sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Romano di Roma e a História do Tio Alberto


António Magalhães
(em Sheffield)
Romano, ao contrário de que possa soar pelo nome, não é Italiano, é Inglês.
Chamo-lhe Romano porque o seu verdadeiro nome em inglês me permite dar-lhe esta volta, mas também porque vou falar dele provavelmente cortando-lhe na casaca, e para minimizar o pecado, faz-me bem à consciência não mencionar o seu verdadeiro nome.
Às vezes chamo-lhe Romano di Roma, e propositadamente carrego no r porque sei por experiência própria que sendo ele inglês a estratégia de o quebrar pelo sorriso, ou às vezes uma muito mal disfarçada, gargalhada, é estratégia que funciona quase sempre. Romano chama-lhe um “funny accent”, (pronuncia engraçada), mas isto porque ao carregar no r o faço com a ponta da língua e com a letra a bater nos lábios fazendo-os quase tremer. E depois…bem, depois é das poucas vezes que se lhe vê uma espécie de sorriso a atravessar as faces, o que para ele deve ser um ato penoso pois vai contra a sua atitude perante a vida que é resmungar o tempo todo.
Romano é meu colega de trabalho. Não somos amigos, mas também não seria certo dizer que somos inimigos. Trabalhamos juntos na mesma secção e apesar de ele que veio para a secção onde eu trabalho há mais de seis anos e ele apenas há quatro ou cinco meses, dizer que noutros tempos dirigia a secção, que tem mais de trinta anos de experiência a trabalhar e a interpretar desenhos de engenharia aeroespacial, eu pude constatar desde o primeiro dia que as suas habilidades no ramo são apenas conversa fiada, (e cada um diz aquilo que lhe aprouver) e como se isso ainda não bastasse tem a rara capacidade de transformar um trabalho simples onde a maior habilidade ainda é usar senso comum, num problema de difícil solução. Pelo menos de solução demorada e trabalhosa. E eu que o diga porque muitas vezes, a pedido do meu “supervisor” tenho que retificar o que ele danifica por ser de compreensão lenta.
Não somos, como de maneira mais sincera possível já o afirmei, inimigos, mas duvido que algum dia possamos ser grandes amigos, muito embora, dando a vida as suas voltas, não seria muito sábio fazer afirmações que não se podem dar por adquiridas. Mas reserva-se-me o direito da dúvida, e a avaliar pelas consequências do que acabei por contar, ou seja, sempre que tenho que emendar ou retificar um trabalho seu, a maior parte das vezes fico tão chateado que, nas alturas em que ele de forma devaneada continua a achar que sim, que é muito bom e competente no que faz, só me apetece enfiar-lhe o braço pelas goelas abaixo e virá-lo do avesso, ou, porque às vezes gostaria de ser mau como as cobras, arrancar-lhe os fígados e fritá-los em óleo queimado para logo depois o obrigar a comê-los. Irra que o homem, irrita-me mesmo.
Mas não faço nada disso. Tenho ca os meus defeitos e um dos que será ainda o maior é o defeito de não guardar rancor a ninguém, e porque um defeito às vezes é como um mal, nunca vem só, tenho o defeito de ter uma paciência de Jó, e o de achar que ninguém é totalmente bom, bem como ninguém é totalmente mau também.
Prova disso é quando temos a capacidade de ser pacientes com aqueles que nos irritam à brava, e por vezes como consequência disso, nos intervalos em que respiram de uma resmunguice para a outra, às vezes lá lhes sai um momento mais vulnerável, que apesar de tão escasso e tão momentâneo, é de facto a revelação do seu verdadeiro caracter, que por motivos que muitas vezes nem eles compreendem muito bem, o tentam mascarar com essa quase constante má disposição que faz deles pessoas pouco agradáveis de se ter por perto.
Hoje o Romano inspirou-me a escrever este texto.
Não me apeteceu arrancar-lhe os fígados pela boca, não me apeteceu virá-lo do avesso, não desejei que lhe nascesse um pinheiro no cu com os ramos virados para fora, enfim, hoje o Romano extraiu de mim um sentimento de uma certa calorosa compaixão, de ternura até.
Não vou aos detalhes da história para a contar porque o texto, ao contrário do que era minha vontade quando o iniciei, já vai mais longo do que eram as minhas previsões quando o escrevi como uma espécie de rascunho no meu cérebro.
Por isso precisamos apenas de saber que é uma sexta feira de manhã, facto que por si só desperta uma certa calórica atmosfera de bem estar, de uma harmoniosa vontade de ser mais participativo  em conversas de ocasião pois a mente, subconsciente se quisermos ser mais precisos, sente, mesmo que nisso o pensamento não esteja focado no momento, a sensação fim de semana que se avizinha.
Sem afirmações que se possam fundamentar nos factos baseados em estudos comprovadamente conclusivos às afirmações que se farão de seguida, ainda nos parâmetros deste mesmo parágrafo, arrisco-me a afirmar que se produzem mais conversas amenas, banais e cordiais, entre colegas de trabalho, numa sexta feira, do que em qualquer outro dia da semana. Facto que nos é dado a revelar numa dessas conversas de sexta feira a confissão à qual chegou de uma em uma, Romano, porque isto de conversas amenas, banais e cordiais, é como tirar cerejas de um cesto cheio delas, atrás de umas vem outras enganchadas à boleia, e é nessa sequência que me fala de uma operação delicada feita ao coração já lá vão cerca de seis anos segundo as suas contas. “Tendo em conta o tipo de operação e o que ela envolveu” – disse-me, “os médicos disseram-me que nestes casos a pessoa pode viver mais uns quinze anos. Por isso, sei que não sou homem para ter uma vida muito longa. Seis anos já passaram (…)
Disse-o como se estivesse resignadamente conformado com o facto, muito embora todos saibamos que o que se vê em nós por fora raramente condiz com o que se passa por dentro, onde os sentimentos, os do medo incluídos, se escondem até ao momento que serão desmascarados pelos acontecimentos que os extraem ca para fora.
Depois desta espécie de confissão do Romano, desabafo talvez, por uns segundos fiquei como todos aqueles que são apanhados numa conversa de um assunto tão delicado como este, sem saber o que dizer.
Mas muito repentinamente, sem grande tempo para pensar, ou mesmo para denotar-se em mim que pensava, que fabricava umas quantas palavras de consolo muito à pressa, se calhar muito malcozidas até, disse-lhe muito calmamente e ao mesmo tempo muito firmemente.
“Romano di Roma, (só aqui desmanchei logo qualquer intenção por parte dele em se por à defesa, não recetivo) deixa-me contar-te a história do tio Alberto em Portugal. O tio Alberto foi submetido a uma delicadíssima operação, e segundo as previsões dos médicos, se ele resistisse à operação, independentemente do sucesso da mesma, as suas esperanças de vida não eram nada animadoras. Eu era puto pequeno e lembro-me muito bem das lágrimas que riscavam a cara da tia Ana sempre que ela, numa aflição de condoer o coração, contava aos meus pais a situação delicadíssima em que se encontrava o Tio Alberto, seu marido. Era imensurável a dor, mas mais do que isso era a incerteza que mais minava essa mesma dor. Como te disse eu era puto quando isso se passou. Tenho 54 anos e o tio Alberto, fintando todas as previsões dos médicos, e todas as esperanças daqueles que se esqueceram que a maior esperança partia precisamente dele mesmo, o tio Alberto ultrapassou já os noventa anos de idade, e o mais admirável de tudo isto, inesperável na opinião de muitos, o tio Alberto com mais de noventa anos continua fresco como uma alface…”
Romano ficou a olhar-me por uns segundos com um brilho nos olhos, como se o sorriso que se lhe despoletou nas faces fizesse reflexo nesse brilho, e de maneira rara de quem de repente foi chapinhado com salpicos de esperança disse…
“Bem…isso é muito reconfortante…”
E para atestar a veracidade da história fui ao meu telemóvel procurar no Facebook a fotografia do tio Alberto. (Para alguma coisa de útil o Facebook há de servir).
O resmungão miserável de outros dias, de repente, cantarolou canções toda a manhã, sorriu e atreveu com umas pequenas graçolas para outros colegas de trabalho que o olhavam surpresos, incrédulos e acima de tudo desconfiados.
Afinal o que o urso precisava era que lhe tirassem o espinho que tinha espetado na pata e que era o causador de toda a sua devastadora fúria. O alívio da dor, quando saiu o espinho da pata, despertaria em si não só um sentimento de agradecida paixão, bem como uma benevolência que haveria de transformar o perigoso e selvagem animal numa criatura pacífica e agradavelmente agradecida.
Sabe-se lá quais os espinhos que com a dor que nos provocam, nos fazem por vezes ser tão maus e tão desagradáveis…

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