Os
“desígnios” são a versão “moderna” e onerosa das feiras medievais e do fumeiro.
A maior diferença é comer-se pior. A maior semelhança é o deslumbramento fácil,
além da omnipresença do prof. Marcelo.
“Conseguimos!
Conseguimos! Portugal! Lisboa! Esperávamos! Desejávamos! Conseguimos!
Vitória!”. Excitado, frenético, quase fora de si, o prof. Marcelo anunciou
assim a organização nacional, lá para 2022, de um evento qualquer. Durante o
vídeo, o maxilar inferior descaiu-se-me e não voltou ao sítio nos minutos
seguintes. Não se pode dizer que as peculiaridades (digamos) do prof. Marcelo
sejam incapazes de nos surpreender. Eu, pelo menos, não me lembro de alguma vez
ter visto um presidente da República em preparos similares, incluindo as
aparições do actual em cuecas. Em matéria de excentricidade, o referido
entusiasmo deixa a roupa interior a léguas. E deixou-me sem reacção por um
período indeterminado.
Só
depois notei que, no meio do arrebatamento dele e da minha perplexidade, acabei
por não fazer ideia de que evento se tratava. Fui ver. São umas Jornadas
Mundiais da Juventude, que decorrem sob patrocínio do Papa e de tantos em
tantos anos reúnem, ignoro com que fim, multidões de moços e moças católicos
numa cidade designada para o efeito. No ano corrente, a coisa calhou na capital
do Panamá, obviamente – onde é que está?, é apenas um instante, espera lá, ora
cá temos – a Cidade do Panamá, onde aliás o prof. Marcelo sofreu a dupla
epifania que o levou a anunciar as Jornadas portuguesas e o seu inesperado
apetite por um segundo mandato.
Embora
me horrorize o modo, não me incomoda nada que o chefe de um estado laico
promova uma farra cristã. Sobretudo quando os que criticam a promiscuidade –
não os comunistas de Loures – acharam impecável que o mesmo chefe do mesmo
estado laico passasse o Natal numa mesquita, a exaltar o contributo da
comunidade islâmica. E achariam impecabilíssimo que o prof. Marcelo surgisse,
em posição de lótus e um regador na cabeça, a dar início a uma convenção de
“motards” budistas. Aborrece-me o ecumenismo que venera o “outro” enquanto
abomina o “nós”.
Também
me aborrecem os queixumes pela realização das Jornadas em Lisboa.
Principalmente na medida em que, desconfio, os queixosos estão todos fora de
Lisboa: seria compreensível se fossem os lisboetas a resmungar. De certeza que
o cidadão de Celorico de Basto furioso com o “centralismo” gostaria de tamanha
pândega à sua porta? Ninguém com um
pingo de bom senso anseia por milhares de escuteiros acampados no quintal., Por
mim, juro que pagava para que a desdita não me caísse em cima – como pagarei,
goste ou não, para que caia no Parque das Nações ou lá o que é. De resto, é tão
pacóvio a apetência do “país real” em reivindicar “certames” quanto o orgulho
da capital em acolhê-los.
O
problema é justamente esse. A XVII Exposição de Arte Ciência e Cultura. A Expo
98. O Euro 2004. A tenda do Kadhafi. A Web Summit. A Eurovisão. Agora as
Jornadas da Juventude e, em breve e se Deus nosso senhor quiser, o EuroPride,
“o maior evento LGBTIAKŒR@A$N∞J© do mundo”. Algures pelo caminho, falhámos por
manifesta injustiça os Jogos Olímpicos e, se não erro, um ou dois campeonatos
mundiais da bola. Mas não falhámos o nosso destino.
De
tempos a tempos, com intervalos crescentemente curtos, o país depara-se com um
“desígnio”. O processo é recorrente. Há a hipótese de Portugal, leia-se Lisboa,
receber um regabofe itinerante de “prestígio” internacional e discutível. Há
uma comissão nomeada para cuidar da candidatura. Há a vitória da candidatura,
por regra disputada com Salónica, Montevideu e um ermo na Turquia. Há festa
rija pela vitória, impulsionada por noticiários que transmitem a propaganda
oficial. Há a garantia de milhões despejados na empreitada a título de
“investimento”. Há a difamação pública dos raros espécimes que, por mera
pirraça, contestam os benefícios daquela maravilha. Há a consumação da
maravilha, com a natural glorificação do talento indígena para montar barracos
e demolir o sossego alheio. Há discursos oficiais, que juram o pasmo da
humanidade perante a proeza caseira. Há o apuramento dos lucros, aos quais não
se deduzem os gastos. Há os gastos para cobrir em três ou quatro gerações. Há
0,025% do povo a esfregar as mãos pelos dividendos políticos e monetários
adquiridos no exercício. Há o momento para varrer o entulho acumulado e matutar
no “desígnio” seguinte. Há uma comissão nomeada para cuidar da candidatura.
Etc.
Discutir,
a propósito destas patetices, a descentralização, o provincianismo, o progresso
e o que calha é conversa para embrulhar os que não participam nos despojos. Os
“desígnios” são a versão “moderna” e dispendiosa das feiras medievais e do
fumeiro que entretêm semanalmente as berças. A maior diferença é, imagino,
comer-se pior. A maior semelhança é o deslumbramento fácil, além da
omnipresença do prof. Marcelo, claro.
Nota de rodapé
No
parlamento, os comunistas do BE e os comunistas do PCP rejeitaram um voto de
pesar pelos mortos na Venezuela. Quando o mundo ainda digeria a surpresa por a
extrema-esquerda desprezar as suas próprias vítimas, o dr. Louçã apareceu no
Facebook a escrever “Guaidós” e acusar a “direita” de “estratégia ignóbil”.
Porquê? No primeiro caso, porque o dr. Louçã, homem de acção, não é de grandes
leituras. No segundo, porque o texto de PSD e CDS pretendia que, além de
lamentar os assassínios, a extrema-esquerda reconhecesse uma assembleia eleita
pelo povo e um presidente reconhecido por tudo o que é regime democrático. Já é
demais. Felizmente, resta o dr. Louçã, conselheiro de Estado e consultor do
Banco de Portugal, para afrontar o sistema e repor a verdade. E acrescentar: “É
assim que vai ser em 2019. Discurso de ódio, simplificações, ultimatos, fake
news. É a era Trump.” O dr. Louçã repete muito coisas destas. Com sorte, e uma
valente lobotomia, haverá quem o ouça.
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