviano, agora que velho, não sou estúpido, preciso da máquina para outras lavagens e o dinheiro não sobeja ao ponto de para satisfazer a minha fúria me dê ao luxo de comprar outra.
Ah…e já agora, este desabafo não estava nos papelinhos que se desfizeram em mil bocadinhos quando foram à máquina de lavar, esquecidos no bolso de trás das calças. Este desabafo é a consequência desse esquecimento…e da constatação de que afinal, nada é o que eu pensava há muitos anos, que fosse, e tudo é afinal o que me haviam dito que seria.
E agora sim, mesmo contrariado, vamos tentar buscar aqui e ali as palavras que estavam nos papelinhos agora desfeitos em mil bocadinhos, já sem letras, essas lavadas com a sujidade das calças, e mesmo sabendo que não irão ser usadas na mesma sequência, as letras e as palavras que delas se formam, não as calças, o conteúdo será o mesmo.
Ontem, deitado na solidão do meu quarto, em silêncio, a dar conta dos barulhos que esse silêncio contém, descansando a cabeça com a nuca apoiada nas mãos entrelaçadas, pois também para isso foram feitos os espaços entre os dedos, vi o teu rosto projetado no teto.
De facto, vi mais do que só o teu rosto. Vi aquele teu jeito único de caminhar com as mãos entrelaçadas ao fundo das costas, dando-te aquele ar sábio de quem não só já passou por muito e desse muito, muito aprendeu, como também, nesse mesmo jeito de caminhar estão muitas das nossas conversas, algumas das quais, os teus conselhos, os teus cuidados, as tuas angústias para com a minha vida.
Vejo aquele teu jeito característico quando por vezes paravas no desenrolar da conversa, e muitas vezes irritadíssimo a dizeres-me…” Parece impossível…nem o orçamento geral do estado para te manter esse maldito (…)
E o que vinha a seguir a isto e o porquê de me dizeres isto, é assunto nosso, porque do que da consequência de me teres dito isto, sabemos bem o quanto sofreste, tu e eu.
Outras vezes, quase pensativo, como quem mede as palavras certas, palavras que cedo ou tarde irão fazer efeito, a dares conselhos, ou apenas aquelas longas conversas que tínhamos, quais dois filósofos a filosofar sobre a vida, as suas incongruências e por vezes os seus mistérios. Como daquela vez que falamos sobre a morte, encostados ao muro oposto à entrada de casa e eu a dizer-te que achava que um ser humano só se depara com o conhecimento completo do que em vida não entende, quando morre, quando o espírito se liberta do corpo que o mantem aprisionado por vícios, prazeres e sofrimentos. E vejo-te com as mãos entrelaçados ao fundo das costas, ar pensativo às minhas palavras, relutante em concordar comigo, mas ao mesmo tempo indeciso se afinal eu não teria razão. Sabê-lo-ás tu agora, sabê-lo-ei eu quando chegar a minha vez.
Vejo tudo isto no teto do meu quarto e mesmo quando fecho os olhos consigo ver através deles fechados, porque tudo isto és tu nas minhas saudades, e estas saudades são também este sofrimento que está sempre dentro de mim, no meu pensamento.
Vejo aquele dia que me ficou gravado a ferro e fogo no pensamento, no coração, naquilo que são por vezes também estas saudades de que já falamos, aquele dia em que de longe, escondido para que não me visses, te vi curvar perante os frutos da tua lavra, como gostavas de lhe chamar, e em todos lhes tocaste com as tuas mãos pálidas, tão pálidas como a tua cara que apesar do sofrimento provocado por aquele filho da puta daquele cancro que te levou sem que acabássemos as nossas conversas filosóficas acerca da vida, deixava transparecer uma ternura que era apesar de tudo sabedoria, porque, isso eu percebi logo, sabias que te estavas a despedir do mundo quase com uma serenidade de quem apesar de tudo se conformou de que era chegado o tempo. O teu tempo.
E só para que saibas, nem sempre fico assim quando penso em ti. Quero dizer…nem sempre me comovo ao ponto de ficar assim com os olhos inundados em lágrimas. São mais as vezes que penso em ti de sorriso a decorar uma face que apesar da tristeza, parece feliz. São mais as vezes que me vem à memória momentos bons, os momentos que escolho quando apesar de tudo eu me portava exatamente da maneira que dizias condizer verdadeiramente com o meu eu, que eu teimosamente parecia fazer de propósito, parecia insistir em ser diferente, só para te chatear, para te tirar o sono, para te fazer viver dias de angústia, que apesar de tudo, eram para mim um inferno no qual eu me havia metido como que voluntariamente e do qual não sabia, não sabia mesmo, como me libertar.
De qualquer maneira, as palavras, as tais palavras das quais algumas já aqui mencionamos, não cedo, mas também não tarde de mais, sempre acabaram por produzir os seus efeitos.
No entanto, continuo inconformado, e em defesa de atitudes e factos em tempos passados, sempre te quero dizer que não me assustam as irresponsabilidades próprias da juventude, mas irrita-me à brava a ignorância de quem teima em viver uma vida sem nada aprender, nem sequer no decorrer dos anos e da experiência que deles se deveria viver.
Ando farto de uns quantos energúmenos que tendo eles também um buraco no cu, pensam que só o dos outros é que cheira mal. Poderás constatar por esta frase o quão irritado ando eu, porque ambos sabemos que até gostarias do texto, até lhe apontarias com uma mal disfarçada ponta de orgulho algumas qualidades que se calhar só tu as verias, mas não aprovarias esta frase e o seu conteúdo, que ou eu muito me engano ou não o aprovarias por ser de certa maneira deselegante.
Mas que hei de eu fazer? Irrita-me que o mundo esteja repleto de gente desatenta, gente que perde imenso tempo com futilidades que em nada edificam ou dignificam o mundo e a sua existência da qual todos temos uma quota parte de responsabilidades, cedo, ou tarde que seja (…)
Sabes…os homens grandes, aqueles que estendidos no caixão têm a mesma postura de dignidade que tiveram em vida, esses já vão desaparecendo, como tu, e à medida que partem parece não terem herdeiros de uma mesma forma digna de lutar, e os que a isso atentam, os crápulas inventaram outras formas de assediar o povo a entretenimentos que os mantêm surdos e cegos às realidades do dia a dia. E isso, isso irrita-me porque enquanto a idiotice se entrega a atividades inânias, por vezes rindo a bandeiras despregadas, ou apenas a deixarem que o mundo desfaleça à sua volta sem que que disso se apercebam, sinto-me como um louco a fazer um discurso no deserto.
Sinto que é tempo para mim para que vá andando.
Não venho para dizer adeus. Venho apenas dizer que se de mim não mais se ouvir falar, não há razões para apoquentação, é porque fui andando, e quem sabe…com essa esperança me vou de que nos reencontraremos na Face Oculta da Lua (…)

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