João Miguel Tavares - Público
Uma das razões por que não há nada sobre
Marcelino da Mata prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva,
que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
O meu artigo sobre
Marcelino da Mata deu origem a várias reacções, entre as quais as de Vasco
Lourenço, aqui no PÚBLICO, e a de Manuel Carvalho da Silva,
no Jornal de Notícias. Ambos aproveitaram para fazer referências
jocosas à minha nomeação para presidir ao 10 de Junho (Vasco Lourenço,
engraçadíssimo: “Confio que não tenha a tentação de promover qualquer farsa
semelhante a essas jornadas de Salazar e Caetano!”), um divertimento pícaro por
esta altura já demasiado batido, e ambos fizeram um grande esforço para tresler
tudo aquilo que escrevi. Ainda assim, e apesar de a luta ser renhida, a
escolher um vencedor no campeonato da desonestidade intelectual ele teria de
ser Carvalho da Silva: conseguiu confundir citações com afirmações, suposições
com factos e concluir que transformei “a personagem Marcelino da Mata quase em
exemplo”. É obra.
Reparem: como qualquer
pessoa com a quarta classe poderá verificar, o meu texto sobre Marcelino da
Mata tinha como argumento a necessidade de conhecer o papel dos africanos na
História de Portugal, dando como exemplo a sua extraordinária história de vida,
desconhecida da generalidade do público. Em qualquer país civilizado já haveria
uma série de televisão, dois filmes, três livros e quatro documentários sobre
Marcelino da Mata. Em Portugal, não há nada. E uma das razões por que não há
nada prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem
o campo da História com os seus quintais ideológicos.
O país está cheio de
donos da História de Portugal, prontos a distribuírem reguadas por quem se
atreve a sair da linha oficial. Como é óbvio, é possível que Marcelino da Mata
tenha sido um herói de guerra, é possível que tenha sido um criminoso de
guerra, e é até possível que tenha sido ambas as coisas, em momentos
diferentes. Mas o meu texto nem sequer era sobre isso. Era sobre o
desconhecimento generalizado de uma figura absolutamente invulgar, e sobre o
que isso diz sobre o nosso lastimável trabalho de memória. Foi um herói?
Contem-me. Foi um criminoso? Contem-me também.
Há dias comprei o
livro de Irene Flunser Pimentel Os Cinco Pilares da PIDE. O
capítulo introdutório intitula-se “Por que apresentar biografias de
torturadores da PIDE/DGS?”. A autora afirma aí que quando publicou a biografia
do inspector Fernando Araújo Gouveia foi criticada por estar “a dar importância
ou até a enaltecer um torturador”, pois muitos consideraram que quem cometeu
“actos de violência sobre presos políticos deveria ser remetido ao silêncio”.
Recordar tais vidas – diziam – faria sofrer as vítimas. O argumento é
estapafúrdio, mas Pimentel leva-o a sério, dando-se ao trabalho de explicar
pacientemente que não, que não é assim, que escrever sobre um torturador até
“contribui para denunciá-lo”, e patati patatá, como se os seus leitores
estivessem no jardim-escola, e Hannah Arendt não tivesse escrito sobre
Eichmann, Ian Kershaw sobre Hitler ou Robert Conquest sobre Estaline.
O problema não está
nas explicações de Irene Pimentel, que estão certas. O problema está no facto
de ter sentido necessidade de explicar-se. Essa necessidade demonstra bem o
paternalismo na abordagem da História contemporânea, com um bando de
historiadores armados em mestre-escola, empenhadíssimos no devido enquadramento
das almas, não vá alguma delas lembrar-se de ressuscitar o cadáver de Salazar.
Por amor da santa. Uma história é uma história é uma história. É para ser
contada. Não é para ser pregada.
Jornalista
Se O Senhor Carvalho (Para as gentes de Campo - Terras de Bouro) se olhasse ao espelho era capaz de meter o humor jocoso no saco. Marcelino da Mata é capaz de ser um exemplo para muito português e outros bem lá no fundo (ou nos seus poleiros da ideologia da miséria) são um enfado.
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