28/3/2019
A simples condição de “não
socialista” parece estar tocada pela lepra e merecer um cordão sanitário. É
pois tempo de dizer que não sou socialista porque já fui socialista e sei o que
isso significa.
Não sou socialista porque já fui socialista. E não sou
socialista porque sei o que isso significa e a ilusão que representa.
Pode parecer estranho vir afirmá-lo aqui e agora é
porque se tenta que esta simples condição – a de “não socialista” – seja uma
espécie de lepra em torno da qual se deve construir um severo cordão sanitário.
E, no entanto, nunca foi tão necessário romper esta espécie de unanimidade não
assumida que é uma das razões da nossa desesperança.
Não é fácil. Os alucinados de toda a vida e os idiotas
úteis do momento que estão sempre a postos e, logo que ouvem alguém dizer-se
“não socialista” às claras, sem medo e sem rodriguinhos, saltam a anunciar que
chegou a “alt-right”. O que vai bem com o espírito dos tempos e esta forma de
pensar Portugal em que não é necessário ser sequer do PS nem votar-se no PS
para se fazer parte de uma cultura dominante de inspiração e prática socialista
(sendo que no PS nem todos serão exactamente socialistas).
Por outras palavras: não venho aqui dizer que não sou
socialista apenas porque não tenho ou tive família no PS (até porque isso seria
mentira), antes venho dizer precisamente o contrário. A primeira razão porque
não sou socialista é porque aprendi a sua doutrina ainda na adolescência, época
em que a sua lógica me enfeitiçou, tempo em que percorri os caminhos da ideologia
até aos seus limites mais absurdos, tudo antes de compreender – felizmente
ainda bem cedo – a mentira da ilusão e ter deixado de tentar justificar todas
as tragédias associadas.
Para mim tudo começou muito cedo, aos 13, 14 anos,
quando o meu pai me deu a ler um pequeno opúsculo de Léon Blum, o primeiro socialista a dirigir um
governo em França, nos anos da Frente Popular. Nele se procurava explicar o que
era o socialismo e, para além de todas as ideias de justiça social, pareceu-me
de uma lógica inatacável a ideia de que a economia funcionaria muito melhor
existindo planeamento central. Sendo eu então um miúdo com uma fé quase
ilimitada no conhecimento científico, era para mim claro que assim se evitaria
o desperdício e mais facilmente se garantiria que haveria bens que chegassem
para todos. Conhecíamos as necessidades, só havia que organizar a sua produção
e distribuição.
Hoje, quase 50 anos depois, sorrio da minha
ingenuidade. Na verdade tudo no planeamento central contraria a natureza
humana, limita a inovação, estimula a preguiça e conduz à servidão. Tudo no
planeamento central leva, mesmo no mais eficiente dos regimes, à produção de
Trabant’s, enquanto a “caótica” concorrência vai produzindo Mercedes, Audi’s e
e BMW’s.
E não, não descartem já este exemplo por exagerado,
pois sei bem que há uma enorme, uma gigantesca distância entre o socialismo
democrático de Léon Blum – o ramo a que pertence o nosso PS – e as muitas
variantes totalitárias filhas da Revolução Russa e do leninismo – o tronco de
que brotou o PCP mas também o Bloco de Esquerda. Contudo não podemos descartar
os ensinamentos de décadas de “socialismo real”, sem economia de mercado, até
porque não é preciso acabar com as eleições para vermos onde nos leva uma
economia onde o Estado trata de mandar em tudo – basta olhar para o que se está
a passar na Venezuela.
É por isso que é necessário ir mais longe e mais fundo
e compreender que quando Friedrich Hayek escreveu O Caminho para a Servidão,
em 1944, uma das suas teses centrais é que o comunismo só se diferencia do
socialismo por uma questão de grau. No fundo a ideia de planificar a economia
acaba sempre num esforço para “planificar a sociedade” que limita as
liberdades. Muito vilipendiado, ainda hoje proscrito em muitos centros ditos
“do saber”, o livro foi lido mal saiu por um rival intelectual de Hayek, que
lhe enviou de imediato um cartão a dizer que se encontrava “moral e
filosoficamente profundamente comovido e agradado”. Estas palavras são de John Maynard Keynes,
que tinha aproveitado a viagem transatlântica a caminho da conferência de
Bretton Woods para ler o livro.
Conto esta pequena história porque Keynes sempre se
definiu como um liberal, sempre se opôs às diferentes formas de socialismo e se
advogou formas de intervenção do Estado na economia foi para salvar o
capitalismo, não para o “superar”. É por isso que ao mesmo tempo que
arquitectou formas de combater a Grande Depressão e defendeu políticas que
estimulariam a criação de emprego e o combate à pobreza, e considerasse
excessivo um certo nível de desigualdades de rendimento, considerava, sem
complexos, “que existem justificações sociais e psicológicas para
significativas diferenças de rendimento e de riqueza”.
Uma avaliação como esta não deriva de qualquer egoísmo
pessoal ou de se ter o coração duro, antes de uma avaliação da natureza humana.
Assim como dos sentimentos humanos, sobre os quais de resto Adam Smith escreveu
longa e sabiamente antes de se dedicar à riqueza das nações. É por isso que o planeamento
central não funciona e todos os fundamentos económicos do socialismo estão
errados. É também por isso que não existe um sentido na História, a tal “seta
do progresso” que levará à “superação” do capitalismo em que os socialistas
também acreditam, mesmo quando não dispensam os prazeres “burgueses”.
O planeamento central não funciona porque não se
planeia o que não se conhece. Pode-se fazer um plano quinquenal para a RTP, mas
é impossível saber quando ou onde vai aparecer um Netflix. A inovação implica
risco, implica falhanços, implica concorrência, implica empresas estabelecidas
que vão à falência (a chamada destruição criativa), implica estar empregado,
ficar desempregado e voltar a estar empregado, implica lutar e ter ambição,
lutar por ser rico mas também poder ficar pobre. Sob a asa de um Estado que
tudo providencia isso não acontece. Mesmo sob o peso de Estado que tudo
regulamenta tudo é mais difícil. O socialismo pode dar-nos hoje a ilusão de
mais segurança, mas garante-nos no futuro apenas mais pobreza.
Um Estado que tudo controla, ou que de todos
desconfia, é um Estado que limita as liberdades. É um Estado que mais tarde ou
mais cedo faz de todos os cidadãos dependentes de um qualquer serviço público
ou de uma qualquer prestação estatal, logo é um Estado de cidadãos
tendencialmente submissos e temerosos. É cada vez mais a nossa condição, e é
essa nossa condição que limita as nossas escolhas: o socialismo faz política
assustando a cidadania. É o nosso caminho da servidão.
Os socialistas não desconhecem as limitações da
natureza humana, e por isso sempre sonharam com alguma forma de “homem novo”,
um desiderato prosseguido à bruta pelos totalitarismos do século XX, uma missão
hoje assumida pelos fanáticos de todos os politicamente correctos, sempre empenhados
em obras de engenharia social que só respeitam a sua ideia de liberdade, não a
liberdade de todos. E quando nos falam de “conquistas” ou “retrocessos”
civilizacionais estamos muitas vezes de novo confrontados com o seu mito
historicista de que a História flui apenas num sentido e, sobretudo, de que são
eles os conhecedores desse sentido e os nossos guias, mesmo que à força.
Muitos dos que se dizem socialistas não se
identificarão com o retrato que acabei de fazer, e isso não me surpreende.
Viverão mais num “estado de espírito” sem se aperceberem de que as ideias têm
genealogia, têm história e, sobretudo, têm consequências. E não as conhecerão
como eu as conheci: por dentro, sem ambiguidades e em diferentes aproximações.
Por isso não devem ficar surpreendidos, só para dar um
exemplo, com o actual estado do debate sobre a Lei de Bases do Serviço Nacional
de Saúde. Um socialista defenderá mesmo aquilo que o actual PS parece estar a
defender, a máxima estatização dos serviços de saúde, a mínima liberdade para
os utentes e para os médicos, todos idealmente encaminhados para os seus
hospitais e consultórios pelos “planeadores centrais”. Um não socialista
preocupar-se-ia sobretudo em garantir que toda a população tinha acesso a bons
cuidados de saúde, com o menor custo possível para o contribuinte, sendo-lhe
indiferente se o prestador era o Estado, o sector social ou um operador
privado, acreditando que tendo os utentes mais liberdade, mais responsabilidade
nas suas escolhas e havendo mais concorrência, o resultado final seria melhor.
Há, por fim, uma perversão muitas vezes associada ao
socialismo que também faz com que não seja socialista – é a facilidade com que
confundem Estado com Governo e Governo com Partido. No leninismo isso foi
teorizado: era o partido “vanguarda da classe operária”, detentor da verdade e
conhecedor do “sentido da história”, que devia exercer a “ditadura do
proletariado”. Nas democracias liberais não é assim, mas a verdade é que os
socialistas, por acreditarem nessa coisa abstracta que é o Estado, e entenderem
que ele deve ter um comando, que é o governo, têm por regra a maior das
resistências aos mecanismos de limitação do poder executivo. O nosso PS nisso
dá cartas, pois da constante tensão com o poder judicial ao desmantelamento dos
órgãos de regulação independentes – o escândalo mais recente é o cerco ao Banco
de Portugal –, tudo tem feito para concentrar mais poder nas mãos do Executivo.
Fê-lo com Sócrates e reincide com António Costa.
Não há aqui nada de estranho: um não socialista como
eu quer naturalmente mandar menos e dar mais liberdade a todos; um socialista
acredita num dirigismo que também naturalmente contraria dar mais graus de
liberdade.
Olhando agora para trás, para as quatro décadas e meia
que já levamos de democracia, e lendo-as à luz destes critérios, é fácil
perceber que estivemos quase sempre mergulhados numa cultura política e de
Governo socialista, mesmo quando não eram os socialistas de nome que estavam no
Governo.
Mais uma razão para me sentir não socialista.
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