terça-feira, 12 de novembro de 2019

Agora conto eu – «Calar, calo-me, mas seis pés são!»



JORGE  LAGE
As gentes da aldeia da minha mulher são de um humor invulgar e quase tudo serve para aliviar a rudeza e dureza da vida serrana, nas Terras de Monforte de Rio Livre. Quando me casei, no Outono do longínquo de 1972, fui recebido de braços abertos pelo concelho vicinal de anciãos com assento no Café do Tótó (Gordo). Foi como se fosse um dos seus pares de sempre, sentindo-me muito à vontade entre eles. O areópago era o Café, onde todos do grupo procurávamos as últimas novidades e um pouco de convívio. Isto para só referir alguns dos que apareciam mais no Café do Tóto, principal centro de onde irradiava muita novidade. Em «Agora conto eu», escolhi uma história de saias e dois protagonistas, pai e filho. A vida no Portugal rural não era (nem é) fácil para qualquer um, por isso, havia estratégias para suavizar as asperezas da labuta diária e as contrariedades. Por exemplo, quando o «Barbeiro de Sevilha» soprava gélido dos lados da serra da Sanábria as pessoas abrigavam-se o melhor que podiam. Quando o céu ameaçava deixar desabar o seu frígido manto branco recolhia-se da melhor lenha junto da lareira. Quando as preocupações, trabalhos e canseiras atiravam com um de cangalhas, o melhor era enganar a vida com um pouco de amena conversa e de humor. Quase tudo servia para um viver positivo, de humor, de galhofa e de risota. Na aldeia, virada a norte e a nascente, apesar de extensa em território, as notícias e acontecimentos escorregavam por ela como skis em gelo vidrado. As noites de Inverno eram longas e quem não tinha companhia para lhe aquecer os pés ou para uma suadela de joelhos, mais duras se tornavam. Muitas vezes, os bons momentos aconteciam com alguma promiscuidade. Conta-se (contavam os antigos) que uma dessas noites o Geadas, que vivia com o filho, terá combinado com uma amiga, também falha de amores, passarem a noite em sua casa. Só tinha uma cama onde dormia pai e filho. A estratégia do Geadas passava por deixar adormecer o filho, receber a amiga na cama e do seu lado. Dito de outra forma, o filho deitava-se do lado da parede e o pai do outro lado. Aliás, nos pregos da noite e escuro como o breu e ainda sem a luz eléctrica, nada se via. Numa dessas noites mais acaloradas de corpos, o Geadas ficou no meio, com o filho de um lado e do outro a fugaz amiga de alcofa. Quando o filho parecia dormir a sono solto começava debaixo dos cobertores, o trabalhinho a dois, Geadas e amiga. Num momento de grande entusiasmo o rapazola acorda e sub-repticiamente com um seu pé começa a contar os pés que estão na tarimba e encontra seis, com os seus. Sabendo pela sua matemática primária que os dois apenas tinham quatro pés, havia mais alguém dentro da cama e deixou-o em pânico, porque na cabeça dele algo estaria errado. O filho diz: - Meu pai, estão seis pés na cama! O pai nega: - não estão nada! Cala-te e dorme! O filho invectiva de novo o pai: - Olhe que eu contei seis pés na cama, meu pai? O pai que tinha outros desejos e perante a inoportunidade da questão e já agastado sentencia-lhe: - Tu estás maluco ou quê? Qual seis pés rapaz? Não estás bom da cabeça! Está calado e dorme antes que te dê uns murros!... E para não azedar mais o pai que podia desferir-lhe alguma tapona bem puxada ou murro mal-humorado. O rapaz, desconsolado e desacreditado, mostra a sua convicção o pai: - Calar, calo-me, meu pai, mas seis pés são! Fez-se silêncio e, na manhã seguinte, o rapaz não resistiu a contar o sucedido a um amigo. A notícia espalhou-se pela aldeia como fogo, em abrasador e ventoso dia estival. Primeiro, tentou-se descobrir quem era a coruja da noite e depois ironizou-se e zombou-se. Tal o impacto e convicção desta constatação que, hoje, perante evidências irrefutáveis, as pessoas de Lebução lembram este novo dito matemático e amoroso. Dito incorporado no riquíssimo reportório imaterial e jocoso da aldeia: - Calar, calo-me, mas seis pés são!

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