Li a sua crónica no Público de 30 de Março
passado, intitulada “Conheci muito bem o seu pai, foi meu aluno”, na qual, a propósito das “famílias” governamentais e
arredores, tema agora muito em voga, conta um episódio do passado, que teria
como protagonista o meu pai, Marcello Caetano: “Caetano chegava à primeira aula
e chamava os estudantes um a um, e interpelava-os com variantes da mesma
conversa: “conheci muito bem o seu pai”; “você não é sobrinho de X? É que ele
foi meu aluno”; “é da família X? O seu tio esteve comigo nos Graduados da
Mocidade Portuguesa”; “o seu pai ainda está em Moçambique?”, etc., etc. De vez
em quando, empancava num plebeu e não sabia o que dizer”.
Sem contestar que “Estávamos numa época em que na
universidade havia apenas 4% de estudantes de famílias operárias e camponesas”,
devo-lhe dizer que não conheço ninguém que tenha presenciado tal episódio.
Fui aluno de Marcello Caetano nos anos lectivos
de 1952/53 (Direito Constitucional) e 1953/54 (Direito Administrativo). Dois
anos antes de mim, o meu irmão José Maria, que já faleceu, foi igualmente seu
aluno. Nunca assisti a tal cerimonial. Temendo que ao afirmar isto, pudesse ser
acusado de falta de memória, procurei confirmar junto dum colega meu, com o tal
perfil “plebeu” que vem referido no seu texto, e fiquei mais descansado: também
não se recorda de tal episódio. Procurei, ainda, recolher o testemunho de dois
colegas do meu irmão José Maria, os quais também confirmaram não ter
presenciado tal cerimonial.
É claro que tal pode ter acontecido nos anos
quarenta ou nos anos sessenta. Certamente que alguém lhe contou.
É verdade que Marcello Caetano tinha uma memória
extraordinária, que fixava os nomes completos de todos os seus alunos (fazia
questão de ser ele a dar as aulas práticas, onde o relacionamento com os alunos
era mais personalizado, e de anotar nas cadernetas de cada um as suas
apreciações). E conheci vários episódios de ele encontrar um antigo aluno, que
o vinha cumprimentar, e ele de imediato dizer: “lembro-me muito bem de si, foi
meu aluno no ano tal e o seu nome completo é…). Tal também acontecia em
conversa, quando alguém lhe perguntava se sabia quem era fulano ou sicrano, e
ele logo o situava, pelo nome, família, profissão, etc...
Filhos de Marcello Caetano: Ana Maria e Miguel Publicada pela revista Sabado |
Mas retomando o tema que originou o seu texto de
opinião, o das “famílias” governamentais, não consigo perceber o que o levou a
escolher Marcello Caetano para demonstrar que já no passado se verificavam as
mesmas concentrações familiares no governo e na vida política.
De facto, como é natural, escolheu para os seus
governos alguns antigos alunos, como João Dias Rosas, Joaquim Silva Cunha ou
Joaquim Silva Pinto, que não creio que pertencessem a meios sociais elitistas,
embora outros, como Rui Patrício (filho de embaixador) ou Augusto Ataíde,
pertencessem a famílias já conhecidas. Também chamou para o governo “jovens”
que conhecera nos tempos da Mocidade Portuguesa, sendo o mais conhecido Baltazar
Rebelo de Sousa, que também não pertencia aos tais meios sociais elitistas,
assim como escolheu numa geração mais jovem um grupo de economistas e
engenheiros, como Xavier Pintado, João Salgueiro, Costa André, Rogério Martins,
nenhum deles seu aluno e nenhum com origens sociais relevantes. E, que eu
saiba, nenhum destes tinha qualquer relação de parentesco entre si, nem nomeou
parentes para os seus gabinetes.
É claro que não me vou esquecer do Ministro das
Obras Públicas, Rui Alves da Silva Sanches, sobrinho de Marcello Caetano. Mas
esclareço, para quem não saiba, que tinha feito uma carreira profissional no
Ministério das Obras Públicas, com todas as promoções obtidas após concurso, e
que já era secretário de Estado quando Marcello Caetano foi nomeado Presidente
do Conselho. E, já agora, que foi chamado pelos governos portugueses post-25 de
Abril para acompanhar a execução das obras do Alqueva, e pelo governo angolano
como consultor dos planos hidráulicos que acompanhara antes da descolonização.
É claro que me alonguei mais do que o necessário.
Mas como o Dr. Pacheco Pereira escolheu o meu pai como exemplo paradigmático
das endogamias do regime anterior ao 25 de Abril, aproveitei para deixar tudo
bem esclarecido. E, para terminar, acrescentarei apenas que nem eu nem o meu
irmão obtivemos as classificações necessárias para prosseguir uma carreira
académica na Faculdade de Direito.
Quanto à utilidade dos meus esclarecimentos,
deixo ao seu critério a decisão de qual o uso mais adequado daquilo que
escrevi.
Com os melhores cumprimentos
Miguel Caetano
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