António Magalhães |
Tenho
sempre esta mesma imagem no pensamento…um banco de jardim, fixo a um chão de
terra pelo peso do ferro com que foi feito. Pintado de verde. Não sei porquê,
mas…pintado de verde. Não sei porquê, de ferro. Podia ser de madeira
resistente. Pintado em castanho. Mas é de ferro, e é pintado em verde escuro.
No
chão, uma espécie de lençol de folhas secas, caídas das árvores circundantes,
como uma manhã de outono que assim despertasse.
De
frente ao banco e ao chão que as folhas caídas aveludou, um lago tão tranquilo
como tranquila é toda a atmosfera que os olhos do meu pensamento podem ver.
Sentado
no banco, o senhor José.
A
sua postura espalha uma serenidade que me leva a pensar que tudo à sua volta se
adapta, se suaviza à sua maneira de ser e de estar.
Sentados
no mesmo banco estão mais três pessoas. Conheço-as. Quero dizer…reconheço-as.
Do
seu lado esquerdo o padre Bartolomeu de Gusmão. Não tem que enganar.
Reconheço-o não só pela batina de padre, mas também pelo seu ar tão científico,
tão ávido de procurar e querer saber mais do que lhe foi apenas ensinado. Tão
curioso, tão insatisfeito com os padrões estabelecidos, desenhados para servir
as ovelhas mais ordeiras, menos, se não absolutamente nada, desobedientes. Do
lado direito, Blimunda Sete Luas e logo a seguir a ela, Baltasar Sete Sois.
Blimunda
Sete Luas que de olhos bem abertos na barriga da mãe, aprendeu os desígnios do
amor e do pecado, e que melhor do que ninguém soube compreender o mundo com a
peculiar naturalidade de quem tem dons únicos de ver as pessoas por dentro.
Pergunto-me no silêncio do meu pensamento, se Blimunda continua, agora que se
juntou ao seu criador, o senhor José, a recolher vontades, ou se, por vontade
dele, agora que está num outro mundo fora da imaginação humana, se dedica a
outros alentos. Está numa animada conversa com o senhor José, que de maneira
serena vai sorrindo e conversando com o grupo.
Reconheço
Baltasar Sete Sois, não porque irradie uma luz que brilhe tanto como o sol, mas
porque em semelhança com um Deus que provavelmente é também maneta, usa um
gancho que substitui a mão esquerda e que durante muito tempo lhe serviu tão a
jeito no açougue onde com agilidade de quem é novo manobrou tão bem e com tanta
destreza as carnes que lhe foram dando o sustento, muito embora, em segredo,
fosse a construção da Passarola que o padre Bartolomeu de Gusmão lhe confiara,
a sua principal ocupação.
Tenho
sempre esta mesma imagem no pensamento. E, no entanto, parte dela sei que me
surgiu num sonho, e uma outra parte, porque o sonho que se dissipou quando
acordei, deixou uns pequenos fragmentos bem nítidos que nunca se apagaram, eu
criei-a no meu pensamento. Como um puzzle juntei as peças, os bocados do sonho
e do pensamento e de cada vez que vou dentro da minha imaginação vou
acrescentando um pouco mais. Mas não fujo muito do âmago do sonho inicial que
apesar de tudo não lembro no seu todo. Ficou-me a sensação de que foi forte, de
que mexeu comigo.
Observo
o senhor José e os seus personagens de longe. E não sei como, através do meu
pensamento e da minha imaginação quase como que disfarçadamente, sem que com
esse gesto suavemente sublime se disturbe por um segundo que seja o cenário de
animada e ao mesmo tempo serena conversa, o senhor José vira a cara na minha
direção e em jeito de informação, diz-me,
“Fui
eu quem os criou, sabia?”
Claro
que sabia. Fui acompanhando e testemunhando o registo mágico que tanto me
deslumbrou, ao virar de cada página. Essa cumplicidade, essa intimidade entre o
criador e o criado, e eu, muitas vezes furioso com as minhas limitações como
humano que sou, a lutar desesperadamente com as pálpebras que teimosamente
insistiam encerrar para o dia, e não menos teimosamente a insistir na
continuação da leitura, a tentar furar por entre essas limitações e a querer
ficar um pouco mais porque a curiosidade, mas acima de tudo o imenso prazer em
ler o que o senhor José com tanta mestria escreveu, era uma força a lutar com
outras forças.
E
enquanto que animadamente conversa com os seus personagens fico a contemplar
aquela aura que a sua forte personalidade irradia. Aquele olhar penetrante e
curioso, inconformado, mas também meigo. Um olhar que observa tanto quanto vê.
E por isso é critico, por vezes benevolente, e afiado quase sempre quando o
transforma em palavras. Dá som à sabedoria pelo tom da sua voz. Depois há um
leve gesticular de mãos que passa quase despercebido, só porque acompanha a
conversa com a mesma serenidade com que esta se vai desenrolado. Noto-lhe a
testa alta, e alongada, e num mesmo instante lembro o meu pai que sempre dizia
que era esse um sinónimo de inteligência. Lembro tão bem as vezes em que
proferia essas palavras, que de tão nítidas nos meus ouvidos, o vejo passar em
frente ao banco do jardim enquanto que as folhas caídas vão dançando em
harmonia, à sua passagem.
“Senhor
Saramago e companhia…”
E
nunca precisou de mais palavras do que estas para saudar por quem passava.
Acompanhava sempre as palavras de saudação com um ligeiro curvar, uma espécie
de vénia cordial de quem tem por maneira de se deslocar pelo mundo, uma
humildade tão humana, ou pelo menos, do que de humano se deveria esperar de
cada um de nós, ele que não era homem de se rebaixar a ninguém, mas curvava-se
sempre, ligeiramente, perante a boa educação e as boas maneiras.
Senhor
Saramago, diga-me que depois de ter passado para o outro lado se tornou num
astrofísico. Sim, porque duvido muito da teoria da reencarnação…
Por
onde anda você senhor Saramago? É assim? Fecha os olhos para nunca mais os abrir?
Estendem-lhe o corpo sem vida, sem expressão, num caixão, transformam-lhe o
corpo em cinzas, e pronto? Ficamos assim?
E
para que nos sirva de consolo vêm-nos dizer que o senhor Saramago continua vivo
nas histórias que com tanta mestria nos contou em palavras escritas. E o senhor
Saramago fechou os olhos, deixou de estar, e tudo acabou? É essa a grande
crueldade da vida?
E
à noite, senhor Saramago, sentados na pedra muda e fria que nos parece
testemunhar momentos raros onde a voz é apenas o som da alma a manifestar-se, a
falar coisas que às vezes nem nos damos conta de serem tão belas, há um
desabafo que se sobrepõe ao cantar dos grilos que aproveitando a serenidade da
noite também eles cantam de sua justiça, um desabafo solto debaixo de um teto
de estrelas que testemunham em sereno, silencioso e cintilante sorriso, um
aperto momentâneo que se solta do peito, e…”ai meu Deus que o mundo é tão
bonito e eu tenho tanta pena de morrer…
Volto
ao cenário que criei no meu pensamento através de um sonho do qual apenas
lembro pequenos fragmentos aqui e ali, mas que de tão fortes que foram concebo
o resto das peças que faltam para poder recriar o sonho onde parte se perdeu
com o acordar e com os afazeres do dia a dia.
E
vejo uma aldeia. E vejo um movimento de pessoas que parecem harmonizar e
enquadrar umas com as outras de uma maneira que a minha compreensão não tem
capacidade total para entender. Mas gosto do que vejo. Sinto que gosto do que
vejo. Sou uma mente inquieta com outras distrações e luto para que as minhas
divagações me não afastem do quadro perfeito.
Vejo
a mulher do médico. Desta vez não precisa de liderar os que não vêem e por isso
estão mergulhados num caos lamacento que os puxa para o interior do abismo.
Eles saíram do abismo. Da insanidade. São livres.
Cipriano
Algor continua a mexer com as mãos no barro, mas fá-lo por amor à sua profissão
e não para se adaptar a uma feroz e desumana concorrência comercial que só
serve para encher os bolsos afortunados de uns quantos capitalistas mantendo ao
mesmo tempo as ovelhas entretidas com coisas fúteis e desnecessárias ao seu
crescimento como seres de uma inteligência supostamente superior a todos os
outros seres debaixo do mesmo sol e da mesma lua.
E
ao olhar a aldeia, ao vê-la através dos olhos do pensamento, parente direto da
minha imaginação , vejo todas as personagens que através da mestria de quem
soube pôr em palavras escritas, histórias como que melodias que nos embalassem
numa viagem através das incongruências do mundo em que vivemos, qual retratos
vivos para que nos lembremos de que matéria somos realmente feitos. E tenho que
admitir que essa imagem é uma espécie de fusão entre fragmentos de um sonho
fortíssimo pelo seu conteúdo e que mesmo assim não consigo lembrar no seu todo,
a minha imaginação e esses personagens que continuam vivos, entalados entre
folhas que ganham vida assim que alguém as abre para as ler.
E
vejo a rapariga dos óculos escuros, o velho da venda preta, o rapazinho
estrábico, o primeiro cego e a mulher, o médico e a mulher do médico, essa alma
misteriosa e com uma força e capacidades muitas vezes para além da sua própria
compreensão.
E
vejo Joana Carda com a sua vara de negrilho a riscar estrelas que se soltam
numa espécie de dança harmoniosa em direção ao firmamento, como quem decora o
universo aqui e ali, sarapintado com uma meia de lã azul a formar enormes
novelos como nuvens, que Maria Guavaira solta das mãos em gestos de pura magia.
Numa
ponta do lago, Joaquim Sassa lança pedras maiores e mais pesadas que o seu
físico assim o pudesse permitir, e as pedras saltam na superfície da água
empurradas por uma força quase natural, quão natural é a força de quem quer e
acredita, ser possível de acontecer.
José
Aniço deixou de ser seguido pelos estorninhos para passar a conviver com eles,
ao mesmo tempo que Pedro Orce suavemente vai caminhando livre das vibrações do
solo porque as oscilações provocadas pelo movimento do solo aqui não medram. Constante,
o cão, não larga Pedro Orce.
Tertuliano
Máximo Afonso finalmente chegou a termos de entendimento com Antonio, de nome
artístico, Daniel Santa-Clara, e afinal, mesmo que não possam existir dois
seres iguais, o que parece igual é afinal uma metade que comtempla a outra
metade, uma metade que se descobre que apesar de tudo não possuímos.
Senhor
José Saramago, faz-nos falta o cão das lágrimas.
São
tantos os momentos de desespero, de desânimo, que nos faltam as forças para
aguentar o peso do mundo que nos desaba nos ombros em momentos de fraqueza onde
a nossa condição de humanos não nos permite por vezes continuar a jornada.
Precisamos
de um coração mais puro, cão que seja, e que nos venha lamber as lágrimas para
que nesse momento de compaixão se reúnam as forças que nos farão Levantar do
chão, nesta Terra do pecado, para que possamos continuar a difícil jornada da
vida.
Continuamos
bem conscientes de que o mundo em geral está um caos, mas individualmente somos
simplesmente incapazes de admitir a nossa quota parte de culpa nesse mesmo
caos.
Tenho
sempre esta imagem no pensamento…e, no entanto, parte dela surgiu num sonho
forte, profundo, significante, mas que apesar de tudo não lembro no seu todo. A
outra parte é trabalho da minha imaginação, do meu forte querer de que assim
seja…
Por
onde anda, senhor José Saramago?
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