![]() |
| BARROSO da FONTE Jornal de Matosinhos |
Fiz-me autor em
prosa tosca, escrevendo sobre os Usos e costumes de Barroso, em 1972, em
parceria com o Padre Fontes, o tal clérigo que afrontou o bispo da sua diocese
e que se imortalizou, para os Barrosões, com os polémicos congressos de
medicina popular de Vilar de Perdizes e com a noite das bruxas, de todas as
sextas-feiras treze, no concelho de Montalegre. Foram assim iniciados diversos
dos muitos e bons autores de Trás-os-Montes e beirões que beberam a etnografia,
a etnologia e o misticismo pagão, à mistura com o leite materno, quando era
mamado, nos montes, pelas crianças que, ainda jovens, iam e vinham, ao colo das
mães pastoras.
Tenho reparado que
a maior parte da centena e meia de membros da Academia de Letras de
Trás-os-Montes (2010) se iniciou na escrita com esta modalidade literária que
se bebeu com o leite materno, à mistura com os anhinhos que nasciam no monte.
O linguarejar da
pastorícia fez falta aos copinhos de leite enlatado que favorecia, em altura,
os esqueletos urbanos, ocos por dentro e macios por fora, como os eucaliptos
que secam os terrenos à sua volta. O mérito dos certificados de garantia eram
esses filhos da má alimentação que cresciam pouco, mas pesavam muito, nas
balanças da faina agrícola, porque os caldos de couve tronchuda, com sabor a fumeiro, tinham mais vitaminas e
equilíbrio calorífico do que o marisco que deixa cheiros incandescentes, quando
arrotado, por excesso de consumo.
Esta caldeirada
linguística da pesca etnográfica que os filhos do povo assimilam, por troca com
a fome dos manjares urbanos, inspira os primeiros ensaios dos criativos, sejam
escritores, pintores ou artesãos. Mesmo em tempo de neologismos de todas as
origens e funções sociais.

Nestas 132 páginas
de «Lagoaça, loisas e outras coisas» José Veríssimo, que se formou e formatou
no curso científico-humanístico de Ciências Sociais e Humanas, condensa e
define séculos de vivências humanas, tão úteis ao saber-viver e ao saber-fazer,
como o cientista que abre o corpo humano para, com o bisturi, extrair um nódulo
cancerígeno ou outro que entre por bem e saia por mal. Esta saga de nascer
entre montes e entre bichos, selvagens ou domésticos, destinados uns e outros a
viver e a conviver em existências paralelas, obriga uns e outros, animais e
pessoas, a entenderem-se como se todos fossem inteligentes e humanos.
Chilreios, onomatopeias, grunhidos, noturnos ou diurnos, obrigam à cosmologia
da sã convivência do universo que nos acolhe.
Na nota do autor,
ele próprio se explica acerca desta coletânea que resume, dissecando mais de
uma centena de vocábulos regionalistas, ou expressões idiomáticas que
caracterizam as populações do país periférico. Todas as vivências humanas
desses sítios, que não cheiram à hipocrisia da cidade, se enrolam e se
propagam, de geração em geração, numa espécie de resistência à teimosia do
poder político que ignora esse património que não paga impostos, mas constitui
privilégio dos deserdados do orçamento geral do Estado.
Tudo «porque os
testemunhos dos que viveram antes de nós são um legado de frutos amadurecidos,
sobejamente importantes para que se percam no tempo das nossas memórias». Esta
recolha lexical de Lagoaça, Loisas e
Outras Coisas «não é mais do que, ainda que modesta, prova de partes
dispersas de todo um conjunto de factos, saberes e tradições milenares que
identificam esta comunidade do nordeste transmontano».
No sábio prefácio
que Armando Palavras teceu no tear da ruralidade Lagoense, invocando «a
última missão americana da Apollo 8, em fins de 1968, à medida em que os
astronautas se afastavam da Terra, tinham dificuldade em registar tudo através
da câmara fotográfica. O Centro de Houston pediu-lhes que fizessem uma
descrição detalhada, o que fizeram através da palavra falada que ficou
registada para a História». Este relato servirá para enquadrar em muitas
situações, pela força da sua riqueza semântica. Mas introduzo-a aqui pela
oportunidade simbólica que este conjunto etnográfico representa para o Nordeste
Transmontano que, a passos largos, caminha para a desertificação. Não sendo
registadas, em obras como esta, a diversidade e importância deste glossário,
tudo se perderá.
Restará o recurso
à Língua Mirandesa que corre os mesmos riscos se não se acautelarem enquanto
por cá residirem agentes culturais como José Veríssimo.
Barroso da Fonte
(In Jornal de
Matosinhos, 5 de Julho de 2019, pág. 2)



Sem comentários:
Enviar um comentário