António Magalhães (em Sheffield) |
Chamo-lhe Romano porque o seu verdadeiro nome em inglês me
permite dar-lhe esta volta, mas também porque vou falar dele provavelmente
cortando-lhe na casaca, e para minimizar o pecado, faz-me bem à consciência não
mencionar o seu verdadeiro nome.
Às vezes chamo-lhe Romano di Roma, e propositadamente carrego
no r porque sei por experiência própria que sendo ele inglês a estratégia de o
quebrar pelo sorriso, ou às vezes uma muito mal disfarçada, gargalhada, é
estratégia que funciona quase sempre. Romano chama-lhe um “funny accent”,
(pronuncia engraçada), mas isto porque ao carregar no r o faço com a ponta da
língua e com a letra a bater nos lábios fazendo-os quase tremer. E depois…bem,
depois é das poucas vezes que se lhe vê uma espécie de sorriso a atravessar as
faces, o que para ele deve ser um ato penoso pois vai contra a sua atitude
perante a vida que é resmungar o tempo todo.
Romano é meu colega de trabalho. Não somos amigos, mas também
não seria certo dizer que somos inimigos. Trabalhamos juntos na mesma secção e
apesar de ele que veio para a secção onde eu trabalho há mais de seis anos e
ele apenas há quatro ou cinco meses, dizer que noutros tempos dirigia a secção,
que tem mais de trinta anos de experiência a trabalhar e a interpretar desenhos
de engenharia aeroespacial, eu pude constatar desde o primeiro dia que as suas
habilidades no ramo são apenas conversa fiada, (e cada um diz aquilo que lhe
aprouver) e como se isso ainda não bastasse tem a rara capacidade de
transformar um trabalho simples onde a maior habilidade ainda é usar senso
comum, num problema de difícil solução. Pelo menos de solução demorada e
trabalhosa. E eu que o diga porque muitas vezes, a pedido do meu “supervisor”
tenho que retificar o que ele danifica por ser de compreensão lenta.
Não somos, como de maneira mais sincera possível já o
afirmei, inimigos, mas duvido que algum dia possamos ser grandes amigos, muito
embora, dando a vida as suas voltas, não seria muito sábio fazer afirmações que
não se podem dar por adquiridas. Mas reserva-se-me o direito da dúvida, e a
avaliar pelas consequências do que acabei por contar, ou seja, sempre que tenho
que emendar ou retificar um trabalho seu, a maior parte das vezes fico tão
chateado que, nas alturas em que ele de forma devaneada continua a achar que
sim, que é muito bom e competente no que faz, só me apetece enfiar-lhe o braço
pelas goelas abaixo e virá-lo do avesso, ou, porque às vezes gostaria de ser
mau como as cobras, arrancar-lhe os fígados e fritá-los em óleo queimado para
logo depois o obrigar a comê-los. Irra que o homem, irrita-me mesmo.
Mas não faço nada disso. Tenho ca os meus defeitos e um dos
que será ainda o maior é o defeito de não guardar rancor a ninguém, e porque um
defeito às vezes é como um mal, nunca vem só, tenho o defeito de ter uma
paciência de Jó, e o de achar que ninguém é totalmente bom, bem como ninguém é
totalmente mau também.
Prova disso é quando temos a capacidade de ser pacientes com
aqueles que nos irritam à brava, e por vezes como consequência disso, nos
intervalos em que respiram de uma resmunguice para a outra, às vezes lá lhes
sai um momento mais vulnerável, que apesar de tão escasso e tão momentâneo, é
de facto a revelação do seu verdadeiro caracter, que por motivos que muitas
vezes nem eles compreendem muito bem, o tentam mascarar com essa quase
constante má disposição que faz deles pessoas pouco agradáveis de se ter por
perto.
Hoje o Romano inspirou-me a escrever este texto.
Não me apeteceu arrancar-lhe os fígados pela boca, não me
apeteceu virá-lo do avesso, não desejei que lhe nascesse um pinheiro no cu com
os ramos virados para fora, enfim, hoje o Romano extraiu de mim um sentimento
de uma certa calorosa compaixão, de ternura até.
Não vou aos detalhes da história para a contar porque o
texto, ao contrário do que era minha vontade quando o iniciei, já vai mais
longo do que eram as minhas previsões quando o escrevi como uma espécie de
rascunho no meu cérebro.
Por isso precisamos apenas de saber que é uma sexta feira de
manhã, facto que por si só desperta uma certa calórica atmosfera de bem estar,
de uma harmoniosa vontade de ser mais participativo em conversas de ocasião pois a mente,
subconsciente se quisermos ser mais precisos, sente, mesmo que nisso o
pensamento não esteja focado no momento, a sensação fim de semana que se
avizinha.
Sem afirmações que se possam fundamentar nos factos baseados
em estudos comprovadamente conclusivos às afirmações que se farão de seguida,
ainda nos parâmetros deste mesmo parágrafo, arrisco-me a afirmar que se
produzem mais conversas amenas, banais e cordiais, entre colegas de trabalho,
numa sexta feira, do que em qualquer outro dia da semana. Facto que nos é dado
a revelar numa dessas conversas de sexta feira a confissão à qual chegou de uma
em uma, Romano, porque isto de conversas amenas, banais e cordiais, é como
tirar cerejas de um cesto cheio delas, atrás de umas vem outras enganchadas à
boleia, e é nessa sequência que me fala de uma operação delicada feita ao
coração já lá vão cerca de seis anos segundo as suas contas. “Tendo em conta o
tipo de operação e o que ela envolveu” – disse-me, “os médicos disseram-me que
nestes casos a pessoa pode viver mais uns quinze anos. Por isso, sei que não
sou homem para ter uma vida muito longa. Seis anos já passaram (…)
Disse-o como se estivesse resignadamente conformado com o
facto, muito embora todos saibamos que o que se vê em nós por fora raramente condiz com o que se passa por dentro,
onde os sentimentos, os do medo incluídos, se escondem até ao momento que serão
desmascarados pelos acontecimentos que os extraem ca para fora.
Depois desta espécie de confissão do Romano, desabafo talvez,
por uns segundos fiquei como todos aqueles que são apanhados numa conversa de
um assunto tão delicado como este, sem saber o que dizer.
Mas muito repentinamente, sem grande tempo para pensar, ou
mesmo para denotar-se em mim que pensava, que fabricava umas quantas palavras
de consolo muito à pressa, se calhar muito malcozidas até, disse-lhe muito
calmamente e ao mesmo tempo muito firmemente.
“Romano di Roma, (só aqui desmanchei logo qualquer intenção
por parte dele em se por à defesa, não recetivo) deixa-me contar-te a história
do tio Alberto em Portugal. O tio Alberto foi submetido a uma delicadíssima
operação, e segundo as previsões dos médicos, se ele resistisse à operação,
independentemente do sucesso da mesma, as suas esperanças de vida não eram nada
animadoras. Eu era puto pequeno e lembro-me muito bem das lágrimas que riscavam
a cara da tia Ana sempre que ela, numa aflição de condoer o coração, contava
aos meus pais a situação delicadíssima em que se encontrava o Tio Alberto, seu
marido. Era imensurável a dor, mas mais do que isso era a incerteza que mais
minava essa mesma dor. Como te disse eu era puto quando isso se passou. Tenho
54 anos e o tio Alberto, fintando todas as previsões dos médicos, e todas as
esperanças daqueles que se esqueceram que a maior esperança partia precisamente
dele mesmo, o tio Alberto ultrapassou já os noventa anos de idade, e o mais
admirável de tudo isto, inesperável na opinião de muitos, o tio Alberto com
mais de noventa anos continua fresco como uma alface…”
Romano ficou a olhar-me por uns segundos com um brilho nos
olhos, como se o sorriso que se lhe despoletou nas faces fizesse reflexo nesse
brilho, e de maneira rara de quem de repente foi chapinhado com salpicos de
esperança disse…
“Bem…isso é muito reconfortante…”
E para atestar a veracidade da história fui ao meu telemóvel
procurar no Facebook a fotografia do tio Alberto. (Para alguma coisa de útil o
Facebook há de servir).
O resmungão miserável de outros dias, de repente, cantarolou
canções toda a manhã, sorriu e atreveu com umas pequenas graçolas
para outros colegas de trabalho que o olhavam surpresos, incrédulos e acima de
tudo desconfiados.
Afinal o que o urso precisava era que lhe tirassem o espinho
que tinha espetado na pata e que era o causador de toda a sua devastadora
fúria. O alívio da dor, quando saiu o espinho da pata, despertaria em si não só
um sentimento de agradecida paixão, bem como uma benevolência que haveria de
transformar o perigoso e selvagem animal numa criatura pacífica e agradavelmente
agradecida.
Sabe-se lá quais os espinhos que com a dor que nos provocam,
nos fazem por vezes ser tão maus e tão desagradáveis…
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